Fitas do Sótão - Tomo 1


A época de ouro para os fãs de filmes esquisitos no Brasil foi o período entre o início da ‘normalização’ (leia-se criminalização das fitas piratas) do mercado e a entrada das majors com força total no mercado de vídeo brasileiro. Neste tempo, antes da ‘mentalidade Blockbuster’ (cem cópias do mesmo filme ao invés de cem filmes diferentes para o cliente escolher) se impôr às locadoras locais tivemos um período em que as distribuidoras independentes podiam lançar filmes pouco conhecidos/ obscuros, e estes ocuparem as prateleiras nobres de lojas sedentas por filmes selados. Foi a época áurea das ‘marcas diabas’, distribuidoras pequenas que lançavam literalmente o que conseguiam licenciar para nosso mercado.

Muitos filmes hoje celebrados em seu lançamento em DVD no exterior saíram por aqui nesta época, sem a censura e paranóia do mercado americano, ou seja, intactos. E eles ainda estão por aí, escondidos nas locadoras antigas que ainda carregam fitas lançadas há 10, 15 anos. A ‘missão’ desta coluna, que estréia nesta edição da Contracampo, é tirar essas fitas da obscuridade, do canto escondido que elas se encontram, e dar-lhes o destaque que elas merecem.

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VAMPYRES- As Filhas de Drácula

Quando saiu o livro Immoral Tales, da Pete Tombs e Cathal Tohill, eu já conhecia pelo menos de nome as façanhas de alguns dos cineastas ali retratados (Jess Franco, Jean Rollin, Allain Robbe-Grillet), mas Joseph Larraz de enquadrava na categoria dos ‘nunca ouvi falar’. O problema começou a se resolver quando ‘avistei’ uma fita azul chamada As Filhas de Dracula em uma locadora. O nome das atrizes ‘batia’ (Annoulka, Marianne Morris), a foto lembrava algo do filme em questão, mas cadê o nome do diretor na capinha? Ta atrás, escondido... é esse mesmo.

Trata-se de um filme independente de horror rodado na Inglaterra, algo raro. Marca a união do ‘mais inglês dos diretores espanhóis’, José Larraz, com o montador- produtor inglês Brian Smedley-Ashton. Por mais que tenha sido feito com técnicos e elenco britânico, inclusive um dos operadores de câmera residentes da Hammer, Basil Dearden, não lembra em nada a atmosfera dos filmes da ilha. Ao contrário das histórias maniqueístas e bem explicadas, temos uma lógica de pesadelo: as coisas vão acontecendo sem grandes explicações, e os inúmeros buracos no roteiro vão sendo preenchidos na cabeça do espectador.

Vamos à história: duas meninas que foram assassinadas por um amante ciumento voltam para atazanar os homens de seu condado. As duas, uma loira voluptosa (Marianne Morris) e uma ruiva ‘cool’ (Annoulka) seduzem, dão um ‘trato’ e matam suas presas a mordidas. Já que a polícia parece não se importar com o fato, um jovem resolve ir atrás das selvagens.

O filme se insere em uma longa série de filmes de vampiro com lesbianismo que se realizou nos anos 70. É um primo distante da ‘triologia das Karnstein’ da Hammer (Vampire Lovers/ Lust for a Vampire/ Twins of Evil- o último saiu no Brasil pela Zircon Vídeo como As Filhas de Drácula também), assim como do clássico Escravas do Desejo, de Harry Kümmel. Neste último filme, assim como em The Velvet Vampire, de Stephanie Rothman, e Lemora, de Richard Blackburn, os vampiros não tem presas, exibem freqüentemente sua nudez e tem poderes sobrenaturais, como atravessar paredes e desaparecer no ar, algo em comum com as vampiras de Larraz. Mas o parentesco mais próximo é mesmo com a obra de Jean Rollin: temos aqui o mesmo desprezo por roteiros muito explicados, por interpretações elaboradas (fica bem claro que as duas atrizes principais eram modelos de revistas masculinas), e a dupla de protagonistas femininas à solta, apenas invertida (na obra de Rollin normalmente a loira era a ´fria’ e a ruiva era a ‘caliente’).

O filme foi rodado por José (Joseph nos créditos) Larraz logo após os ultra complexos e esquisitos thrillers Deviation e Whirlpool, como obras mais comerciais, para consumo do grande público. Depois de Wampyres ele foi filmar na Espanha, dirigindo comédias, com a notável exceção do violento (e detentor de um dos títulos menos sutis do gênero) thriller policial ‘Violation of the Bitch’. A última notícia que se teve de Larraz, hoje setentenário, foi a gravação do hilário comentário dele (e do produtor) para o DVD de Wampyres. Ele comenta ter a ‘versão do Vaticano’ do filme, censurada em várias cenas, e se empolga em uma das cenas de sexo do filme: "I can see Annoulka’s pussy again!!!".

