Nós que não vamos ao Oscar

Domingo. 24 de Março de 2002.

E nós que não fomos ao Oscar?...

Apesar de toda a poderosa campanha da Videofilmes e de Walter Salles para colocar Abril Despedaçado sob a festa dos holofotes, não repetiremos em 2002 o belo feito (ou efeito...) de ter uma produção de cinema brasileiro na grande festa da indústria norte-americana. O desinteresse com que Abril foi tratado pelos festivais por onde passou colocou em cheque uma já frágil proposta comercial de cinema no Brasil, capitaneada pelo moço Walter Salles. Não há nenhum mal em não ser premiado em Veneza, ou perder o Globo de Ouro, ou ficar de fora do Oscar... Mas não é a falta de água que assusta...mas o excesso de sede!!! Como um pedinte improvisado (todo mundo achou lindo o modo como Walter Salles terminou de montar seu filme às pressas para dar tempo de participar em Veneza) o novo belo filme da Videofilmes foi um fiasco por onde passou. Coroada pela ausência final no Oscar, a carreira de Abril Despedaçado é a síntese da sinuca de bico em que se encontra grande parte dos cineastas brasileiros. Essa superdependência em relação ao aval internacional da Qualidade é o resultado triste de uma visão de cinema distanciada de seu próprio público e ausente de seu país. Tanto é o desejo em se fazer Cinema "despretensioso" para conquistar o público, que o que se criou foi um escalonamento estúpido entre aquilo que o "povo quer ver" e aquilo que há de minimamente pretensioso.

Isso é, nesses tempos de cinema para o público, em quê por "público" se lê "mediocridade desinteressada", qualquer tentativa de se fazer um cinema minimamente pretensioso está diretamente associado a uma elitização da imagem. Assim, com a cabeça nessa mercadologia de botequim, passamos a produzir de um lado filmes como Avassaladoras (que tem o selo de sucesso produzido instantaneamente por imagens da TV), ou temos que apelar para os termômetros de "boa obra de arte" para nos sustentar. Não só economicamente, mas como proposta artística/estética há uma total descrença de grande parte dos realizadores brasileiros em seu público.

Walter Salles, de forma constrangedora, reafirmou o pensamento de que não há ninguém melhor para dizer aos brasileiros o que há de bom para ser visto no país do que os civilizados cinéfilos do hemisfério norte. Os outros, os detentores do dinheiro (EUA) e da alta cultura (Europa) seriam nossos melhores avalistas – isso é: somos bons, vejam, o USA Today falou que nós somos bons!... Triste e antiquado.

Dessa forma, aniquila-se o diálogo entre os filmes e os espectadores brasileiros – passamos a ter apenas uma reiteração de relações previamente estabelecidas: seja a pré-estabelecida pela TV (Avassaladoras), seja o sucesso pré-fabricado do Oscar. Ambos os modelos de sucesso representam a triste maneira com que grande parte de nossos cineastas tem se colocado diante dos próprios brasileiros. Há sempre um tom de superioridade, um ar de benevolência cultural:

Seja porque se colocam como artistas que querem fugir da "falsa arte" da TV (o maneirista Luiz Fernando Carvalho), seja porque querem assumir uma falsa mediocridade para se comunicar com o "povo" (Avassaladoras), seja porque querem ser sucessos para inglês ver e depois se vender como filmes brasileiros (Abril...). De todas as maneiras, o que se ê é esse afastamento, essa perda de identidade entre o cinema projetado e seu público. São raros os sucessos (como o bastante limitado Bicho de Sete Cabeças, mas que ao menos se construiu sobre uma tentativa sincera de um diálogo aberto sobre uma questão) que não apontam apenas para uma reiteração de relações narrativas ou audiovisuais pré-estabelecidas. Na tentativa de reconquistar o público brasileiro, aceitamos os estereótipos (não apenas de personagens) de público ditados pelos modelos da TV e tentamos ser mais ou menos eruditos, segmentando o público como numa rede de canais a cabo. Desejamos ser previsíveis?! Se há ainda um Coutinho ou uma possibilidade irregular de talento como Laís Bodanzki (ou de um titubeante Beto Brant), o âmbito geral de nossa cinematografia se resume a uma palavra: Covardia!!

