Três
é Demais,
de Wes Anderson
Rushmore,
EUA, 1999
Vamos começar
desconsiderando o título brasileiro do filme de Anderson. Rushmore
é o nome daquele que talvez seja o principal personagem do filme:
a escola privada secundária onde estuda o protagonista e que ele
tanto ama. Porque em última instância o filme é um
exemplar do gênero do "cinema de escola". Mas isso é tudo
de convencional ou qualificável que se pode encontrar no trabalho
de Anderson. A partir da noção de um garoto de 15 anos vivendo
intensamente seus anos de escola, o filme joga para o alto todas as convenções
de gênero, e trabalha com uma mistura fundamental do que há
de "realista" neste ambiente com o que ele projeta de imaginário
e simbólico, pode-se dizer até mesmo que mítico,
trabalhando na perspectiva da mitologia já criada pelo cinema americano
como pela sociedade americana como um todo. Rushmore trabalha com
esta "memória coletiva" com relação ao ambiente escolar,
e constantemente a completa e subverte.
A começar pelo
seu protagonista, Max Fischer. Ele é um garoto absolutamente incomum,
mas ao mesmo tempo o mais comum deles. Não se pode encaixá-lo
nas categorias que geralmente os filmes de escola criam, entre os nerds
e os cool. Ele certamente nada tem de cool, mas ao mesmo
tempo projeta uma profunda crença em tudo o que faz e acredita,
disposto a abraçar o mundo com seu entusiasmo. É um garoto
essencialmente bom, mas também capaz das maiores maldades quando
contrariado. Ele mente, é péssimo aluno nas notas, mas ainda
assim nunca tem nenhuma destas características colocadas em julgamento.
Trata-se de fato de um personagem único, ou seja, ele dialoga com
toda uma tradição de personagens, sem cair numa fórmula.
Só Max Fischer pode ser Max Fischer.
Este é um dos
mais essenciais pontos do cinema de Anderson que precisa ser entendido:
todos os seus personagens dialogam com uma herança de tipos, mas
nunca se encaixam em nenhum deles. O melhor amigo de Max é um garoto
bem mais novo que ele, mas com a postura e os diálogos de um verdadeiro
adulto, sempre em desacordo com sua imagem. Ao mesmo tempo, é capaz
também de se voltar contra Max impiedosamente quando se sente traído.
O objeto de desejo de Max também não é uma convencional
colega a quem ele aspira, mas uma professora claramente fora do seu alcance,
platônica, que só torna sua história mais terna e
dura ao mesmo tempo.
Mas, talvez o principal
personagem dentro desta perspectiva da estranheza ao estereótipo
seja o magnata interpretado por Bill Murray, numa performance de impressionante
contenção e sutileza. Trata-se de um milionário desencantado
com a vida, e fascinado pela força vital de Max, que se torna um
grande amigo dele. O que surpreende nesta relação entre
um homem de mais de 50 anos e outro de 15 é que ela nunca de se
dá na esperada condição de pai-filho. Pelo contrário,
se há uma figura que surge como modelo entre os dois, é
a de Max. A estranheza constante nesta relação se dá
justamente pelo caráter verdadeiramente de iguais que se estabelece
entre eles.
Porém não
são só os personagens de Wes Anderson que trabalham nesta
linha tênue entre o surreal e o realista. Todo o filme possui esta
mesma sensação, com o trabalho cuidadoso e detalhista de
direção de arte, figurinos, fotografia, e em especial a
utilização da trilha sonora. Não se tem no filme
a localização de um local ou uma data, porque é como
se o diretor quisesse que nós víssemos uma essência
atemporal do que seja ser adolescente, ter aspirações, ir
à escola. O filme não é nunca anacrônico nem
atual, mas transita constantemente entre os dois, com elementos quase
sempre conflitantes e estranhamente funcionais.
O cinema de Anderson
possui uma qualidade rara que é a capacidade de se mostrar extremamente
cerebral no sentido da construção, onde se percebe com olhos
atentos o cuidado com cada detalhe, que vai da movimentação
de câmera ao mais sutil gesto dos atores, e os cuidados com o que
se vê e ouve até mesmo no "background". Ao mesmo tempo, este
detalhismo não se torna jamais frio, por causa do carinho e do
arcabouço mítico com o qual o diretor trabalha, permitindo
uma identificação constante do espectador com aquilo que
assiste, por mais absurdo que possa parecer.
É como se os
personagens trabalhassem fora da norma comum de comportamento social,
mas aquilo que eles externam seja compreendido perfeitamente por se relacionar
com o que todos sentimos. Rushmore é filmado como se visse
o interior das pessoas, ultrapassando o limite do "real". Por isso consegue
ser tão emocionante ao mesmo tempo em que é calculado e
estranho. Trata-se de uma característica que assemelha em muitos
pontos o trabalho do diretor com o dos irmãos Coen, que sempre
trabalham com o conceito da "Americana" (a mitologia formadora de um imaginário
comum de ícones norte-americanos) guiando seus filmes, que patinam
no limite do mágico e do real, dos Estados Unidos entendidos em
si mesmos como metáfora constante e um país que possui um
tal arsenal imagético sobre si próprio que suas significações
são necessariamente baseadas nele.
