O Enigma de outro mundo, de John Carpenter

The Thing, EUA, 1982


Em 1981, John Carpenter gozava de algum prestígio junto aos produtores americanos por conta de sucessivas realizações bem-sucedidas nas bilheterias. Seu Halloween (1978), uma produção de baixo orçamento, havia sido um fenômeno de arrecadação nos cinemas norte-americanos, abrindo portas para a realização de projetos um pouco mais ambiciosos como The Fog (1980) ou Fuga de Nova Iorque (1981). O sucesso deste último levou definitivamente o nome de Carpenter à atenção dos grandes estúdios. Desta forma, desenhou-se em sua carreira o que poderia ser um salto rumo a uma posição privilegiada de trabalho -- conquistada por outros jovens cineastas da escola do filme B e da televisão, como Brian DePalma, Steven Spielberg ou Martin Scorsese: um filme de estúdio supõe a disponibilização de grandes orçamentos, bons salários, astros, condições invejáveis de produção, bons projetos, alcance de mercados internacionais.

Carpenter foi chamado a fazer o que deveria ser o projeto de seus sonhos: uma refilmagem de O Monstro do Ártico (1951), um clássico da ficção científica de horror e obra (ainda que apócrifa) de seu autor-fetiche e fonte eterna de inspiração: Howard Hawks. Quase uma década antes, Carpenter já havia refilmado, a seu modo, outra obra de Hawks (Rio Bravo) com ambientação contemporânea, baixo orçamento e muita criatividade (o filme em questão é o Assault on Precinct 13). O luxo de uma produção cara não era, na época, uma possibilidade; agora, a situação era outra: orçado em 12 milhões de dólares, O Enigma de Outro Mundo contava com o suporte da Universal, estúdio revitalizado com a revalorização de um gênero que o consagrou nos anos 30: o filme de monstros. O fenômeno Tubarão, de Spielberg, foi em grande parte responsável pela continuidade do projeto (que se estende até hoje) de refilmagens de clássicos de horror pertencentes ao acervo do estúdio, abrindo um precedente para O Enigma.

Assim, Carpenter desfrutou de notável liberdade (menor que a costumeira, é fato) para imprimir seu estilo ao projeto, conseguindo ainda reunir sua equipe de técnicos e escalar um elenco que lhe servisse -- misturando um jovem astro em ascensão (Kurt Russel, com quem havia trabalhado em Fuga de Nova Iorque) com alguns rostos menos conhecidos em posições menores.

O resultado, apesar dos precedentes, foi um terrível fracasso de público e crítica, o maior de sua carreira até então. Parte da responsabilidade deve ser atribuída à própria Universal, que lançou o filme numa temporada extremamente difícil (apenas duas semanas depois da estréia de E.T., outro filme do estúdio -- e não um qualquer). É possível que tenha sido uma estratégia para se livrar de uma obra que, em última instância, portava uma carga muito negativa e apresentava uma perspectiva sombria demais para os padrões de blockbuster que tanto o estúdio quanto o público almejavam.

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O filme se abre com uma imagem apocalíptica: na vastidão do deserto branco da Antártica, um helicóptero persegue incansavelmente um cão, tentando abatê-lo a tiros e granadas. É uma imagem de alto poder sugestivo, valorizada pela perfeita utilização da música soturna de Ennio Morricone (uma trilha sonora, diga-se de passagem, bem ao estilo das trilhas compostas pelo cineasta, com uso expressivo de sintetizadores e característica repetição de acordes). A perseguição é uma das pouquíssimas sequências que se passam em ambiente externo, ainda que a direção de Carpenter não valorize a diferença desse espaço em relação aos interiores sufocantes de corredores e passagens estreitas que compõem a ambientação principal. O (mundo) exterior representa uma ameaça permanente, repleto de signos incompreensíveis e agourentos.

A fuga prossegue até que o cão alcança um acampamento norte-americano de pesquisadores e cientistas, arrancando os membros da equipe de seu pacífico e ocioso cotidiano (dedicado a bebedeiras e jogos de xadrez solitários, ao torpor habitual das drogas e disputas de pingue-pongue). Depois de explodir acidentalmente o helicóptero (e o piloto), o passageiro, armado com um fuzil e berrando uma língua estranha, distribui alguns tiros a esmo, atingindo um dos americanos. O estranho é abatido com um tiro (no melhor estilo de um cowboy protegendo seu rancho) e o cachorro é levado à convivência dos pesquisadores. Naturalmente, os sinais foram mal interpretados: o cão, não os homens do helicóptero, representa a verdadeira ameaça.

