Um pensamento sobre o ator marginal

Desde que começa seu aprendizado, o ator não cansa de ouvir os postulados de Stanislavsky: entrar no personagem, introspectar cada movimento possível da personalidade que vai transportar à tela. É a regra para o teatro do século XIX e do começo do século XX, que indica o caminho artístico para o cinema: verossimilhança, aparência de ilusão, interiorização psicológica. A criatividade no trabalho do ator, se ela existe, consiste na "preparação do personagem", um trabalho que demanda intuição, relaxamento muscular e um famoso "se" que dá a aparência de realidade àquilo que está sendo encenado e permite ao ator ser o mais espontâneo possível em relação ao personagem que encarna, ou melhor, que é no palco ou na tela.

O ator encara a sua atividade a partir do ponto de vista da adequação: ele deve compreender seu personagem e depois trabalhar-se para chegar até ele. Questão de modelo, pois. Ora, o ator marginal, seja com Rogério Sganzerla ou Júlio Bressane, seja com Andrea Tonacci ou Geraldo Veloso, é a explosão desse sistema. O teatro moderno (e o cinema narrativo, por conseguinte, como extensão dele) pede realismo das situações e naturalidade dos comportamentos, pede diálogos verossímeis e personagens psicologicamente previsíveis. Ora, quando Helena Ignez aparece numa escada rolante chutando sem parar a perna coxa de Stênio Garcia em A Mulher de Todos, toda a dimensão de verossimilhança, de realismo de situações e todos os postulados da ilusão cinematográfica/narrativa tornam-se apenas literatura.

Para o ator, o que muda fundamentalmente? Não se trata mais de adequar seus movimentos a um modelo, a um personagem modelar. Trata-se agora de criar seu personagem, de buscar gestos que vão poder expressar aquilo que o diretor quer com cada intérprete. Onde o ator vai buscar a inspiração? Na psicologia do personagem? Não porque não são personagens com psicologia. São a própria negação, a constatação da insuficiência da psicologia. Numa introspecção stanislavskiana profunda que daria toda a dimensão do personagem? Tampouco: os personagens de Sganzerla, de Bressane, não têm interior. Ao contrário, as pessoas que povoam esses filmes são pura exterioridade. Como atuar, então?

Tudo isso poderia dar a impressão de que atores não são necessários para os filmes ditos marginais. De que basta pegar qualquer um para atuar. Falsa impressão, contestada à simples visão dos maiores atores dos filmes udigrudi. A se ver Helena Ignez, a se ver Paulo Villaça, Paulo César Pereio, Hugo Carvana ou Maria Gladys: é um domínio completo de movimentos, seja pensados seja reflexos, que impressiona pela expressividade. E pela pregnância. Dificilmente vamos esquecer de Maria Gladys berrando "eu tô com fome" ao descer o vidigal num dos enormes planos-seqüência de Sem Essa Aranha, da onipresença vocal e visual de Pereio em Bang-Bang, da espontaneidade de Villaça em Perdidos e Malditos ou O Bandido da Luz Vermelha, ou da histórica interpretação de Helena Ignez em A Mulher de Todos.

Há, sim, grandes atuações, e essas atuações do cinema udigrudi são, sim, questão de grandes atores. Atuações que não podem ser escoradas em Stanislavsky quando fala de introspecção e aparência de realidade, mas que encontram livre curso diante de postulações de um Antonin Artaud e do teatro pobre de Jerzy Grotowski, mas não precisamos ir tão à vanguarda para caracterizarmos a interpretação "marginal". Podemos simplesmente relembrar de Denis Diderot e de seus desejos por uma atuação fria, técnica, onde o ator tivesse que dar a dimensão de seu personagem não por assimilação ou identificação deste, mas pelo domínio de expressões e movimentações corporais cênicas que levassem o espectador a compreender e emocionar-se com tal ou tal sentimento. Ou, mais na tradição nacional e sem uma talvez excessiva formulação teórica – é certo que muitas das propostas do cinema marginal não vieram tanto de leituras e referências, mas de intuições estéticas e de uma violência e recusa direta dos moldes costumeiros de representação –, da herança do teatro e do cinema mais físico, mais direto: o da chanchada, dos espetáculos de rádio, sobretudo os de comédia (não à toa vemos Jorge Loredo, o Zé Bonitinho, e Grande Otelo nos filmes de Sganzerla e Bressane).

Claro, o objetivo é diferente. Na comédia, a atuação visa a render o gesto único e imediato, para ser "gasto" naquele exato momento. Nos filmes marginais, é o contrário: o sentido não é para ser dado naquele momento, e sim para persistir como "ruído" ao longo do filme, tanto imediato quanto infinito. Mas nos dois reside um mesmo atributo principal: o elogio da superficialidade e a negação da interioridade (o que traz à luz uma verdade profunda das artes cênicas: teatro e cinema se faz com gestos, não com a alma). A superficialidade é a pedra de toque do ator marginal, e é assim que ela "ganha" do excesso de especialização do ator cultivado, por não extrair mais expressões mediadas (o sentimento passa pela consciência do ator, que media a sensação até o olhar do espectador), e sim ir diretamente, sem consciência – não inconscientemente, mas a-conscientemente... Há uma enorme diferença.

Nunca uma tábula rasa da técnica, como muito se fez crer (e não só a atuação no cinema marginal, mas o cinema marginal como um todo). Antes, uma recolocação do problema da técnica. É preciso ser maestro para fazer música? Se o cinema novo dizia que sim, com Villa-Lobos e Tom Jobim, os filmes marginais disseram que não, com Luiz Gonzaga ou Dorival Caymmi, talentos brutos. Essa força bruta, recolocação da técnica a seu papel de expressividade criativa (e porventura) e não ao de lisibilidade redundante, esse é o ideal que sempre buscam os marginais. E os atores realizam essa tentativa à maravilha.

Ruy Gardnier