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Qualquer pesquisa sobre a produção de pornochanchadas no Brasil não pode deixar de passar pelo nome de Antônio Polo Galante ou A. P. Galante, quase uma marca relativa ao gênero que proliferou nos anos 1970-80. No entanto, acredito que a filmografia de A. P. Galante pode despertar um maior interesse se pensarmos em seu conjunto, e em uma característica que a define e que é a tônica das principais discussões sobre o cinema brasileiro atual: a sua diversidade. Palavra-chavão nos debates sobre a "retomada" dos anos 1990, a "diversidade" que marca a trajetória de Galante possui outro sentido e, sem dúvida, uma consistência muito maior, se comparada ao repertório atual. Trata-se de uma diversidade desordenada, mas real: Galante produziu filmes de cangaço, terror, faroeste caboclo, comédia musical caipira, filmes policiais e de presídio, filmes de autor, filme histórico, pornochanchada, drama erótico, filmes experimentais... E para cada gênero ou subgênero, correspondia de fato um público que garantia, em alguns casos, um milhão de ingressos vendidos em 15 dias ou, até, em uma semana. Há, também, na trajetória de A. P. Galante, a confluência de dois universos geralmente separados por um abismo no cinema brasileiro: o dos filmes populares e o dos filmes cultos. * * * Tudo o que se lamenta e se repete hoje nos cadernos culturais acerca da comunicabilidade, do público, do mercado, da identidade, e da diversidade do cinema brasileiro (e que não passa realmente de texto impresso) era uma realidade concreta para produtores como Galante que, mesmo não obtendo verbas estatais, buscavam na parceria com o exibidor e no respaldo de algumas leis federais e municipais (lei de obrigatoriedade, adicional de bilheteria etc.), um mercado que respondesse ao volume de dinheiro investido. Mudou o mercado, mudou o país, mudaram todas as condições de se produzir cinema e cultura no Brasil. Os que ligaram o nome Galante ao antigo produtor, puderam assistir (ou talvez nem isso) a um derradeiro fracasso, o filme musical-infantil Cinderela Baiana (1998, Conrado Sanchez), com Carla Perez. A propósito deste filme, aliás, Lécio Augusto Ramos, nesta mesma Contracampo (n. 27), trabalhou com algumas observações muito agudas sobre as mudanças de enfoque narrativo no cinema brasileiro de ficção dos anos 90. Para ele, nem mesmo em uma proposta claramente comercial e popular, como é o caso de "Cinderela...", deixou-se de incorporar um "estilo documental" de narrar e de captar "certas realidades sociais e geográficas do país". Longe de configurar um diálogo com as tradições cinemanovistas, tal estilo (que Lécio chama de "emulação do documental") reflete o descentramento do cinema popular, um descrédito inconsciente em relação à sua própria proposta. O "documental" surge então como fórmula que, no mínimo, pode assegurar razoável interesse cultural e eventual atenção da crítica. É muito provável que Galante tenha percebido estas mudanças de caráter narrativo nos filmes que viu surgir ao longo da retomada pós-Collor, e não seria delírio afirmar que tal percepção já havia sido antecipada em Anjos do Arrabalde (1987, de Carlos Reichenbach). De qualquer forma, não é por acaso que, após o "fiasco Carla Perez", os projetos com os quais Galante busca voltar ao cinema ocupem duas trincheiras bem específicas: o cinema de gênero e o cinema autoral (O Carcará, de Ícaro Martins, Casa de Meninas, de Inácio Araújo e Veludinho, de Galileu Garcia, todos em processo de captação pela lei do audiovisual). * * * O início de Antônio Polo Galante no cinema coincide com o fim do ciclo dos grandes estúdios, no final dos anos 50. Ainda adolescente, ingressou na Maristela como faxineiro, pelas mãos de Alfredo Palácios, então diretor de produção da companhia, com quem anos depois viria a montar uma firma produtora de filmes, a Servicine. De faz-tudo, Galante passou a eletricista e, no início dos anos 60 já fazia assistência de câmera em O Cabeleira (direção de Milton Amaral), em diversos documentários produzidos por Jacques Deheinzelin e John Waterhouse (escola de vários