Nesse primeiro confronto dos homens com uma situação atípica já podemos reconhecer alguns elementos essenciais do conflito principal de O Enigma, assim como da ficção carpenteriana como um todo: (1) princípio dramático -- a presença de um elemento estranho que provoca ou intensifica o problema (herança do western clássico); (2) eixo temático -- um agrupamento heterogêneo que deve superar suas dificuldades de organização e convivência internas para eliminar a ameaça externa (herança de Romero: possivelmente um comentário sobre o isolacionismo americano).

Está bastante claro que o cinema de Carpenter tem filiação direta a um gênero e a um sub-gênero: o western clássico e o filme B de ficção científica e horror das décadas de 50 e 60. A influência das ficções B, calcadas na paranóia anti-comunista da época, se faz sentir num tema privilegiado do moderno cinema fantástico americano: a possessão (principalmente em sua variação como vampirização). Mas, ainda que as alegorias de George Romero encontrem eco nos filmes de Carpenter, as propensões revisionistas do último trazem uma marca original; há uma diferença qualitativa sutil entre os autores em seus comentários sobre alienação e massificação.

Senão, vejamos: o monstro em questão é um organismo que, para sobreviver, assimila as formas de suas vítimas copiando-as. Não tem forma original: é um ser abstrato. Ele representa, para os homens, a ameaça de uma uniformidade coletiva, a morte da noção de indivíduo. Até aí, a semelhança com os zumbis de Romero (da trilogia dos mortos: Night of the Living Dead, Dawn of the Dead e Day of the Dead) é evidente, e não há muita diferença. No entanto, cada autor trabalha num campo de ação determinado e o alcance de suas observações depende deles: em Romero, o horror se insere na lógica do capitalismo desenvolvido; em Carpenter, o horror é metafísico, beirando a abstração. Mais uma diferença: o zumbi é facilmente identificável, com seu andar desengonçado e movimentos desorganizados: sua artificialidade é evidente; o monstro de Carpenter, ao contrário, é uma cópia perfeita, somente identificável através de procedimentos especiais (um exame de sangue, por exemplo) ou de manifestações apoteóticas quando acuado.

O foco de O Enigma de Outro Mundo está direcionado às relações forçadas que o grupo de homens tem que constituir para se livrar da ameaça. Mais que tudo, o contato social depende das diferenças individuais e uma resposta para o problema deveria supor uma ação coletiva. No entanto, Carpenter estuda detalhadamente cada gesto ambíguo, cada passo em falso, cada gesto mal interpretado dos homens que os leva à intensificação da paranóia e à derrota final. A comédia de erros dos homens, sua incapacidade de organização é tão trágica quanto a capacidade de ação individual do "thing" é monstruosa.

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O Enigma de Outro Mundo é a primeira parte de uma série que o diretor chama de "trilogia do Apocalipse" (as outras duas são O Principe das Sombras e À Beira da Loucura). O que une estes filmes é, de fato, uma perspectiva fatalista que não se estende ao restante da obra de Carpenter -- e que está bem representada nos finais abertos e inconclusivos de cada filme. Se À Beira da Loucura é o que melhor desenvolve a crítica à massificação, inscrevendo seu discurso na lógica consumista e O Principe das Sombras trabalha sobre as relações ciência-religião (ambas soluções insuficientes para o problema), em O Enigma é a própria natureza do convívio social que representa o campo de trabalho.

Tal como em alguns trabalhos de Hawks, O Enigma não apresenta entre seu grupo de personagens uma mulher. Tal como em Hawks há um componente de misoginia presente. Há algumas personagens femininas fortes na obra de Carpenter, mas a presença delas não é suficiente para afastar o universo carpenteriano de sua origem fortemente calcada no imaginário masculino. Isso leva alguns, não sem alguma razão, a apontar um componente (inconsciente) de homoerotismo em seu cinema, presente como um tabu. Essa leitura pode se apoiar, por exemplo, no fato de que o horror em O Enigma é, antes de tudo, o medo do contato físico.

Mais importante que isso, a visão negativa do autor se apóia na falência de um item fundamental na constituição do homem moderno (idealizado em Hawks) que é o senso prático, pragmatismo ou objetividade. Em O Enigma tudo se apresenta para perturbar o controle dos homens sobre as situações: a natureza se revolta (ao homem não cabe dominar a paisagem hostil, como no oeste); o domínio da técnica não vale de nada. O próprio acampamento que deveria servir de proteção é portador da ameaça, espaço claustrofóbico que deve, no fim, ser levado aos ares. Nesta inversão (e suas consequências -- morais, principalmente) reside a noção do apocalipse carpenteriano.

Resta, no fim, uma imagem dantesca de um rosto distorcido, derretido à maneira dos relógios de Dali a nos encarar como um enigma. Deste rosto, cuja expressão é a de quem teve em primeira mão uma visão do inferno, Carpenter faz o depositário de um horror inominável, Lovecraftiano. É a imagem-síntese de sua obra: a expressão congelada de quem perde seu mais importante atributo -- sua identidade.

Fernando Verissimo