ed tv,
de Ron Howard


EDtv, EUA, 1999

É interessante que um filme como ed tv, que em 1999 foi lançado nos EUA para um quase total desprezo de crítica e público, e que por isso nem apareceu nos cinemas brasileiros, de repeten adquira um interesse novo por conta de acontecimentos absolutamente externos a ele. Em primeiro lugar porque ele trata da questão dos reality shows, antes é claro da explosão recente dos mesmos, que hoje são a bola da vez da mídia (e o cartaz acima marca uma impressionante semelhança com o trabalho visual da marca do Big Brother). Depois porque neste domingo seu diretor, Ron Howard, acabou de tornar-se o mais recente vencedor do Oscar de melhor direção. Então, é especialmente oportuno nos voltarmos para este trabalho.

Dentro da carreira de Howard, trata-se de um filme que tenta mesclar suas duas "facetas", a de cineasta dito sério (que foi contemplada agora por Uma Mente Brilhante, mas antes disso era marcada por Apollo 13) com a do realizador do mais puro entretenimento (com exemplos que vão de O Grinch a Splash). Trata-se, é claro, de uma diferenciação puramente pro-forma e midiática, uma vez que qualquer leitor da Contracampo sabe que não prezamos por esta separação. Mas, vale citar mais como pulsão do cineasta, ou seja, entendermos em que chave ele tentava trabalhar o filme.

Porque esta idéia ajuda a explicar os fracassos do filme, que se encaixa numa linha de filmes como O Sexto Dia, de Roger Spottiswoode. Ou seja, assim como este filme fazia com a clonagem, este aqui faz com a questão da realidade como entretenimento: usa a atualidade e relevância do tema, mas se exime de qualquer seriedade de tratamento, abrindo mão de toda e qualquer discussão em busca de uma solução simplista e catártica ao espectador. Ao contrário do que se possa argumentar, não é preciso optar entre um filme "cabeça" ou "apenas diversão". Pode-se entreter com discussões relevantes tratadas sem leviandade, bastando ter disposição para tal, e isso claramente falta a Howard.

Porque uma vez apresentados os personagens e a trama principal, Howard se exime de um olhar mais curioso sobre os significados e limites entre "representação" e "realidade", e se dispõe apenas a criar mais uma batida trama de "bondosos" e "maldosos", onde o indivíduo é explorado por empresários maus, apesar de seu bom coração e da namorada que é quase uma santa. É verdade que aqui e ali há indícios de sub-tramas ou cenas que poderiam criar algum interesse, como a da personagem de Elizabeth Hurley, mas mesmo esta esbarra na disposição em levar a última instância. Por exemplo, se o filme quisesse mesmo criar um momento interessante bastava que Hurley interpretasse não uma personagem gostososa, mas ela mesma (à la John Malkovich em Quero Ser John Malkovich). Aí sim se criaria uma situação nova, de um anônimo se deparando com uma persona famosa e precisando tomar uma posição. Mas o fato é que, como em qualquer filme de violência inconsequente, aqui importam mais a historinha do que as consequências que os atos e ações reverberam na vida das pessoas.

Tendo sido pensado para agradar o público e a crítica, o filme conseguiu fracassar em ambas as instâncias. Boa parte deste fracasso foi ligado ao fato de ter sido lançado no mesmo ano de O show de Truman de Peter Weir, que também antecipava a questão do "shows de realidade", e que acabou sendo um grande sucesso tanto de público como de crítica. Olhando hoje, com o olhar já bem mais "educado" em termos deste tipo de programa, percebemos que a proposta de análise dos dois filmes é completamente diferente, tanto quanto um BBB é de um No Limite. Porque no caso do filme de Weir tratava-se acima de tudo de uma pessoa cuja vida era fabricada para ser entretenimento sem o seu conhecimento, e daí advinha a trama. Neste aqui, trata-se da questão das celebridades instantâneas geradas pelos reality show, cujas vidas tornam-se objeto de atenção de repente. Ou seja, tratamos aqui do homem comum lidando com a fama, um tema completamente diferente do homem cuja vida inteira é um produto fabricado.

