Ody Fraga, a dama e a filha



O Sexo Mora ao Lado de Ody Fraga (1975)

"Eu curto principalmente um cinema mais intelectual.
Eu acho o Steven Spielberg um imbecil de flipperama"
.
(Ody Fraga, 1984)

São bem poucas as semelhanças entre A Dama da Zona e A Filha de Calígula, dois filmes da Boca do Lixo paulista. Há mesmo uma grande distância entre os dois filmes e, a não ser por alguns detalhes, seria quase impossível identificar, neles, o mesmo diretor, Ody Fraga. No entanto, os dois trabalhos nascem de uma específica conjuntura de produção cinematográfica, determinante de seus aspectos comunicativos.

Ody Fraga, catarinenese de Florianópolis, foi uma das principais figuras do cinema da Boca, tendo roteirizado mais de 50 filmes e dirigido mais de 20. Vindo do teatro e da televisão, aportou no final dos anos 50 em São Paulo, onde passou a freqüentar as rodas de cinema na rua Sete de Abril e, posteriormente, na rua do Triumpho. Foi o responsável pela adaptação para o cinema de O Cabeleira (1962, Milton Amaral), filme-acontecimento que reuniu iniciantes como Cláudio Portioli, Pio Zamuner, Miro Reis, além de Antonio Polo Galante e Ozualdo Candeias. Ody Fraga morreu no ano de 1987, e fez parte de todo o ciclo da Boca do Lixo. É lembrado até hoje pelos que continuam freqüentando a rua do Triumpho. Pragmático como a maior parte dos que ali trabalhavam, admitia não levar a sério 90% dos roteiros que escrevia sob encomenda. Mas ressaltava na pornochanchada vários aspectos reveladores de um contexto social real.

Em entrevista a Nuno Cesar Abreu (Filme Cultura n. 43, 1984), afirmou: "Muitas vezes você vê muito mais da vida, da cultura, da sócio-política, da realidade brasileira mesmo, numa pornochanchada do que numa fita do Khouri." Ody enxergava criticamente a crise dos produtores da Boca ("o gabarito mental era pequeno e eles tinham o fôlego e o gabarito mental na mesma dimensão"), ao mesmo tempo em que recusava o cinema pequeno burguês, psicologizante, o chamado "cinema Casa e Jardim".

* * *

A Filha de Calígula (1981) é uma típica produção A.P. Galante, ainda pertencente ao período áureo da pornochanchada ligeira da Boca do Lixo. Foi rodada em 15 dias, usando alguns poucos cenários naturais (uma cachoeira, bosques e riachos) e com grande parte das seqüências rodadas no estúdio em fundo-infinito do próprio Galante. Não há atores conhecidos do grande público, mas nomes ligados ao teatro (Roque Rodrigues, que interpreta o conspirador Cipião) e às próprias produções rotineiras da Boca (Bentinho, ator de A Margem, e Daniele Ferrite, a atriz principal, entre outros).

A Dama da Zona (1979) está, por sua vez, nitidamente mais preocupado em legitimar-se como exemplo de bom artesanato no contexto da Boca. A produção (Kynema Filmes) é do ator e diretor Cláudio Cunha (que é também autor do argumento), e no elenco há a presença de atrizes como Marlene Silva (a Dama do título) e Marlene França, conhecidas do público não só de cinema como da televisão. Nota-se ainda um maior cuidado técnico na fotografia e no trabalho de câmera (ambos de Carlos Reichenbach) e na cenografia.

Tanto A Dama... quanto A Filha... filiam-se a um tipo de estratégia muito comum ao cinema da Boca e à pornochanchada (como, de resto, ao filme de gênero): ambos têm como referência imediata dois grandes sucessos de bilheteria do cinema. A Dama da Zona, como é evidente, extrai seu filão de A Dama do Lotação (1976, Neville D’Almeida), sucesso estrondoso com Sônia Braga, cujas rendas selaram inclusive uma grande amizade entre seu diretor e Nelson Rodrigues. Já A Filha de Calígula tem sua origem – claro – no Calígula de Tinto Brass (1979), cuja proibição e posterior liberação no Brasil, nos anos 80, foram cercadas de polêmicas e golpes publicitários. A. P. Galante, seguindo sua habitual estratégia de mercado, aproveitou o gancho e chegou aos cinemas com seu "calígula" antes mesmo do original italiano.