A sensação
constante em Rushmore é que cada palavra e cada gesto dos
personagens possui uma importância capital em suas vidas. E isso
é especialmente adequado uma vez que o filme seja praticamente
feio dentro da visão de seu protagonista, e aos 15 anos todos os
atos e gestos têm esta força, tudo parece que vai durar para
sempre e cada palavra de carinho ou rejeição possui proporções
descomunais. Num momento o personagem de Bill Murray fala para Max: "Eu
gastei 8 milhões de dólares para chamar a atenção
dela!", ao que ele responde: "E isso é tudo que você está
disposto a gastar?" Por conseguir capturar esta atmosfera onde amor, amizade,
lealdade e rejeição são muito maiores e mais vitais
do que em qualquer outro momento na vida, Rushmore é um
dos maiores filmes americanos sobre esta idade, sobre esta condição
chamada adolescência.
***
Utilizamos
como material para a feitura deste texto a cópia do filme disponível
na fenomenal Criterion Collection, que lança algumas das mais especiais
edições em DVD. Já antes mesmo de colocar o DVD na
máquina pode-se perceber a diferença com o material escrito
que acompanha o filme, um mapa desenhado e sintético de Rushmore
a escola e sua região, que é na verdade uma junção
dos elementos principais do filmes.
No disco,
temos o tradicional trailer de cinema, e as fotos e seleção
de capítulos de sempre. Aí, começa o suculento material
realmente especial. No que se refere à produção em
si, temos uma série de gravações com os testes de
elenco dos atores que acabaram ganhando os papéis, o que é
um tipo de material raramente disponibilizado, e altamente revelador.
Além disso, há um making of, pouquíssimo tradicional,
uma vez que realizado pelo próprio irmão do diretor. Tentando
seguir na mesma linha de estranheza do filme em relação
ao que deve ser um trabalho de bastidores de filmagem, o vídeo
acerta em muitos momentos (como quando mostra a equipe jogando basquete
num dia de folga, por exemplo), mas no geral fica claro porque um dos
irmãos está fazendo longas e o outro gravando os making
of. Falta talento e a capacidade de tornar este "surrealismo" algo
de fato emocional e universal.
Há
ainda dois materiais externos ao filme: uma entrevista num programa de
TV americano com Bill Murray e Wes Anderson falando sobre o filme e o
processo de sua realização. O material até tem algum
interesse, mas menos sobre o filme em si (o qual o entrevistador mostra
ter assistido, mas não tem muito a acrescentar ou perguntar), e
mais sobre o processo de produção, sobre o próprio
Bill Murray como ator, sobre relações pessoais. O outro
material é uma série de pequenos clipes realizados por Anderson
para o MTV Movie Awards. No filme, Max Fischer encena peças de
colégio fortemente baseadas em filmes e no imaginário do
cinema americano, completamente inesperadas no cenário escolar
(como Serpico ou uma peça sobre o Vietnã). As cenas
das peças são algumas das melhores do filme, e por isso
a MTV o chamou para recriar como peças de escola cenas de Armageddon,
O show de Truman e Out of Sight para a sua premiação
de filmes, e o resultado funciona e é muito engraçado.
Mas,
o melhor do disco é de fato a trilha de comentário, que
é dividida pelo diretor, o ator principal (Jason Schwartzmann)
e o co-roteirista do filme, Owen Wilson (também ator em vários
filmes americanos recentes como o próprio Armageddon ou
Entrando numa Fria). Várias vezes estes comentários
podem se tornar extremamente auto-indulgentes, ou mesmo desinteressantes
dependendo da disposição do diretor em comentar seu filme.
Aqui, tanto a divisão em três funciona (e fica claro como
o processo entre Anderson e Wilson é simbiótico, já
que são amigos de juventude que trabalham juntos em todos os projetos)
dando diferentes perspectivas, como Anderson se mostra capaz de analisar
seu próprio trabalho sem ser nem obtuso nem auto-celebratório.
Com isso, o comentário realmente ajuda a fortalecer o que há
de bom no filme, e ao mesmo tempo nos permite um contato com o processo
de realização. É assim que percebemos o caráter
eminentemente caseiro que ainda domina os filmes deles (com constantes
presenças de amigos ou membros da equipe em cena), e o alto grau
de envolvimento e auto-referência na montagem de personagens e situações.
E ainda descobrimos um pouco do tipo de material fílmico que serve
de inspiração ao olho e ao sentimento da dupla. É
especialmente tocante ver a emoção sincera de Wilson ao
comentar algumas cenas, com o distanciamento que certamente o diretor
já não consegue mais ter e comentando "que triste!..." acha
alguns diálogos e cenas, colocando-se perfeitamente na pele do
personagem, como nós fazemos.
Trata-se
de uma edição inestimável, que ressalta e amplia
o que o filme já possuía de especial, cumprindo fielmente
a missão da coleção Criterion.
Eduardo
Valente
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