Mas a principal diferença entre os dois filmes é muito maior do que apenas temática, e é sim de postura. Ao construir seu filme, Peter Weir ousou quebrar uma barreira que para Howard é sagrada: a do olho da câmera do cinema. Ou seja, no filme de Weir (e isso é assumido especialmente no final, com as cenas dos espectadores em casa) há o pulo da tela do cinema, e o espectador sentado na sua cadeirinha confortável sente que se fala com ele e sobre ele também. No jogo metalinguístico de câmeras e mais câmeras, de representações seguidamente desvendadas (as câmeras de TV constantemente em cena, os diretores do programa, as imagens nas TVs), há a barreira final da última câmera, a do filme, e o seu diretor. Weir quebra esta separação, e nos coloca no seu trabalho. Já Howard, como manda o figurino do bem comportado "artesão de Hollywood" que é, nos mantém a distância, apreciando seu teatrinho de marionetes. Que se já parecia pueril antes, depois de Casa dos Artistas e BBB tornou-se francamente anacrônico.

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A edição em DVD do filme torna-se um material especialmente esclarecedor destes problemas apontados, por serve de prova "ao vivo" de que outros caminhos o diretor poderia ter tomado, e aparentemente até roteirizou e filmou, mas que ficaram fora do filme em si. Ocasionalmente a inserção deste tipo de material (os chamados "outtakes") ultrapassa a mera curiosidade e realmente empresta novos significados e configurações sobre o filme e seu processo de realização. Neste caso, as cenas todas que foram cortadas emprestavam uma interpretação completamente diferente ao personagem principal, e davam um tom francamente perturbador ao tal fenômeno das celebridades.

Para começar, foi cortada toda uma linha narrativa que introduzia um outro personagem que lançava um reality concorrente ao de Ed. Chamado "Joma", empresta uma outra motivação a Ed quando decide não desistir do programa: ele o faz simplesmente porque quer ser "melhor", quer bater o inimigo. Ou seja, se torna francamente obssessivo e ganancioso, o que foi tirado da edição final. Foi tirada também toda uma ação que indicava algumas imposições da diretora do programa (interpretada por Elle DeGeneres como uma personagem simpática que enfrenta a direção da rede de TV na defesa de Ed) à realidade, emprestando a ela ares absolutamente manipulatórios e nada inocentes. O interessante de ver este tipo de material no DVD é ter nas mãos substratos para aquele tipo de argumento "ah, poderia ser bem melhor...", que geralmente prima pela inutilidade (pois não se pode saber se seria ou não melhor, temos que trabalhar com o filme que temos). Aqui é caso de se afirmar: poderia ser bem melhor, e bastava ter colocado o que eles mesmos filmaram e que foi retirado em nome do simplismo e da idiotização.

Finalmente, deve-se destacar que há uma última cena absolutamente impressionante entre as não incluídas: depois do "final feliz" que temos no filme, haveria uma continuação da mesma cena, terminando com um tiroteio bastante perturbador que lembra a questão John Lennon quanto à relação com as celebridades. Seria quebrada então a tal tela que nos separa do filme, comentada acima. Cortada do filme, fica a contemporização e o "feelgood". Mas é fascinante ver que este sentimento é tão frágil e redutor que o próprio realizador do filme sabe disso. Mas, junto com o estúdio, preferiram não "perturbar" a platéia com tais idéias, o que vai bem de encontro ao tipo de maquiagem da realidade que o mesmo Howard cometeu recentemente no seu oscarizável filme. Trata-se, pelo menos, de um cineasta coerentemente covarde. Como se vê, em termos de bilheteria adiantou pouco. E perderam a chance de ter algum interesse histórico. Como está, os extras do DVD são bem melhores do que o que entrará para a história do cinema (ou melhor, não entrará) como sendo o filme edtv.

Eduardo Valente