A fita brasileira, lançada pela Top Tape, está em condições razoáveis para a época. O filme foi rodado na abertura 1.80:1, logo a versão em tela cheia é relativamente simétrica, apesar de em algumas cenas em que está uma garota em cada lado da tela forçar o uso do recurso de squeeze (‘apertar’ a imagem para ela caber na tela de TV). A imagem é escura e granulada, como era comum nos lançamentos dessa época, mas é assistível, não chega a ser uma tragédia. Claro, quem puder comprar o belíssimo DVD da Anchor Bay, vá em frente, mas a fita é uma alternativa mais em conta para quem se interessar em assistir o filme sem gastar os usuais 20 dólares mais postagem...

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LADY FRANKENSTEIN- A Mulher de Frankenstein

O início dos anos 70 marcou uma fase de contestação dos ícones no cinema de horror. Em 1970, o mais tradicional de todos os estúdios, a Hammer, lançou O Horror de Frankenstein, versão revisionista (e irônica) da história clássica que reflete bem o espírito de seu tempo. No mesmo ano, saiu a produção canadense Dr. Frankenstein on the Campus, de Gilbert Taylor, versão cômica da história cheia de nudez e personagens típicos de chanchada. Por isso, Lady Frankenstein (1971), de Mel Welles, foi uma espécie de retomada séria do mito, já com as liberdades que estavam sendo permitidas com o relaxamento da censura (permitida com as imagens de transplantes sendo mostradas na TV).

O filme foi financiado em parte por Roger Corman (diretor de Welles em A Pequena Loja dos Horrores), que ‘entrou’ com uma parte do orçamento e sua estrela, Joseph Cotten. Os italianos (que em um primeiro momento iam produzir tudo sozinhos, mas na hora h um dos potenciais investidores deu pra trás) entraram com os ‘Studio de Paolis’ (mesmo lugar em que seria filmado um ano depois Frankenstein de Andy Warhol, de Paul Morrisey, que iria entrar mais a fundo no revisionismo) e o elenco cheio de caras conhecidas dos fãs do cinema europeu, como Mickey Hargitai e Rosalba Neri (creditada em todas as cópias disponíveis como Sara Bay).

O roteiro e a produção são surpreendentemente sérios, cheio de detalhes (como um dos mais detalhados laboratórios de sua época). A produção reúne qualidades de vários ciclos cinematográficos: cenários parecidos com os da Hammer, personagens como os clássicos da Universal (como os inevitáveis camponeses com tochas).

A história é relativamente simples: a filha do Dr. Frankenstein retorna à sua casa bem a tempo de ver papai concretizar sua mais famosa criação, ou seja, criar vida através de partes de cadáveres. A experiência não dá muito certo, porque o monstro mata o Dr. Frankenstein e sai pela villa acertando as contas com o dono do cérebro original. Logo a filha ‘convence’ (através de favores sexuais) o assistente de seu pai a criar outro monstro, com intenção de, além de vingar o pai, ter um escravo sexual...

Joseph Cotten dá uma enorme dignidade ao papel de dr. Frankenstein. Após ter tido lições de Vincent Price (seu colega de ‘Dr. Phibes) sobre como atuar em filmes de horror (‘nunca se leve a sério’), ele injeta credibilidade e complexidade em um papel que, nas mãos de um ator menos experiente poderia ser unidimensional. Rosalba Néri, sem dúvida uma das mulheres mais bonitas de todo o ciclo de horror italiano, compensa com seus decotes e simpatia sua falta de alguns fundamentos dramáticos. O veterano no gênero Charles Marschall (de I Vampiri, dirigido por Riccardo Fredda/ Mario Bava em 1959) acerta o tom no papel do assistente do Barão, passando bem o dilema entre sua paixão por Néri e sua lealdade ao Barão. O resto do elenco (começando pelo ex-Hércules Mickey Hargitai, catedrático da escola Cigano Igor de representação, no papel de inspetor de polícia tapado) já faz muita coisa em não estragar o filme.

Visto sem nenhuma referência, a história parece um pouco levada às machadadas, com algumas dezenas de buracos no roteiro. Isso se explica por um detalhe muito simples: a versão entregue por Mel Welles aos produtores tinha 100 minutos. A lançada, tanto na Europa quanto nos EUA(e conseqüentemente em vídeo no Brasil), tem 84. Como as cenas mais violentas e sexualmente agressivas ficaram, dançaram inúmeros momentos em que se explicavam certos detalhes da trama, e de aprofundamento psicológico dos personagens. Por um destes motivos esquisitos, a versão inteira do filme saiu em vídeo na Suécia, nos anos 90. Algumas empresas americana (como a European Trash Cinema) vendem conversões dessa fita.

A fita brasileira saiu no início dos anos 80, pela WR Filmes. Tem todos os defeitos das fitas de sua época: é escura, granulada e tem vários ‘machucados’ na imagem. Provavelmente é o mesmo master da produtora americana da Vestron Vídeo, que tem vários dos mesmos defeitos desta fita. Infelizmente os dois lançamentos em DVD do filme (um pela produtora de filmes em domínio público Madacy, outro pela DVD Drive In) tem defeitos: o primeiro é uma ‘conversão’ da antiga fita de vídeo. O segundo é masterizado a partir de uma cópia em 16mm, com todos os defeitos inerentes do processo (grão na imagem, cores chapadas, som baixo). Sendo assim, quem conseguir localizar a fita da WR terá uma ótima opção de ter o filme.

Carlos Thomaz Albornoz