A Dama da Zona e A Filha de Calígula são dois exemplos de um cinema preocupado em pautar-se de acordo com o mercado cinematográfico. E, ao contrário do que se passa hoje, isto não significava nenhum discurso ideológico a priori, mas unicamente a observação dos sucessos de público – já que, na época, havia público. Para concretizar este diálogo, tanto serviam como ponto de partida exemplares brasileiros (no caso de A Dama da Zona) quanto estrangeiros, mesmo que (ou justamente porque) interditados pela censura, como é o caso de A Filha de Calígula.

* * *

A relação de Ody Fraga com A Dama da Zona e com A Filha de Calígula parecem ser claramente diversas e, mesmo não possuindo informações precisas a respeito das produções, é fácil perceber as diferenças na gênese de cada uma delas.

Embora o argumento de A Dama da Zona seja de seu produtor (Cláudio Cunha), o que poderia configurar um típico trabalho de encomenda ao diretor (muito comum no cinema da Boca), o roteiro e os diálogos são do próprio Ody. Ao longo da narrativa do filme, sentimos a construção deliberada de um universo muito familiar ao diretor, que dele se utiliza para criar personagens bem populares, à maneira de um neo-realismo filtrado pelo humor televisivo do tipo A Praça É Nossa. Há ainda, entre eles, a presença irônica e destoante de dois jovens cineastas com uma câmera na mão, a marcar uma visão crítica muito particular de Ody Fraga sobre o cinema. Por fim, a intenção de Ody de afirmar-se como autor transparece logo no início dos próprios letreiros de apresentação, quando, após o título, corta-se para a seguinte cartela: "Um filme de Ody Fraga".

Ody era conhecido por sua capacidade de trabalho e por sua rapidez. Estas qualidades certamente pesaram na escolha de Galante, quando decidiu chamá-lo para roteirizar e dirigir A Filha de Calígula. Neste filme não há nenhuma intenção autoral (no sentido mais sério que a expressão possa ter), embora sejam claras, aqui também, muitas das intervenções de Ody Fraga, algumas até de cunho político e metalingüístico. A precariedade da produção, forjando cenários históricos com adereços improvisados, permitia fazer piada com o próprio filme. E, na banda sonora, ao lado das músicas grandiosas recolhidas de antigas gravações pelo próprio Ody (para dar um "ar romano" à narrativa), a edição de som buscava um tipo de escracho quase experimental, que de certa forma compensa a falta de recursos estilísticos da fotografia. Tais expedientes, no entanto, restringem-se a algumas poucas passagens de A Filha de Calígula, sendo o tom dominante a avacalhação característica da pornochanchada, com todos os seus ingredientes habituais.

A Dama da Zona e A Filha de Calígula refletem, assim, dois momentos diversos na trajetória de Ody Fraga como diretor, no âmbito da Boca do Lixo. O desnível entre ambas as produções não deixa de marcar organicamente suas intenções.

Em A Dama da Zona, por mais que o intuito comercial seja determinante (e é), respira-se um clima próximo ao de certas produções de raízes cinemanovistas voltadas para o público (caso de Aventuras Amorosas de Um Padeiro, de Waldir Onofre, sem falar da própria Dama do Lotação – por sinal, ambos produzidos por Nelson Pereira dos Santos), além de – um pouco pela pena de Ody, um pouco pela câmera de Reichenbach – filiar-se também ao melhor do cinema paulista dos anos 70. O resultado não deixa de ser, contudo, um tanto irregular: a narrativa às vezes oscila entre a sutileza e a poesia de algumas cenas e a evidência grosseira de flash-backs desnecessariamente explicativos, como se o diretor quisesse ter certeza de que o público entenderia o que se passa.

