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Mojica no caminho do aeroporto
Imaginem descoberta uma nova cópia de Shadows, de Cassavetes, ou de O Atalante, obra-prima de Jean Vigo. Imaginem o frisson que isso causaria. Em nosso combalido país, com nossa combalida cultura, a descoberta de uma cópia original de RItual dos Sádicos tornado O Despertar da Besta e mostrado ao público brasileiro apenas vinte anos depois devido a proibições da censura militar , um dos filmes mais importantes e inventivos de nossa filmografia, causa apenas um furor interno dentro da comunidade dos apaixonados pelo cineasta, que vão em peso participar de um belo ato público de entrega da cópia ao diretor José Mojica Marins, vestido adequadamente para apresentar o filme com a capa preta e as unhas enormes que o tornaram famoso como o personagem Zé do Caixão. Estamos no CCBB, no meio de uma gloriosa mostra de cinema marginal, que surpreendentemente lota diversas sessões, traz cineastas e causa um bafafá. A presença de Mojica, como era de se esperar, superlota a sala e a exibição do filme é a mais concorrida do festival mesmo que a sessão tivesse sido divulgada como "filme surpresa". A expectativa é muita. Ninguém tendo visto a nova cópia do filme, nem na moviola, os boatos variam acerca do que há de realmente novo nessa cópia que ficou retida no Arquivo Nacional. Os mais exultantes afirmam que há cerca de vinte e cinco minutos de material novo; alguns afirmam que a metragem é oito minutos maior do que a versão mais conhecida do filme e recentemente lançada em vídeo aqui no Brasil. Mojica, apresentando o filme e ainda não tendo visto a cópia, prefere falar apenas do momento em que teve a inspiração do filme: "Eu tive a idéia do filme quando estava numa delegacia e vi uma mulher que estava drogada ser espancada pelos policiais, à procura de nomes. A mulher foi levada pra trás da delegacia e, segundo eu soube mais tarde, nunca mais voltou. Então surgiu na minha cabeça um filme pra falar que o sujeito que usa drogas não tem mais tendência ao crime do que aquele que não toma, que é tudo a mesma coisa. Queria fazer um filme contra a perseguição que sofrem os drogados." Mojica se diz muito contente com a descoberta da cópia, apresenta a filha à platéia alta, imponente, vestida apropriadamente como filha de Zé do Caixão. Começa a exibição. As cenas adicionais que esperávamos não estão lá. E muito menos as seqüências parecem ter alguns planos adicionais, ou mais alongados. No fim do filme, a única coisa que parece claramente diferente é a ausência de um plano em que um jovem hippie vestido de profeta simula penetrar o órgão sexual de uma jovem estudante com um cajado de pastor. A penetração acontece somente pela sombra, mas é justamente esse plano que desaparece do filme. Fora disso, nada além, mesmo porque o filme está na cabeça o suficiente pois este que vos escreve reviu o filme em vídeo cerca de dez dias antes para escrever sobre o filme para a home-page da mostra (www.cinemamarginal.com.br). Mas nem tudo é frustração das expectativas. Além de o filme ser a obra-prima que é, adicione-se o fato de que é rarissimamente exibido (no Rio, de cabeça, lembramos apenas de uma exibição no Espaço Unibanco de Cinema, em 1998, a propósito do lançamento da biografia de Mojica, Maldito). Ainda a acrescentar, a cópia está nova em folha e, coisa rara em filmes preservados por longo tempo, as cores estão perfeitas, sem qualquer desbotamento vale lembrar que as únicas cenas coloridas do filme são as de delírios dos quatro personagens "cobaias" da suposta experiência com LSD que constitui a trama do filme. No dia seguinte, Mojica realiza uma de suas célebres oficinas de atuação, onde exibe suas técnicas pouco convencionais de direção de atores. Não tendo chegado a tempo, consigo entretanto um pouquinho do tempo do diretor, rodeado desde o dia anterior por jornalistas, fãs ardentes pedindo autógrafos e até um repórter do "Fantástico" que, diz-se, parecia assoberbadamente acreditar que era o verdadeiro show da noite. Fica acertado que falarei com ele no caminho entre o CCBB e o aeroporto, onde ele deve pegar a ponte aérea de volta para São Paulo. É tempo mais do que suficiente. Começo perguntando sobre a cópia. "Não tem muitas mudanças. Tem cortes, mas não foram feitos pela censura, e sim pelas pessoas que admiravam o filme e achavam que ele seria destruído. O único momento em que o corte fica perceptível é o do cajado." Bingo. Afirmando que tinha visto a recém lançada cópia em vídeo logo antes, pergunto sobre a melhor versão