profissionais de cinema, entre eles Ozualdo Candeias) e em filmes de Walter Hugo Khouri (como As Cariocas). Mais tarde, já nos anos 1970, Khouri seria produzido por Galante. A Boca do Lixo era, naquele período, um centro cinematográfico aglutinador, para onde convergiam produtores, diretores, roteiristas, técnicos, distribuidores, atores, atrizes, aspirantes em geral. Os restaurantes Costa do Sol (na rua Sete de Abril) e Soberano (na rua do Triumpho) eram os pontos de encontro. Ali Galante acabou se fixando, inicialmente fazendo serviços de compra-e-venda de material e, mais tarde, como sócio de Palácios na Servicine, numa parceria que durou até 1976 e que rendeu mais de 40 filmes. Sociedade desfeita, Galante produziu sozinho, até o início dos anos 90, uma quantidade superior a 50 filmes. Não por acaso, ficou conhecido como o rei da Boca. Para assegurar a continuidade produtiva e o cumprimento dos prazos, Galante contava com uma série de técnicos e diretores quase fixos: eletricistas como Miro Reis, diretores de produção como Enzo Barone, fotógrafos e diretores como Antônio Meliande e Osvaldo de Oliveira ou Osvaldo "Carcaça", como era conhecido na Boca , montadores como Sylvio Renoldi e Gilberto Wagner, entre diversos outros profissionais. A incrível agilidade de seu método de produção combinava-se com um prático esquema de parceria e cumplicidade com os exibidores, o que garantia de antemão o mercado para o filme. O conjunto dos longas produzidos pela Servicine e por Galante foi, assim, possibilitado pelo contato direto com o mercado exibidor, muito embora em Lucíola (Alfredo Sternheim), À Flor da Pele (Francisco Ramalho Jr.), Convite ao Prazer (Khouri) e Anjos do Arrabalde (Reichenbach), tenha havido a participação da Embrafilme, em alguns casos na produção e em outros no avanço de distribuição. * * * Pode-se dizer que a pornochanchada já estava latente no primeiro filme produzido por Galante, o acidentado Vidas Nuas (1967). Este filme, cujo título original era, significativamente, Eróticas, havia sido iniciado em 1962 por Ody Fraga e permanecia inacabado. Foi comprado por Galante em parceria com o montador Sylvio Renoldi. Trataram de finalizá-lo introduzindo vários minutos de São Paulo à noite e de mulheres fazendo strip-tease. A máxima de Buñuel ("se um filme fica curto, eu ponho um sonho") poderia ser aqui perfeitamente aplicada, com a providencial substituição da palavra "sonho" por "sexo". Mas foi em 1973 que o apelo erótico foi definitivamente incorporado ao repertório da Servicine, com o sucesso de público Os Garotos Virgens de Ipanema, dirigido por Osvaldo de Oliveira. Tratava-se de um comédia picante, bastante inocente em relação à pornochanchada dos anos 80. Os Garotos Virgens de Ipanema significou a descoberta de um importante filão de sobrevivência para a Servicine, que vinha de alguns fracassos comerciais (No Rancho Fundo, Luar do Sertão, de Osvaldo de Oliveira) e de tentativas frustradas de um cinema "sério" e pretensamente político (As Armas, de Astolfo Araújo, e Paixão na Praia, de Alfredo Sternheim). Para desenvolver o argumento de Os Garotos Virgens de Ipanema, que nascera do próprio Galante, foi chamado o escritor Marcos Reys, um dos mais requisitados roteiristas da Boca, ao lado de Ody Fraga e Rajá de Aragão. O sucesso de público fez com que Galante jamais se descuidasse desse filão. Desta forma, Galante produziu (durante e após a Servicine) As Meninas Querem... E Os Coroas Podem, A Filha de Emmanuelle e O Bordel (os três de O. de Oliveira), Sabendo Usar Não Vai Faltar (Francisco Ramalho Jr., Adriano Stuart), Kung Fu Contra as Bonecas (A. Stuart), Lilian, a Suja, Anarquia Sexual e A Primeira Noite de Um Adolescente (os três de Antônio Meliande), As Safadas (Inácio Araújo, A. Meliande e C. Reichenbach) Terapia do Sexo e A Filha de Calígula (ambos de O. Fraga), Nos Tempos da Vaselina (José Miziara), As Prostitutas do Dr. Alberto (A. Sternheim), entre vários outros. Muitos destes títulos já estão perfeitamente integrados ao esquema da pornochanchada que, mais ou menos a partir de 1975, sedimentou-se na Boca do Lixo. Mesmo os "filmes