Uma história do cinema francês


2X50 Anos de Cinema Francês, de Jean-Luc Godard e Anne-Marie Miéville (1995)

O vídeo Deux fois cinquante ans de cinéma français, dirigido por Jean-Luc Godard e sua companheira Anne-Marie Miéville, faz parte da série produzida pelo British Film Institute comemorativa dos cem anos do cinema. A proposta da série era que cada diretor escolhido discutisse, de um ponto de vista eminentemente pessoal, a história do cinema do seu país ou região. Assim Jean-Luc Godard foi encarregado da parte francesa, Martin Scorcese da norte-americana, Nélson Pereira dos Santos da latino-americana, Edgard Reitz da alemã, Stephen Frears da inglesa, Nagisa Oshima da japonesa, etc. Note-se de saída a distribuição promovida pelo BFI na qual os Estados Unidos foi contemplado com três episódios, outros países de cinematografia industrializada com um episódio cada e a América Latina inteira ficou reunida numa parte somente, ou seja, reproduziu-se a dominação econômica na divisão da série.

Os episódios aceitam tacitamente e comemoram os cem anos do cinema em 1995, apesar de em muitos lugares, como na América Latina, a produção local não tivesse completado ainda um século1. Eles seguem uma estrutura básica na qual se privilegia a seleção de trechos de filmes marcantes de cada país ou região, mesmo no caso de Nelson Pereira dos Santos que ousou mais e criou um entrecho ficcional visando destacar o melodrama latino-americano, especialmente o realizado no México. O modelo é certamente a parte norte-americana, na qual Martin Scorcese destaca e comenta os grandes momentos da produção norte-americana.

Godard e Miéville fogem a todo este padrão ao buscar subverter a celebração perguntando-se o que efetivamente ela significa. Neste sentido é essencial o anti-fetichismo resultante da recusa da seleção dos "mais belos momentos" do cinema francês e a conseqüente exaltação dos seus autores. Ao invés disso, optou-se por retrabalhar todo o material de arquivo de forma incansável através dos mais variados recursos videográficos, procedimento, aliás, utilizado nas Histoires(s) du cinéma. Assim como nos anos 60 Godard intervinha na banda sonora de forma a demonstrar o caráter artificioso de unidade fílmica, agora se trata de mexer na imagem para evitar o simples deleite do espectador consumista.

Note-se, de passagem, a ingenuidade de alguns comentaristas que criticaram o curta Da origem do século XXI (L’origine du XXIème siècle, 2000) pela recorrência das imagens de Hitler e Stálin, entre outras, tidas como óbvias. Ora, para Godard faz-se necessário justamente recuperar a memória do horror representado por estas figuras e desbanalizar suas imagens.

* * *

Grande parte de Deux fois cinquante ans de cinéma français compõem-se de uma longa entrevista realizada por Jean-Luc Godard com o ator Michel Piccoli, então presidente da Associação do Primeiro Século do Cinema, entidade oficial que foi responsável pelas festividades na França.

Na entrevista os enquadramentos em geral mostram Michel Piccoli frontalmente e Godard de costas para a câmera ou fora de quadro, os planos são longos e há poucas intervenções videográficas. O ator tenta explicar as atividades da associação que preside, mas progressivamente é pressionado pelo diretor-entrevistador. Piccoli afirma, de forma didática e oficialesca, que se celebra os cem anos da primeira projeção pública paga de cinema. Godard desmonta este didatismo: por que celebrar o cinema? Ele não seria suficientemente célebre? Ou já não seria tão importante? Propõe então que se ocupe a programação dos canais de televisão com filmes restaurados de Lumière, Méliès ou Alain Resnais.

Na continuação da entrevista Godard empareda cada vez mais Piccoli, a ponto de em certo momento este não conseguir quase falar. Leva-se ao limite a figura, muito comum, dos entrevistadores que entrevistam apenas para transmitir suas idéias. Porém, neste caso, com o sinal ideológico invertido, pois tais entrevistadores em geral são extensões ideológicas dos grandes canais de televisão, enquanto Godard está ali se batendo contra o poder político e econômico constituído, representado na associação presidida por Michel Piccoli.

A figura deste ator ganha especial interesse se lembrarmos que ele interpretou Paul Javal em O desprezo (Le mépris, 1963). Trata-se de um roteirista que concorda em trabalhar para o detestável produtor Jeremie Prokosch – interpretado por Jack Palance – devido às vantagens financeiras, e que admira realmente a figura íntegra de Fritz Lang. Em Deus fois cinquante ans de cinéma français, Piccoli não interpreta nenhum personagem, nem Godard quer ofendê-lo pessoalmente, mas a sua posição como presidente de uma associação oficial torna-o representante do poder político.

O emparedamento de Piccoli chega ao auge quando Godard mostra para ele e para os espectadores um folder confeccionado pela associação, no qual há o desenho dos irmãos Pathé segurando um fonógrafo e um projetor. Para Godard era fundamental que houvesse uma câmera, além disso, os irmãos Pathé não criavam nada, apenas copiavam os inventos dos Lumière e de Edison, representando, por fim, o "imperialismo francês". No momento em que o folder é mostrado para os espectadores, Godard segurando o impresso afirma ironicamente: "como se faz na televisão".

