Jacques
Rozier, um cineasta brasileiro
Les Naufragés
de l'île de la Tortue,
de Jacques Rozier (1976/ 140'), é um filme quase brasileiro. Melhor
dizendo, quase uma pornochanchada, como era conhecida boa parte da produção
brasileira de cinema nos anos de ditadura militar. Les Naufragés
tem os mesmos ingredientes – produção privada e barata,
comédia leve com sugestões eróticas, roteiro inverossímil,
galeria de representantes do sexo feminino e, sobretudo, um protagonista
malandro, paquerador sutil, classe média remediada, um pouco atrapalhado,
mas sempre gozador e bem-humorado. E mais alguns coadjuvantes masculinos,
claro, para contrapor ao nosso herói, ou anti-herói.
A pornochanchada brasileira
– uma espécie de herança das chanchadas, filmes populares
dos anos 40/50, em geral pastiches de Hollywood – floresceu protegida
pela reserva do mercado de exibição cinematográfica,
mas sem ter nada a ver com a produção financiada pela empresa
estatal Embrafilme. São centenas de filmes praticamente desconhecidos
do público europeu, que ainda identifica cinema brasileiro ao Cinema
Novo. Uma produção que vivia às voltas com a censura
– e que terminou com a inesperada concorrência dos filmes pornográficos,
por um lado, e com o fim da reserva de mercado decretada pelo governo
Collor, por outro, tudo isso no final da década de 80.
Mas o que tem o filme
de Rozier em comum com tudo isso ? Esquecido e recuperado como cult
na recente mostra dedicada ao genial cineasta no Beauburg, como ele pode
revelar uma sintonia fina entre as culturas francesa e brasileira ? Não
bastam apenas os ingredientes básicos, e preciso localizar os traços
paralelos. De início, temos a semelhança, inclusive física,
entre a estrela do filme, Pierre Richard, e um dos melhores atores brasileiros,
Paulo Cesar Pereio, aquele do sorriso cabotino e cinismo irresponsável.
Quando fazia pornochanchada, Pereio – como Hugo Carvana, outro grande
ator – construía seus personagens entre o sedução
e o oportunismo, exatamente o percurso de Richard, que seduz Natasha,
a mulata exuberante, ao mesmo tempo em que inventa o projeto maluco de
vender uma excursão para a ilha deserta, à la Robinson Crusoé.
A decisiva e hilária cena do almoço com o patrão
em Les Naufragés é 100 % pornochanchada.
Em seguido temos o
cenário ensolarado, úmido, confuso, que pode ser uma colônia
francesa do Caribe como também alguma ilha do norte-nordeste brasileiro,
condições de temperatura e pressão, digamos, que
favorecem nossos personagens. É sempre bom lembrar que Brasil e
França compartilham uma extensa fronteira, entre Guiana e Amapá.
Só faltou mesmo um papagaio para caracterizar os trópicos
– mas temos as cabras que povoam o barco-excursão dos exaustos
viajantes. E, para arrematar, temos a música brasileira, que começa
numa boate em Paris com Natasha, ao ritmo de "O que a baiana tem",
e termina com a irrupção alucinada do percussionista brasileiro
Naná Vasconcelos, com seus sons guturais e berimbau, no principal
espaço dramático do filme, o barco que leva à "ilha
deserta".
A fluidez narrativa
de Rozier – leve, solta, com tempos longos, silêncios, improvisação
– mereceu leituras quase-metafísicas da crítica francesa.
Mas, não seria ela também mais um sinal dessa aproximação
cultural ? Será que essa narrativa traduziria uma certa malemolência,
ou o descentramento do sujeito-autor cartesiano que os trópicos,
tristes ou alegres, podem provocar ? Nesse particular, o personagem de
Naná é fundamental para a desterritorialização
que Les Naufragés opera. O filme se resolve, aliás,
com um surpreendente diálogo final, onde Naná conta a Jacques
Villeret, em um
francês de brasileiro
esperto, a prisão de Jean-Arthur Bonaventure, o personagem de Richard.
Jacques Rozier merece
uma medalha da ordem do mérito cultural por essa fantástica
incursão na brasilidade. Sem fazer nenhuma concessão ao
chamado bom gosto fílmico, bem entendido, Les Naufragés
se apropria dos clichês mais evidentes – à exceção
do papagaio ... - ao mesmo tempo em que se desdobra em uma narrativa esgarçada
e não-convencional. Não há dúvida, enfim,
que estamos diante de um filme de safra especial e de appelation mais
que controlada (ou descontrolada ?).
João Lanari
(Artigo originalmente
publicado na revista francesa Infos Brésil)
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