do filme. "Essa que você viu em vídeo é a cópia exibida em 1998. É a certa. Mas a melhor versão é a que vai ser lançada no DVD americano." Quando cogitado pelas diferenças de uma cópia para outra, ele é um pouco evasivo. Prefere falar do estado da cópia vista no dia anterior: "Está muito boa. Não tem muita diferença, não tem nada que não tinha nas outras cópias, mas uma coisa que deve dar pra aproveitar são as viragens [processo químico que muda a coloração de filmes, muito comuns em filmes feitos em preto e branco, sobretudo à época do cinema mudo, ndr], porque as cores estão muito boas, muito vivas." Digo que, apesar de sempre se autodeclarar um ignorante, um semi-analfabeto, Mojica tem uma grande sensibilidade e uma visão do ser humano muito forte, onde os delírios não partilhados somente entre os anormais conforme poderia sugerir o título de um de seus filmes , mas entre toda a humanidade, numa espécie de comunhão de alucinados. Ele revela verdades que o senso-comum jamais gostou de aceitar e, em todo caso, verdades que não consideram como suas. Ele é categórico: "O ser humano sofre de dupla personalidade. Aqui, entre amigos, na sociedade, o homem é uma coisa. Sozinho, entregue aos seus pensamentos e sonhos, ele é uma coisa completamente diferente. É esse mundo que eu tento colocar nos meus filmes", Mojica declara com a sabedoria de um terapeuta selvagem. Nesse momento saltamos do carro. Eu afirmo que seus filmes de fato assumem a lógica do sonho, da livre associação e dão livre vazão às proibições da sociedade e da moral ordinária. "Pois é. Você vê, eu só consigo dormir com a ajuda de remédios, então meus sonhos são sempre atribulados, eu só tenho pesadelos. Volta e meia eu acordo e escrevo alguma coisinha porque de repente pode servir de argumento para alguma coisa que eu vá fazer." A continuação da conversa é lógica: então, Mojica, o que você vai fazer? "Olha, agora eu vou pra França, vou ser homenageado na CInemateca Francesa em Paris e em uma outra cidade francesa, acho que Toulouse." E os projetos? "Pois é, eu estou com um projeto de filme que é o Muito Prazer, Meu Nome É Medo, esse é o filme que eu vou rodar, já está meio acertado. Tem também a idéia de retomar A Encarnação do Demônio [terceira parte da trilogia inicial do Zé do Caixão, que compreende À Meia-Noite Levarei Sua Alma e Essa Noite Encarnarei no Seu Cadáver], né?" Mas seus projetos não são só sobre cinema. Ele se declara bastante triste com os rumos dados à política cinematográfica nacional, sobretudo no que diz respeito às novas gerações: "Você vê, tem jovens muito talentosos no Brasil inteiro. Eu tenho vontade de fazer uma caravana incrível de jovens de todo o Brasil para ir a Brasília pedir ajuda ao presidente, porque assim sem auxílio não dá pra ter uma nova geração." Pergunto sobre os trabalhos de jovens que ele conhece: "Tem uma gente muito boa em Goiânia, tem o Dennison [Ramalho, ndr] que fez o Nocturnu e é do Sul mas está em São Paulo, tem o Paulo Sacramento... Aliás são eles que estão trabalhando o roteiro do A Encarnação do Demônio, estão fazendo umas coisas fantásticas, cheios de talento mesmo." Enquanto conversamos, sua filha fica de um lado para o outro a fim de confirmar as reservas da passagem. Ela acaba de inventar uma personagem chamada Lesvamp, uma vampira que é filha do Zé do Caixão. Mojica é contra: "A personagem é uma boa idéia, só que o Zé do Caixão não acredita em Deus nem no demônio, então ele também não acredita em vampiros. Vamos ter que fazer alguma coisa do tipo ele falar para ela que não é filha real dele, ou então ele vai fazer alguma coisa para ela acreditar que não é vampira coisa nenhuma. Ela tem o poder do sexto sentido, mas isso é uma coisa normal, acontece com muita gente". Nisso, a filha Lesvamp volta. É hora do check-in, mas há tempo ainda para uma pergunta sobre o que ele anda fazendo para TV: "Eu estou apresentando um programa que conta histórias de mistério de outras pessoas, mas é no canal 41UHF, então com esse negócio de TV a cabo eu acho que ninguém pega. Eu, por exemplo, tenho Sky e não pega. Eu tenho que pedir para outros me gravarem o programa". Mas você tem vontade de você mesmo dirigir alguns episódios? "Eles estão vendo isso". Então, o recado está dado. Para os que conseguem, vejam o canal. Mojica se dirige para a sala de embarque. Ele se dirige para São Paulo mas na semana seguinte estará pegando um avião para a França, onde receberá uma homenagem inédita. Boa sorte, José Mojica Marins! Ruy Gardnier |
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