Deixadas em aberto todas as opções estéticas e a tal diversidade de nossa produção atual, o que nos tem marcado é uma mesma e só penitência.

Somente ela explica essa falta de desejo, essa perda de envolvimento com os projetos, esse distanciamento entre imagem e realizador! Eduardo Valente escreveu sobre os cinemas marginais dos anos 60/70 e quis tirar deles o aspecto de angústia, de tesão!! É isso o que nos falta, é isso o que não vemos em nossos filmes.

Porque nossos filmes não mais têm feito parte de um modo de ser, de ver o mundo, de reinventar o país: o cinema brasileiro se tornou um acanhado imitador de filmes de arte e de fórmulas televisivas que pouco tem de calor em suas imagens!!! Falta tesão, sobra covardia!! Para que adianta lançar em nosso país um filme como Abril Espedaçado?? Se ele não quer ser mais do que um "entretenimento de qualidade", uma filme bem realizado em retrato de país?... que se findem os retratos de país!!! Porque a eles só cabe o cinismo autodestrutivo (e efemeramente necessário) de um Cronicamente Inviável ou a fantasiosa fábula moral de Central do Brasil. Deixemos de retratar o país!! Não pode mais tratar disso o nosso projeto.

Olhar para trás, para a ebulição do Cinema Novo/Cinema Marginal é uma atitude essencial para a redescoberta de um valor criativo único daquele período: a capacidade de ser docemente arrogante e Inventar um país, ou um modo de ser, de agir! Quando a obra de arte passa a ser invenção ética, ela deixa de ser um mero retrato ou um mero entretenimento para fins de semana. Um filme que inventa país, pessoas, vida, passa a ser também parte da vida.

Nós que não fomos para o Oscar estamos diante de uma vastidão criativa e não podemos continuar encolhendo nossos olhares em função de um complexo de inferioridade. Esse complexo que nos faz enxergar em nossas idéias uma assustadora ameaça de estarmos sendo prepotentes. Ser desejoso não pode ser condenável, querer dizer não pode ser vergonhoso!! Se já aprendemos com o passado, o perigo e o fracasso dos projetos de totalização nacional, não devemos, por isso, temer, ter nojo dos grandes projetos. Abdicar das vontades absolutas não pode significar abdicar absolutamente das vontades!! Seremos capazes não mais de querer nos engolir uns aos outros, mas de nos organizar diante dos grandes desafios de recriação de uma imagem brasileira de cinema. Pequenos grupos de amigos, pequenos segredos públicos, gente pensando juntas, não concordando em tudo, mas querendo fazer um cinema maior que as bem-sucedidas bilheterias deste ou daquele filme... Cinema que não fuja de si e não tenha medo de seu público!

Nós que não fomos e que nunca iremos ao Oscar, que não falamos a mesma língua da indústria de Hollywood, precisamos relembrar que só haverá cinema brasileiro possível quando reaprendermos a reler nosso passado com a fome necessária e com o orgulho preciso!! Que deixemos de idolatrar ou espezinhar Glauber, Nelson Pereira, Bressane – mas que saibamos reinventar a partir de seus olhares um cinema brasileiro imediatamente necessário à sobrevivência de um país que é um projeto inacabado (como todo e qualquer estado-nação) mas que não precisa ser perdido em nome de valores alienígenas e de tanta falta de coragem!!