A câmera, cuja referência no folder Godard reclama, é um elemento central na obra deste realizador. No nível da representação, entre tantos filmes, basta citar o belíssimo plano de abertura de O desprezo no qual Raoul Coutard – fotógrafo da fita – desloca-se do fundo do quadro até o primeiro plano e gira a câmera em direção ao espectador. Mas também Godard preocupa-se com a elaboração de novos artefatos, daí toda uma relação intensa e conflituosa na segunda metade dos anos 70 com a Aaton para o desenvolvimento de um modelo 35mm leve e pequeno2.

A ausência da câmera no folder deixa patente a preocupação da associação, e por extensão do poder político, como relativa aos aspectos comerciais do espetáculo cinematográfico. É necessário "celebrar" o cinema porque ele não se tornou o que deveria ser do ponto de vista artístico, ficando restrito a repetição de fórmulas. A "celebração" mostra a sua ambigüidade ao confinar-se a um minuto diário na televisão ou a mostras centralizadas em salas especiais em Paris ou Lyon.

E Godard? Não estaria ele próprio envolvido nisto, já que o vídeo foi produzido para as comemorações do centenário? Quem pergunta é Michel Piccoli e a resposta é a seguinte:

"Eu não celebro o cinema. Eu faço, efetivamente, a história do cinema. Porque ocupei um pequeno lugar nela. E nunca ninguém me disse o que eu estava fazendo lá."

Faz história inclusive no sentido de que Godard neste momento já havia escrito Introduction à une veritable histoire du cinéma3 e estava realizando a série Histoire(s) du cinéma.

* * *

A questão que se configura ao longo da entrevista é como contar a história do cinema. Godard encontra uma resposta no que seria a especificidade do cinema francês, qual seja, a existência da crítica desde o seu início, diferenciando-o, por exemplo, do cinema americano que se preocupava apenas com os negócios.

No desfecho de Deux fois cinquante and de cinéma français tal especificidade é demonstrada com rara beleza através de recursos videográficos que sobrepõem fotos de críticos e seus textos, acompanhados no som por música e pela leitura de alguns de trechos. Seguindo uma certa cronologia temos Elie Faure, Georges Sadoul, Jean Epstein, Jean Georges Auriol, André Malraux, Jean Cocteau, Robert Bresson, André Bazin, Maurice Schérer - pseudônimo de Eric Rohmer -, François Truffaut, Jacques Rivette, Marguerite Duras e Serge Daney. Como podemos verificar a lista é elástica, envolvendo desde intelectuais que tiveram uma certa preocupação com o cinema, passando por críticos militantes e chegando a cineastas que se destacaram também como críticos.

Os trechos lidos pertencem a clássicos da literatura cinematográfica, mas para nossos fins interessa o último, de Serge Daney, cujo subtítulo é "O crepúsculo do cinema": "O cinema tem muita dificuldade de acompanhar a época que, em parte, quis e alimentou. Talvez isso seja normal."

Não pretendo discutir as idéias de Serge Daney, mas sua apropriação no vídeo de Godard e Mièville. Ao meu ver, com esta citação Godard repisa um dos seus temas recorrentes desde, pelo menos, os anos 80: a decadência do cinematógrafo – como escreveria Robert Bresson – enquanto instrumento privilegiado de reflexão sobre o mundo e não mero reflexo dele. Significativo desta preocupação em Godard é a figura do cineasta impotente para efetivar os seus projetos, personagem presente em Prénom Carmen (1982), For ever Mozart (1996) e Éloge de l’amour (2001).

Como o cinema não conseguiu ser o que deveria lhe resta "celebrar" um passado de promessas desfeitas, o mercantilismo todo poderoso e a progressiva mumificação das suas potencialidades críticas em salas de arte. Opor-se ao "crepúsculo do cinema" para Godard significa retomar a tradição de refletir sobre esta arte, tradição cuja metonímia no vídeo está representada pelo filão francês. Trata-se de uma forma de evitar, nas palavras do próprio Godard, um cinema totalitário mais preocupado em convencer do que em discutir e cujo grande expoente hoje é Steven Spielberg4.

Arthur Autran


1 Para uma reflexão crítica sobre a comemoração dos cem anos de cinema na América Latina ver ESPINOSA, Julio Garcia. La vida como um camino de atajos. Cinemais, Rio de Janeiro, n. 2, nov. dez. 1996.

2 GODARD, Jean-Luc. Gênese de uma câmera. In: ROSEMBERG FILHO, Luis (Org.). Godard, Jean-Luc. Rio de Janeiro: Taurus, 1985. p. 175-227.

3 Este livro foi traduzido para o português. GODARD, Jean-Luc. Introdução a uma verdadeira história do cinema. São Paulo: Martins Fontes, 1989.

4 GODARD, Jean-Luc. Le cinéma n’a pas su remplir son rôle. In: BERGALA, Alain (Org.). Jean-Luc Godard par Jean-Luc Godard. v. II. Paris: Cahiers du Cinéma, 1998. p. 337