A Filha de Calígula, com sua despretensão cultural, resulta mais orgânico, embora menos rico em termos cinematográficos. Preocupada apenas em escolher um (nem sempre melhor) ângulo para levar adiante a história e as trepadas, a câmera parada às vezes deixa correr diálogos inteiros entre os personagens que se posicionam frontalmente diante do espectador, nos quais se menciona (em chave esculhambada, é claro) Marx, ditadores comunistas, abertura e repressão política, analfabetismo, miséria do povo, elitismo, além do próprio cinema brasileiro e sua estrutura de feudalismo cultural. Mas em nenhum momento o que está em jogo são "verdades proferidas": joga-se, sim, com o humor popular, com provérbios e avacalhos, assumindo o tempo inteiro uma visão reacionária das estruturas sociais para, com ela, acusar a elite e o poder. Trata-se, portanto, do jogo duplo de conformismo e denúncia já amplamente analisado no cinema da pornochanchada, e que em A Filha de Calígula está perfeitamente de acordo com a estrutura narrativa, com sua proposta de comunicação e com a precariedade dos meios, o que acaba por unir, e isso pode ser involuntário ou não, teatro, farsa circense e cinema, quase didaticamente.

* * *

A Dama da Zona se passa numa vila, um quase-cortiço no bairro do Bexiga, e seus personagens, a maioria muito pobre, possuem preocupações concretas: ganhar dinheiro para pagar o aluguel ou para comprar comida, arranjar emprego, mudar de vida, enfim. O sexo é, claro, determinante, não só para o molho do filme como para os personagens. Quase todos dependem financeiramente do sexo: a prostituta, o cafetão picareta, o voyeur que vê as moças tomando banho no banheiro coletivo, a mulher que se prostitui para poder sustentar a casa etc. Quem já está estabelecido financeiramente (caso do português dono do botequim, ou do dono da gafieira) procura tirar vantagem do sexo.

De qualquer forma, além do dinheiro, é o sexo que se torna o centro ao redor do qual gravitam os personagens. É uma visão bastante clara da sociedade brasileira, diga-se de passagem, mas o que diferencia A Dama da Zona da maior parte dos filmes que tentam diagnosticar esta mesma sociedade, é que aqui a observação crítica nasce de personagens já enraizados na galeria de tipos populares. São clichês repletos de preconceitos (o português bigodudo, o malandro negro baixote, o picareta sedutor e cafona, a mulata inacessível, o bebum desempregado, as putas e as megeras) e não figuras psicologicamente complexas que surgem à nossa frente. Por recorrer ao que já existe, por lançar mão de tipos identificáveis, é que A Dama da Zona acaba alcançando profundidade: não se tornam necessárias maiores explicações ou aproximações para justificar a postura dos personagens. Comunicação imediatamente feita, resta-nos acompanhar a trajetória de cada um na corrida pelo sucesso pessoal, e os conseqüentes dramas de seus destinos.

Apesar de buscar algum naturalismo na interpretação, A Dama da Zona é uma comédia e seus personagens, caricaturas. Há, por exemplo, um velho italiano que canta trechos enormes de antigas canções de sua terra natal. Quando encontra-se com um amigo de bar, também cantor, há seqüências quase inteiramente musicais no meio do filme. Ao mesmo tempo, ironiza-se o cinema de caráter oficialesco: o português dono do bar chama-se Fernão Dias e a Dama da Zona, Esmeralda, numa clara alusão ao Caçador de Esmeraldas, filmado no ano anterior por Osvaldo de Oliveira e produzido por Massaini.

Absurdo e realismo, aliás, pertencem à mesma natureza fílmica, o que, em A Dama da Zona, possibilita alguns momentos de inusitada poesia e de rasgada ironia. Não é à tôa que o que se discute o tempo inteiro, subliminarmente, neste filme, é o caráter de "verdade" de uma imagem cinematográfica. Os dois jovens cineastas que surgem no cortiço e começam a documentá-lo pretendem registrar o "drama humano brasileiro". Entre eles, brigam e mantêm discussões estéticas ridículas ("é zoom pra lá, zoom pra cá, é uma desgraça essa tal de zoom no cinema brasileiro"), mas diante dos personagens ficcionais, caricaturas que são, assumem um ar patético de universitários deslumbrados com a "realidade popular". Enquanto isso, uma outra "realidade", que não busca autodefinir-se, transcorre na pele dos personagens de A Dama da Zona. Mais tarde, os jovens serão "cooptados": o cafetão picareta acaba convencendo-os a largar o documentário e a fazer um filme pornô. Qualquer semelhança com Carnaval Atlântida não será mera coincidência...