Falta encantamento no cinema brasileiro. Falta espírito, desejo de vitória!! Invenção positiva de nossos olhares, de nossos modos de ser vistos. Se não há um só projeto para o país, que não nos calemos em protoprojetos individualizantes de personagens humanóides. O que dizer de um sucesso como Eu, tu, Eles se vangloriar das palmas recebidas pelas feministas francesas e transformar isso em status para nosso público?! O público brasileiro foi expulso, a multidão brasileira foi expulsa dos cinemas e fica andando às margens, assistindo com o máximo de seu vigor as imagens da TV. Tenho medo de quem faz cinema para ser cult, preocupado em ir ao Oscar e se projetar no shopping center! Cinismo demais dizer que é apenas questão de aceitar os novos tempos...Tenho raiva de quem quer colocar um filme brasileiro, feito com dinheiro brasileiro, em espaço brasileiro, com rostos brasileiros, e vendê-lo no país como se vende um filme estrangeiro... autenticado por jornais e revistas de todo o mundo. Distante e frio a nossos olhos, tão parte de nossas vidas quanto qualquer outra imagem!!

Enquanto for tratado como público estrangeiro de si mesmo, o brasileiro deve mesmo assistir às grandes produções norte-americanas e à arte nobre dos europeus!... Entre um filme estrangeiro autêntico e um filme brasileiro acanhado, o primeiro, pelo menos, foi indicado ao Oscar!!! Ao Oscar!! Ao Oscar!!

Enquanto nossos padrões de qualidade forem aqueles ditados pelo mundo dos grandes poderes econômicos (EUA e, aqui dentro, a TV Globo) continuaremos distantes de nosso público.

Nós que não fomos ao Oscar, estamos num momento chave para nos olhar com mais cuidado, com mais carinho (e isso não quer dizer protecionismo!!...) e tentar nos entregar de forma mais direta às imagens que criamos. Por que há uma coisa que sobrava nos anos 60/70 nesse país e que perdemos pouco a pouco: o calor de nossas vontades de imagem, a energia de cada corte! E isso não significa um retorno à metáfora enfraquecida da violência estética, mas a redescoberta da força encantatória de nossas imagens. Talvez esse tempo barroco de realidades cruas e virtuais, seja o momento crucial para dar uma guinada em direção ao encantamento, ao fantasioso projeto que um dia tivemos para nossas imagens e que perdemos aos poucos (vítimas de nossa depressão pós-ditadura, de nossa remodelação de hábitos).

Vivemos em um lugar desconhecido e será apenas o nosso modo de olhar que poderá reinventá-lo. Eduardo Coutinho fala hoje sobre tentativa de inventar filmes junto com seus personagens, de inventar retratos de imaginários e propor um país... É dessa invenção, desse novo modo de invenção não totalitária que precisamos para desestruturar a imagem recalcada que temos de nós mesmos.

Para além de um cinema moralista do passado, busquemos agora o nosso cinema ética, o nosso cinema mítico, encantatório. Enquanto o Oscar se revolve em seus padrões e méritos, reinventemos nosso próprio nome. Que não seja mais então o Cinema Brasileiro, que o Brasil do moço Walter Salles vá para o espaço, velho e desgastado!! Inventemos um novo país de cinema, e demos a ele o novo nome de nossas imagens! Um país aqui, sujo de nós, cheio de gente , perto de nossos olhos – mais Brasil que o próprio Brasil!! E que os limites impostos pelas fronteiras sejam realinhados sim, diante de nós, mas não sob as ordens da ordem, mas sob a desorganização organizada de nossos olhares expansivos...cansados de ver cada vez mais e enxergar menos. Olhos imensos, suaves sobre a paisagem. Nossa resposta ao frenesi: a amplidão! A reflexão, o silêncio... Antes do movimento exato de um golpe, da risada de uma lâmina, da quentura de uma câmera... Nosso silêncio de reinventamento.

Como em A Hora e a Vez (...) – R. Santos – Nhô Augusto doma o burrico e (sob o vento forte fim-de -tarde) abre os braços diante do espaço. É esse o momento do bote da imagem, nosso modo de se erguer diante da ordem.

Cinema daqui, e de nós... cheio de tanta vontade.

Na TV, os prêmios de Hollywood começam a ser anunciados. Cansado, me recuperando de uma dengue, sento-me ao sofá e vejo parte do show.

Boa sorte a todos nós.

Felipe Bragança