sérios" não deixavam de levar o universo erótico em conta, como atestam Filhos e Amantes e À Flor da Pele (F. Ramalho Jr.), todos os filmes de Walter Hugo Khouri feitos com a Servicine e a Galante PC, os filmes de Astolfo Araújo e de A. Sternheim, e, claro, os de Reichenbach incluindo Anjos do Arrabalde. O apelo erótico não escapa até mesmo a um bang-bang paródico como Rogo a Deus e Mando Bala (1972, também direção de Osvaldo "Carcaça"), até porque tal atmosfera já era típica do modelo original que se buscava imitar, ou seja, o spaghetti-western. Aliás, como é característico na pornochanchada, muitos destes filmes nasceram da cópia de sucessos estrangeiros caso evidente de filmes como Kung-Fu Contra as Bonecas, Lilian, a Suja, A Filha de Calígula, Nos Tempos da Vaselina e A Filha de Emmanuelle. Após desfazer a sociedade com Palácios, em 1976, Galante decidiu não só copiar títulos mas todo um subgênero então muito em moda: os filmes de presídios femininos. Pertencem a esta série longas como Presídio de Mulheres Violentadas (O. de Oliveira, Luiz Castillini), Internato de Meninas Virgens, Pensionato das Vigaristas, Fugitivas Insaciáveis e A Prisão (O. de Oliveira), Escola Penal de Meninas Violentadas (A. Meliande) e Reformatório das Depravadas (O. Fraga). Este diálogo imediato com o mercado de filmes violentos e eróticos atesta não só a afluência realmente popular nas salas de cinema como revela, em uma época ainda muito recente, um intenso relacionamento entre produção, distribuição e exibição. Tal quadro uma vez desaparecido com a depauperação do pornô, a entrada dos filmes estrangeiros de sexo explícito e a desorganização de todo o esquema político-"industrial"-econômico do cinema brasileiro pós-1989 tende a se fixar como mais um ciclo cinematográfico isolado e intransferível. Mas foi exatamente esta conjuntura que possibilitou um cinema realmente desvinculado da tutela estatal, cujo dinheiro investido retornava ao produtor e ao exibidor através do bilhete pago, anos antes de se tornar cult a palavra "independente" ou indie, como preferiam os cineyuppies dos anos 80. E as conseqüências daquela fase, para o mercado de trabalho, foram determinantes. Sem aprofundarmos questões importantes como a exploração do trabalhador cinematográfico e as condições precárias de contratação dos diretores, foi exatamente este tipo de cinema o produzido por nomes como Galante que possibilitou para centenas de profissionais um ritmo e uma continuidade de produção hoje inimagináveis. Historicamente, isto não pode ser menosprezado. * * * É curioso como, mesmo assegurando grande parte da produção brasileira na passagem dos anos 1960-70, a atuação dos produtores da Boca do Lixo sempre encontrou pouco reconhecimento da crítica. Um caso como o de Jairo Ferreira, que acompanhava sistematicamente a produção da Boca através de sua coluna no São Paulo Shimbum, era raridade. A crítica da grande imprensa sempre se pautou pelo cinema novo, pelo cinema culto, deixando de lado o cinema de gênero, o filme popular. No âmbito mais oficial (do qual o cinema novo também era, de certa forma, excluído), basta uma consulta à revista Filme Cultura para se verificar o descaso: sobressaíam os filmes de Walter Hugo Khouri, legitimados pela crítica universalizante (Ely Azeredo, Rubem Biáfora) como culturalmente relevantes, e os filmes de Carlos Coimbra, ligados à produção "classe-A" de Massaini. Mojica Marins era o acontecimento folclórico e Candeias melhor dizendo, A Margem , um providencial contraponto ao radicalismo cinemanovista. O resto, os bang-bangs caipiras, os filmes de cangaço, as comédias eróticas, os filmes policiais etc., eram relegados, na maioria dos casos, às listas de filmes produzidos ou a ser lançados, sem receberem por parte da revista uma maior aproximação analítica. Um artigo como "O Filme de Cangaço", escrito por Alberto Silva (Filme Cultura n. 17, 1970), consistia numa saudável exceção à dieta crítica daquele período. Detendo-se no cangaço como gênero cinematográfico, o crítico reconhecia em Osvaldo de Oliveira, o responsável por um subciclo diverso das outras experiências. O Cangaceiro