Da angústia maravilhosa de ser "marginal"


Paulo César Pereio em Bang Bang de Andrea Tonacci

Um assunto que esteve presente em todas as discussões sobre o Cinema Marginal durante o ciclo de debates da mostra no Rio de Janeiro foi a constante comparação com o cinema nacional dos últimos anos, com a nossa conjuntura atual. Tendo origem no texto de Ismail Xavier presente no catálogo do evento (não reeditado no Rio, mas que tem seu conteúdo disponível em www.cinemamarginal.com.br ), esta tentativa de analisar as duas épocas a partir de uma comparação geralmente tocou no ponto da "falta de ousadia" do cinema brasileiro atual, especialmente segundo os depoimentos de Lygia Pape e de Luiz Rosemberg Filho. Geralmente priorizando as questões estéticas ou formais, esta linha de impressões, além de um pouco óbvia, parece mais um senhor chute no cachorro morto. Dos mais compreensíveis, aliás, vindo daqueles que viveram em primeira mão aquele momento de riqueza criativa e liberdade artística, como é o caso dos três citados acima. No entanto, a partir da perspectiva de uma platéia eminentemente jovem, e representando um olhar crítico da mesma geração, me incomoda um pouco todo e qualquer posicionamento que acaba implicando numa certa nostalgia, num saudosismo meio Ruy Castro-Sérgio Augusto, meio "nunca houve nem nunca haverá um bairro como a Ipanema nos anos 50-60". Como se disse, é apenas natural, até porque para toda geração nunca houve uma época como aquela na qual ela viveu, e acima de tudo, foi jovem. É um dos impulsos mais básicos da memória humana, que se apega ao melhor do que foi, e apaga um pouco de tudo de negativo. Difícil mesmo é viver no hoje, seja quando jovens ou não.

Por isso me interessa muito mais, como alguém que teve o primeiro contato com boa parte destes filmes por ocasião desta mostra e que, portanto, tem a distância de olhar a produção do período como algo já colocado no seu tempo, e não na medida em que está sendo produzida, tentar buscar o que podemos puxar disso e aplicar no hoje, como críticos, como cineastas, como membros de outra geração. Porque há algo de único na geração do Cinema Novo/Cinema Marginal, uma vez que eram dotados de quatro características complementares que permitiram fazer o que fizeram artisticamente: talento, inegavelmente; arrogância, ainda mais inegavelmente; a vontade de ir contra o que havia sido feito antes deles; e as circunstâncias macro-históricas. Junte-se estas quatro coisas, e eles deixaram o legado que deixaram.

Acontece que hoje, conforme Ruy Gardnier já observou num texto publicado aqui na Contracampo quando da votação dos melhores filmes da História do Cinema Brasileiro, as gerações que se seguem precisam enfrentar este legado não como algo a ser renegado, mas sim como algo a ser comparado constantemente, como aconteceu nestes debates. Parece uma bobagem, uma coisa pequena, mas certamente não é. Como notamos na nossa enquete, praticamente 85% dos considerados "melhores filmes brasileiros" são do período dos anos 60-70. Hoje, se faria necessário, portanto, o mesmo talento e no mínimo o triplo de arrogância, uma vez que há todo este passado cobrando um diálogo e impondo um padrão de excelência e, como vimos na mostra Marginal, de desafio às convenções. Como se "negar o pai" como deve fazer toda geração ao se impor, se ele é tão superior? Como lidar com isso sem se tornar mero pastiche, sem se tornar uma cópia lavada, sem se tornar pueril, se adaptando aos seus tempos, escapando às cobranças? Estes são alguns dos enigmas da esfinge do cinema nacional atual, ou pelo menos as mais conceituais delas (uma vez que ainda temos as da relação com o público, do modelo de produção, do enfrentamento do mercado ocupado, etc).

Com isso tudo na cabeça, minha tentativa foi a de olhar os filmes desta mostra de frente em busca do que se poderia tirar de mais essencial deles, no quesito conceitual, para aplicar ao hoje, sem saudosismos inúteis. E, de repente, uma palavra sobressaiu: angústia. Ou qualquer outro significado semelhante: desespero, desilusão, necessidade, estrangulamento. Ou seja, o que me impressionou e impressiona mais nesta produção, especialmente na comparação com a de hoje, não é o humor, o talento, a liberdade formal, a despreocupação com o bom gosto, etc. É a motivação, acima de tudo. Aquilo que fazia o ato de filmar parecer o mais importante dos objetivos, fazer a câmera ligada um objeto não só de arte, mas de sobrevivência. É isso que transborda destes filmes e mexe com a platéia, e que tanto falta na produção atual.

