Resistência francesa


Jean-Pierre Léaud e Anne Wiazemsky em A Chinesa: lutar em duas frentes

Em Pierrot le fou, Samuel Fuller disparava: "Um filme é como um campo de batalha". O entrelaçamento cinema-guerra percorre toda a filmografia de Godard, com constância e força assombrosas. É difícil que algum de seus filmes estejam confortáveis nas prateleiras de "filmes de guerra", já que o investimento não diz respeito aos efeitos e pirotecnicas dedicados a reprodução dos conflitos. Não se trata de reprodução, mas de compreensão.

Nesse trajeto, Godard resgata toda a potencialidade de um gênero "menor", o das atualidades, dos cinejornais. Com a diferença que deles descarta a pretensa objetividade e imparcialidade, para introduzir reflexão e engajamento. A filmografia godardiana se contamina sistematicamente das atualidades e com elas estabelece compromisso irrevogável: a guerra na Argélia (Le petit soldat, 1960), no Vietnã (o filme-ensaio que integra o longa Loin du Vietnam, 1966), na Palestina (Ici et ailleurs, 1974), na Bósnia (Forever Mozart, 1996), a guerrilha (A chinesa, Week-end, os dois de 1967). Isso só para ficar em alguns filmes e alguns conflitos históricos de reconhecimento mais imediato, porque o que não falta são outros tantos – inúmeros – terrenos minados prontos para explodir na nossa cara a qualquer momento.

Não estranha, portanto, que ao voltar seu olhar para o século passado, o que Godard vê seja a guerra. No curta-metragem em digital, Da origem do século XXI, feito por encomenda para abrir o Festival de Cannes de 2000, Godard insiste: a origem do século 21 é todo o século 20, o século do cinema, mas também (e principalmente) o século da guerra. Entre tantas imagens entrelaçadas no curta (filmes de ficção, documentários, filmes pornôs, reportagens, fotografias), há um plano em particular – de qual filme, não sei – de uma beleza reveladora. Nele, um menino dentro de um trem em movimento observa pela janela a paisagem exterior tomada por tanques de guerra. Uma visão do inferno, emoldurada pelas janelas que logo começam a se assemelhar a uma sucessão de fotogramas. É o cinema observando seu tempo, testemunhando o horror. O horror, o horror – diz uma voz a certa altura, ecoando ao mesmo tempo a violência e a criação (Conrad, Elliot, Welles, Coppola).

Nos seus filmes, Godard persegue essa contemporaneidade, a tal ponto que às vezes até parece antecipá-la (mas não se trata de adivinhação, claro, é inteligência mesmo). Exemplo sempre lembrado é A chinesa, filme de 1967 protagonizado pela mesma juventude maoísta que estaria atrás das barricadas no ano seguinte; ou ainda, mais recentemente, de Elogio ao amor (2001), que antes do desabamento das torres gêmeas já insistia na violência americana em duplicar o mundo à sua imagem e semelhança, num processo ao mesmo tempo de pilhagem e extermínio das diferenças.

Mais do que para guerra, entretanto, Elogio ao amor se volta para seu contrário. Se a guerra é constante, seu contraponto não é a paz (isso existe?), mas a resistência. Desde a Resistência Francesa durante a Segunda Guerra até a urgência contemporânea de uma resistência à padronização, incluindo aí o front amoroso (o protagonista se apaixona mais por uma voz e suas opiniões do que pela figura da mulher, que mal se vê no filme) e o cinematográfico (a resistência ao cinema americano, a Spielberg, o elogio a Bresson).

Em A chinesa, Jean-Pierre Léaud não concebe a luta em dois fronts ao mesmo tempo, acha muito complicado. Anne Wiazemsky, com didatismo a toda prova, começa a dizer que já não o ama mais. Léaud não acredita, até ela colocar uma música na vitrola e dizer as mesmas palavras. Ele se convence, arrasado. É quando ela revela a tática e encerra o argumento: para que ele entendesse, foi preciso empreender a luta em dois fronts. Não tem como duvidar da lição. Combatendo em vários fronts, os filmes de Godard acionam estratégias de compreensão. São, em todos os sentidos, peças de resistências.

Luciana Araújo