O
astro e o monstro (sobre Vanilla Sky)
A crítica em
geral se apóia nesse velho hábito de comparar refilmagens
americanas feitas a partir de filmes europeus, o que nem sempre é
interessante. O pior é que normalmente usa-se esse hábito
para tirar uma onda, assim como quem diz: os-europeus-é-que-são-profundos,
ou ainda : o-sistema-engole-o-peculiar-e-o-massifica. Não que essa
conclusão esteja totalmente errada; está, na maioria das
vezes, acertada, mas o raciocínio certo não justifica o
simplismo dos métodos. Óbvio que a industria de massas e
a conhecida esquematização da industria americana corrói
um projeto original, mas que se diga que o interesse em comparar as liberdades
artísticas de industrias diferentes já está ficando
meio desgastado. O que incomoda, na verdade, é essa constante facilidade
encontrada na recusa em analisar um filme isoladamente.
Um exemplo recente
talvez seja esse Vanilla Sky, patinho feio da industria e filme
cujas linhas tortuosas parecem fugir da compreensão/acomodação
do grande público, e que mesmo assim não escapa de ser comparado
ao seu antecessor, Abre Los Ojos, filme espanhol e, portanto, para ficar
na facilidade do julgamento, profundo e original. Para obedecer ao raciocínio
do primeiro parágrafo, é claro que não irei comparar
o grau permitido de liberdade artística em cada filme; mais do
que isso até, já que o objetivo aqui não é
analisar Vanilla Sky como um filme de autor mas, sim, como um filme
de ator. Já falei sobre o preconceito sofrido pelas refilmagens
americanas, e, provavelmente por ter sido produzido e estrelado por um
astro como Tom Cruise, o rótulo de plastificação
ou edulcorização fica ainda mais difundido entre nossos
pares. O fato que muitos fazem questão de ignorar, porém,
é que o contexto em que Vanilla Sky está inserido
é outro e que a omnipresença egocêntrica de Cruise
no projeto é o que torna esse filme realmente profundo - ou melhor
dizendo, para não cair na simplismo : é o que faz o filme
ter a sua profundidade própria, permitindo, ironicamente, sua originalidade.
Entende-se perfeitamente
o que pode ter interessado Cruise nessa empresa. Há uma verdadeira
síndrome stevensoniana que parece abater o ator, e é como
se essa síndrome contaminasse cada cena do filme, fazendo-o muito
mais dele do que do diretor Cameron Crowe. Existe o Astro e existe o Monstro
: Dr. Tom e Mr. Cruise. Existe o Tom que todos querem ver, o herói
estereotipado e correto, submisso às falsidades e totalmente adequado
às urgentes necessidades mercantilistas de seu tempo; existe, também,
no entanto, um artista dentro de si, abafado, temido, domesticado e que,
à sombra do seu equivalente público – a figura mediática
– espera ansiosamente sua vez de entrar em cena. É do artista que
produziu De olhos bem fechados (Eyes Wide Shut) de que estamos
falando, do que colocou sua vida conjugal à mostra, exorcizando
seu mal em praça pública, em pleno picadeiro; é,
ainda, o mesmo que mergulhou em Vanilla Sky, esse estranho filme com forma
de espelho mágico -o artista que pede, que implora a essa massa
delirante, para que olhe debaixo daquela mascara estéril, impessoal,
e encare as terríveis cicatrizes do Monstro sem medo. É
o Artista que, em plena loucura do universo mediatico, convoca seu público,
o reúne para um evento secretamente escondido por baixo da embalagem,
e discute sua relação. "O que vocês querem de
mim?" parece o Monstro perguntar a seus seguidores, "até
onde vai a falsidade?". Há o homem adequado em Cruise, o bom
burguês civilizado, mas há também o Mr. Hyde, e é
toda essa esquizofrenia que o empurra para um acerto de contas consigo
mesmo, com sua identidade, com sua imagem e com seu público.
Existe um mundo de
naturalidades por trás de um destino arranjado, existe a pureza
da existência, a imprevisibilidade do destino. Existe as relações
verdadeiras, as Sofias Serranos, o contato com o que há de real,
de verdadeiramente palpável, enfim, existe a sinceridade. Existe
o que todos gostaríamos de ser e persiste, entre um sonho e outro,
o que todos devemos ser. E é por isso que ao final, atormentado
pelo inconsciente, pelo real e pelo artificial, pelo vivido e pelo sonhado,
do alto do abismo, o Astro vai jogar-se ao infinito numa queda livre rumo
ao imprevisto, ao "verdadeiro". Porque o Astro prevê um
encontro com sua verdadeira Natureza e seria absurdo negar-lhe esse direito.
Bolívar Torres
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