Não é caso aqui de simplesmente localizar o problema e olhar para ele como se fosse algo geracional ("aquela geração tinha tesão pelo cinema, e a de hoje não tem"). Porque a equação precisa de muito mais variáveis que ajudem a entender o acontecimento. Temos que pensar nos custos de produção de cinema, que tanto encareceram em 30 anos. Temos que pensar que a TV na época era a novidade em estabelecimento, mas que o cinema ainda estava vivo em boa parte do país, com muito mais salas e público potencial. Temos que pensar numa tal de ditadura que, no poder, impulsionava não só o artista, mas o ser humano, para um posicionamento existencial claro e definitivo. Temos mesmo que considerar o trajeto do cinema brasileiro nestes 30 anos. Temos que pensar e ponderar, em suma, numa série de condições que nunca explicam sozinhas, mas certamente se somam, para compor um painel.

Mas, ainda assim, mesmo com tudo isso somado, precisamos continuar olhando e aprendendo com os filmes que não se pode pensar num cinema anódino, num cinema sem fôlego, de uso eventual e pontual. Num cinema de butique, que não atinge a nada ou a ninguém, e que não deixa marcas. Na luta por um contato com o público, com o Governo, com uma "relegitimação", o cinema nacional deixou o coração do lado de fora. Em termos políticos, parece que fizemos todos um pacto com o PFL para podermos tomar o poder. E, pior, um poder que nem se realiza. E ainda dizemos em alto e bom tom: "Esqueçam o que eu já filmei".

O que impressiona no Cinema Marginal, agora apresentado, é justamente a necessidade acima de tudo e de todos de se dizer algo, de falar, de respirar, em suma, de filmar. O mais interessante é justamente ver como para cada cineasta isso se materializa num diferente impulso, num formato, numa escolha estética e formal quase oposta. Mas, ainda assim, pode-se sentir pulsando logo atrás da tela toda esta disposição a saltar no escuro.

Seja nos esgarçados planos-sequência demenciais e hipnóticos de um Sem essa, aranha, seja no humor fino misturado com um teor político afrontoso e quase didático de um Viagem ao fim do mundo, seja nas alegorias totalizantes e ao mesmo tempo demolidoras de um Orgia ou Hitler 3º Mundo, seja no cinema do absurdo domínio formal e amor ao cinema e ao ato de filmar de Bang bang, seja no afronte estético quase sintomático de Perdidos e Malditos. Estando por trás da câmera Sganzerla, Cony Campos, Trevisan, Tonacci ou Veloso, usando que formato ou que estrutura narrativa fosse, o que sempre ficava de cada filme era a mesma impressão: filmar ou morrer. Falar, comunicar. Mesmo que na quebra completa da comunicação simbolizada por um Sagrada família, por exemplo. Porque, no caso, a comunicação não devia ser entendida como uma tentativa de se moldar ao que alguém queira ouvir, mas sim ao que se precisa dizer, e esperar que alguém ouça. Isso é verdadeiramente bonito em cada um destes filmes, e devastador quando olhados em conjunto: eles gritam, eles clamam. "Me ouçam, me ouçam!!"

Na leitura que Ismail fez de seu texto, ele traçou dois paralelos interessantes com o cinema de vanguarda americano, que ajudam a entender a complexidade da pulsão por estes gritos. Primeiro ao ser perguntado de uma possível semelhança com os filmes de Paul Morrissey e Andy Warhol, Ismail disse que pode-se perceber um desejo de confrontar a norma artística vigente em ambos os casos, mas que os trabalhos dos americanos parecem mais preocupados com a discussão em termos do valor da arte, de fato. É fácil entender isso pelo caminho da presença da ditadura, uma vez que o cenário americano, mesmo dentro de um contexto de revoluções (sexuais, raciais) e de contestação, não tinha a urgência política que esganava o artista no Brasil. E a outra (e talvez mais fascinante) comparação, que é com o cinema de fato underground que se espalhou pelos EUA em circuitos alternativos, produções em 16mm, super-8, com diferentes metragens, exibidos em cineclubes, museus, universidades. O cinema marginal brasileiro pelo contrário e de maneira absolutamente inesperada, como bem ressalta Ismail, escolheu o formato canônico do grande espetáculo cinematográfico: o longa metragem em 35mm. Olhando e somando-se estes dois fatores, voltamos ao já exposto acima: a necessidade de confrontar-se artística e politicamente com o seu entorno, misturada com um desejo grande de ser visto, de ser aceito. A necessidade de falar e o desejo de ser ouvido.

É por estas duas e inseparáveis pontes, me parece, mais que por qualquer outro caminho, que o cinema brasileiro pode e deve recuperar sua urgência. Partindo da arrogância de se achar importante, necessário para o artista antes de tudo, e para o país e o cinema em geral. Se não for assim, não se justifica como arte e é sempre pastiche envergonhado. Desde o mais comercial ao mais experimental, o desejo é que tem que ser a norma de toda arte significativa. Se conseguirmos tirar isso de uma mostra do Cinema Marginal, já estaremos muito bem. Sem saudosismos, mas com muito tesão.

Eduardo Valente