Sanguinário e O Cangaceiro Sem Deus (1969) são apontados como "dois longas-metragens desconcertantes e curiosos". A utilização de figuras como Maurício do Valle, no primeiro filme, e José Mojica Marins, no segundo, confere um caráter quase mítico aos personagens. Ambas as produções são da Servicine (Galante/Palácios) e refletem o estilo improvisado e experimental desta fase. O próprio Galante hoje reconhece que experiências como as de unir, num mesmo filme, Mojica e cangaço, partem de uma necessidade intrínseca e concreta do cinema brasileiro: a invenção. Vale a pena reproduzir, ainda, um trecho do artigo de Alberto Silva, em diversos aspectos inusitado pela lucidez com que aborda este que é um dos momentos mais fecundos da carreira de Galante e do próprio Osvaldo "Carcaça". Para o articulista, o "cangaço da Boca do Lixo" representa "o filme desprezando qualquer elemento de pesquisa, baseado apenas na imaginação do autor, um produto híbrido de aventura sem qualquer compromisso com a inteligência, mas, em compensação, insólito e instigante na medida em que desmistifica o gênero, até então circunscrito ao comercialismo de Coimbra-Teixeira e às pesquisas de Glauber Rocha." Para Silva, Osvaldo de Oliveira é, em relação ao filme de cangaço, o que foi Mojica para o filme de terror, Mazzaropi para o caipira, J.B. Tanko para a chanchada e mesmo Humberto Mauro para o ciclo de Cataguases. * * * Mesmo estando intimamente ligado à produção pornochanchadesca, o nome de A. P. Galante não pode ser desvinculado destas variadas vertentes cinematográficas. Além dos filmes de gênero, Galante abrange o Khouri das lentas seqüências de vazio existencial (As Deusas e O Último Êxtase) e o Khouri dos rápidos planos de orgia sexual (O Prisioneiro do Sexo e Convite ao Prazer); passa pelo cinema novo através de Memória de Helena e Lúcia McCartney (David Neves), além da experiência individual de Sylvio Back em seus dois primeiros longas (Lance Maior e Guerra dos Pelados); funde pornochanchada e experimentalismo em A Ilha dos Prazeres Proibidos, Império do Desejo e Paraíso Proibido (os três de Carlos Reichenbach) e produz ou finaliza algumas pérolas do cinema experimental O Pornógrafo (João Callegaro), A Mulher de Todos (Rogério Sganzerla), Gamal O Delírio do Sexo (João Batista de Andrade), Em Cada Coração Um Punhal (Sebastião de Souza, José R. Siqueira e J. B. de Andrade) e América do Sexo (Leon Hirszman, Luiz Rosemberg, Flávio M. da Costa e Rubens Maia). Com a decadência da pornochanchada e a entrada do sexo explícito, Galante produz interessantes títulos como A Menina e o Cavalo, Prisioneiras da Selva Amazônica etc. Em relação ao cinema experimental, é importante notar como não havia, por parte do Galante, a intenção de "legitimar" sua filmografia com tais filmes. Talvez houvesse essa disposição por parte de seu sócio, Alfredo Palácios, naturalmente mais antenado com o que se fazia na esfera culta do cinema brasileiro. Mas o próprio Galante quase sempre considerava todos estes filmes hoje clássicos verdadeiras bombas. O que havia era o movimento inverso: esta geração de jovens realizadores, buscando formas alternativas de produzir à margem do esquema cinemanovista (àquela altura já dialogando com a indústria e, conseqüentemente, com o Estado), recorria à Boca para filmar ou finalizar suas obras de estréia. E quase todos iam parar na Rua do Triumpho, no 3º andar do n. 150, no prédio em frente ao mitológico Bar Soberano, para apresentar seus roteiros à Servicine. Galante era o interlocutor mais freqüente. Este tipo de situação reproduzia em suas devidas proporções nada menos do que a clássica estratégia de um cinema industrial: a produção comercial, artesanal, criando espaço para a invenção e o cinema experimental. E é justamente esta relação que permite estabelecer novas conexões no contexto do cinema brasileiro dos anos 60-70, agora não mais apenas entre o dito "cinema marginal" e o cinema novo, mas também, e principalmente, entre um filme de Sganzerla e uma comédia caipira de Osvaldo de Oliveira. Luís Alberto Rocha Melo |
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