Diário de Toulouse

Quarta-feira, 18h30. Estou feliz em deixar a cinza Paris pelo sol da cidade cor-de-rosa. Chegada no aeroporto de Toulouse, junto com mais alguns convidados. A língua do festival é definitivamente o espanhol. E ai de quem não se virar. Me sacrifico e aceito ir espremido em meio às bagagens numa pseudo-van precária. Simpatizo com Juan Pablo, sentado ao meu lado, um ator chileno que trouxe uma fita debaixo do braço. É para apresentá-la na oficina de projetos inacabados que os exibe a produtores e distribuidores franceses interessados em investir na finalização de filmes. A caminho, o acidente: levamos uma violenta trombada por trás que deixa Juan Pablo com o pescoço dolorido por um bom tempo. Estou ileso apesar de ter corrido risco de vida. Se a batida tivesse sido mais forte, teria morrido esmagado pelas malas, no caminho do aeroporto para o hotel. Essa será a nossa private joke durante o decorrer do festival: viajamos, Juan Pablo e eu, num roteiro em que o personagem principal morre no final do filme, dessa maneira ridícula, na hora em que vai contar um terrível segredo...

Com o acidente e mais o trânsito, acabamos por chegar ao hotel uma hora mais tarde, exaustos. Resta buscar o crachá, os preciosos tíquetes para comida e bebida e demais documentação fornecida pelo festival. Perco mais uma hora, indo à sede do festival só para descobrir que agora a imprensa é atendida em outro local, e aguardando pelo assistente da assessora de imprensa. A famosa (des)organização do festival de Toulouse ataca outra vez. Mas a simpatia e descontração de todos compensa largamente. Este é definitivamente o lugar para um festival de cine latino-americano. Oito horas passadas, perdi o cineconcerto programado: uma fita muda colombiana acompanhada por música ao vivo. Cinema, só amanhã. Opto pela atividade mais importante do festival: tomar uma cervejinha no ponto de encontro da cinemateca. O espaço foi invadido pela juventude de Toulouse, chego a me sentir um estranho no ninho.

No dia seguinte, inicio a maratona cinematográfica. Resolvo me concentrar nas fitas brasileiras que não conheço. Este ano a presença brasileira está bem legal, o que não é sempre o caso. A presença argentina é sempre hegemônica, suspeito haver uma leve preferência pelos nossos vizinhos portenhos. Os demais países contribuem com uma ou duas fitas, que é para confirmar o adjetivo "latino-americano" do festival. Na lista dos filmes em competição, há dois brasileiros: Domésticas e O Invasor. Apesar de não conhecer os demais concorrentes, suspeito que há sérias chances do vencedor este ano ser um brasileiro. Além disso, quem preside o júri é o José Carlos Avellar. Com a desprogramação de Amores Possíveis, acabo assistindo a um belo primeiro filme, rodado em vídeo. La Caja Negra é uma reflexão sobre o corpo, a velhice, a solidão, realizada com incrível maturidade por um moleque de 21 anos de idade, o argentino Luís Ortega. À noite, retomo a principal atividade do festival: papo e cerveja. A presença argentina é maciça e jovem: a maioria dos cineastas presentes aparenta menos de 25 anos de idade.

11h00 da manhã. É dia de conferência de imprensa. Fui solicitado para ser o tradutor oficial do Mojica, que apesar da origem espanhola não fala uma palavra de castelhano e muito menos francês. Junto com ele, são mais quatro outros diretores, produtores ou profissionais ligados a cinema latino-americano. Enquanto Mojica aguarda pacientemente a sua vez, observo os palestrantes. Alguns de calça e camisa social, os mais jovens de jeans e camiseta. Mojica, aos setenta anos de idade, com seus anéis extravagantes, seu relógio em forma de caveira, as unhas já não tão grandes mas ainda assim fora do normal, é definitivamente o mais arrojado, o mais roquenrol. O tradicional papo sobre condições de produção na sofrida América Latina voa pelo ares quando chega a hora da performance do nosso maldito. A platéia morre de rir, cativada pelo seu magnetismo e a extravagância das declarações. A certa altura ele confia: "Olhem quanta mulher bonita aqui. Ela é bonita, ela também, ela também. E olha quanto homem feio. Eu sou feio, ele é feio (apontando para o filho Crounel), aquele senhor também. Então me criticaram por fazer contracenar lindas mulheres com homens feios. Tenho lá culpa se há 90% de mulheres bonitas e apenas 10% de homens bonitos no Brasil? Eu apenas quis que os feios pudessem se sentir mais à vontade frente a belas mulheres."

Devolvam o Alexandre Borges à Globo! O rapaz quase estraga o filme do Beto Brant. Felizmente, o Titã Paulo Miklo arrasa no papel de um matador muito do folgado. Subversão das relações sociais (quem manda em quem?), dilema moral e mergulho em situações limites num filme que tem algo de Ferrara...

Após a projeção do Urbania, comentário de um crítico francês: "Pôxa, pensei que o curta que passou antes [Palace II, de Fernando Meirelles e Katia Lund] fosse o longa. Já estava entusiasmado. Que pena." O Meirelles está com tudo.

Sábado, penúltimo dia do festival. A tradição, aqui, é anunciar o resultado das competições antes da cerimônia de entrega dos prêmios. Ontem à noite tive o privilégio de assistir, na sala da imprensa, ao início da apuração dos votos do público: quatro jovens benevolentes da equipe do festival (todos que aqui trabalham são benevolentes) em torno de uma mesa, separando os votos enquanto corre cerveja e um back. Fico imaginando o júri de Cannes deliberando a respeito da Palma de Ouro do mesmo jeito: isto explicaria alguns resultados. Mas voltando à premiação: marcada para as onze, descobrimos que foi adiada para as doze. A maioria dos presentes, com cara de ressaca da festa da véspera, amaldiçoa a lendária (des)organização do festival. Mas o dia está lindo, e lagartear ao sol, no pátio da cinemateca é um santo remédio. Chegam os jurados, anunciam-se os prêmios: o público escolheu o colombiano Bolívar soy yo, de Jorge Alí Triana, uma simpática porém desigual sátira em torno do mito de Bolívar. Espantoso: se nós brasileiros não conhecemos nada da história do Gran Libertador quem dirá a francezada. Público é definitivamente um bicho imprevisível. Eu apostava no alto astral do Domésticas. E ele acabou levando o prêmio principal: uma ajuda para distribuição do filme em território francês.

Estava programado para o encerramento Abril despedaçado. Ficamos informados que o rapaz Walter resolveu remontar seu filme. Em seu lugar é projetado o Bolívar. Fico pasmo: a atuação noveleira, baseada em cacoetes televisivos, não é um mal exclusivamente brasileiro. Em comparação, o Alexandre Borges é um gênio.

Meu último dia em Toulouse acaba como devia acabar: em festa. A reputação de festeiros dos latino-americanos não deixa nada a dever aos Toulousanos. O povo curte tango e salsa. Está na hora de apresentá-los ao samba e ao forró. Mas ainda somos minoria no festival.

Difícil foi acordar às onze do dia seguinte para deixar a cidade cor-de-rosa de volta à cinzenta Paris.

Carim Azeddine