* * *

O enredo de A Filha de Calígula é bem próprio ao drama de picadeiro: há o vilão, ladeado por dois subalternos idiotas, a mocinha, que corre perigos e no final se safa, e o mocinho que ganha a simpatia da mocinha. Só que não estamos propriamente no circo, e sim na Boca: a mocinha não é ingênua, e gosta de travar conversas e carinhos com um cavalo, além de tomar banho nua com as amigas e criadas. O mocinho não tem lá muita função no filme, a não ser fazer contraponto circunstancial à mocinha e servir de objeto sexual do vilão: sim, porque o vilão se justifica logo no princípio do filme, dizendo que "em Roma, todas as mulheres são esposas do Imperador; e o Imperador, mulher de todos os homens..." Estamos em pleno domínio da pornochanchada, e não mais na comédia de costumes com tempero erótico (intenção mais próxima de A Dama da Zona).

Em A Filha de Calígula, as seqüências muitas vezes desenrolam-se como se o que menos importasse fosse a trama. E, de fato, desde o princípio sabemos que ela seguirá a lógica do drama de picadeiro. Não é isso que interessa, mas a total disponibilidade dos personagens para o sexo (afinal, a história não se passa nos tempos de luxúria e pecado do Império Romano...?) e as relações de poder que o tempo inteiro vão sendo traçadas ao longo do filme. É neste ponto que A Filha de Calígula torna-se mais complexo, pois a "ambientação imperial" vira pretexto para alegorizar o momento político brasileiro, ainda sob o jugo militar.

Porém, não se busca uma alegoria muito clara. Não só as aberturas são mencionadas e ironizadas, mas também o "poder" que cada brasileiro no fundo se imbui, o autoritarismo latente na burocracia, nas pequenas autoridades policiais ou não. A ridícula figura dos três vilões ideologicamente não tem qualquer lógica e desemboca no lugar-comum: Cipião é o afetado, o inescrupuloso, o conspirador; um dos dois "capangas" que o acompanham tem incrível semelhança com Karl Marx (e se chama Carlos Marcus); o outro, interpretado por Bentinho, é um "romano" com carregadíssimo sotaque nordestino. Nesta salada, tanto critica-se o comunismo quanto o regime militar, para se chegar à gasta conclusão de que, no fim, nada presta.

Tal como no cinema mais arraigadamente conservador, estes "personagens de cúpula" (Cipião, os capangas, a filha de Calígula e o heroizinho), são rodeados pelo "povo", ou seja, a criadagem e os centuriões. Eles se limitam a observar, excitados, as orgias palacianas, a comentar a trama e a treparem entre si. Aí há também uma hierarquia, uma dominação do mais fraco pelo mais forte: os centuriões comem as criadas e a negra é quase sempre a escolhida, o que provoca nela constante indignação. Mas que isso não seja confundido com uma pretensa solidariedade paternalista por parte de Ody Fraga: não existe qualquer discurso politicamente correto, o "povo" não é "bom" nem "solidário". Existe miséria, e nesta miséria todos se comem. Xica da Silva dança...

Tal estrutura conservadora – atravessada por críticas políticas e por uma movimentação cênica que em algumas passagens chega a beirar a inspiração brechtiana – consegue, no entanto, uma linearidade curiosa em A Filha de Calígula, apesar de freqüentes quedas no ritmo e das situações que se repetem.

* * *

Por fim, o que salta aos olhos, nestes dois filmes de Ody Fraga, é que, guardadas as devidas diferenças de produção, há um mesmo fluxo comunicativo. Neles não existe o drama da pedagogia do personagem, da oscilação entre denúncia e espetáculo. Os dois filmes parecem pré-existir a eles mesmos, porque dialogam com o que já existe no espectador. E o que já existia no espectador que freqüentava a pornochanchada era a dieta do mercado.

Cinicamente, os filmes realizam-se com a cumplicidade do espectador, dele se aproveitam e dele se afastam com a sem-cerimônia de qualquer diálogo franco. Afinal, pouco ou nada devia interessar ao público da época a metalingüagem de A Dama da Zona ou as mensagens políticas de A Filha de Calígula. E tudo isto tampouco interessaria aos críticos e aos intelectuais, que, com raras exceções, desses filmes não tomavam conhecimento. Mas basta assisti-los para perceber que – ao contrário do que acontecia com o torturado cinema novo... – a recíproca era, no caso, muito verdadeira.

Luís Alberto Rocha Melo