Starman, o homem das estrelas, de John Carpenter

Starman, EUA, 1984


O que dizer de Starman - O Homem das Estrelas, assinado John Carpenter? As críticas foram arrasadoras, e o mesmo pode ser dito do comprtamento dos admiradores: piegas, meloso, insosso, impessoal foram alguns dos adjetivos mais cruéis. O que crer a partir desses julgamentos? Apressados, no mínimo, e absolutamente equivocados no máximo. De entrada, pode-se dizer que Starman toca justamente num lado menos comum mas sempre presente de seu cineasta. Dos realizadores menos estranhos, costuma-se dizer que certos filmes são seus filmes "noturnos". Fazendo relação inversa, Starman é um filme diurno de Carpenter - e um grande filme diurno, como A História Real de David Lynch, recém-estreado nos cinemas. Da mesma forma que um filme noturno nos revela o pesadelo de certos diretores menos apocalípticos - Gigi de Vincente Minnelli, Festa de Casamento de Richard Brooks -, um filme diurno é o reverso "clean" de um cineasta que ama as sombras. Mas não se pense que esse clean tenha a ver com um abrandamento, seja temático seja estético. Porque todas as peculiaridades do cinema de Carpenter estão presentes. Para dialogar não com um mundo de monstros e fantasmas - e com toda uma lógica do nunca-fechar, do deixar em suspenso -, mas com um mundo onde os valores, apesar de tudo, são claros e uma esperança de felicidade é possível (Para Lynch, morrer tendo finalmente feito as pazes com a alma-irmã; para Carpenter, viver um momento que fará o protagonista fazer as pazes com o passado para viver melhor o futuro).

Starman pode ser interpretado como um filme de cinema fantástico, mas ele é acima de tudo um filme de amor. Um amor incomum, inconciliável: é impossível a) porque o marido está morto e b) porque o alienígena, que substitui o marido, deve voltar a seu planeta sob risco de morrer se fica na Terra. O relato deixa claro desde o início: Jenny Hayden é uma viúva prematura que, tendo perdido seu marido num acidente, não consegue sair de sua esfera. O filme já a apresenta sob esse signo: ela assiste, provavelmente por vezes repetidas, um rolo de filme em que o marido aparece sorrindo e brincando para a câmera. Ao mesmo tempo, o alienígena (em forma de um círculo de luz branca) precisa de um corpo para existir no planeta Terra. Acaba deparando-se com um álbum de fotografias de família e, nele, com um tufo de cabelo que permite reconstituir o corpo de Scott. A mutação se dá diante dos olhos da esposa, indo de um feto esquisito, com uma aparência quase deformada, ao corpo de criança, chegando no adolescente e finalmente tomando a forma final de adulto. Ela, que se sentia ameaçada por uma estranha criatura que crescera em sua sala de estar, fica atordoada ao ver o rosto de seu ex-marido.

É apenas a primeira seqüência do filme, mas é muito poderosa: nela, vemos de primeira a necessidade de reciprocidade de cada um. Ela precisa urgentemente reviver momentos com o marido, enquanto ele precisa encontrar meios para se locomover por dois estados americanos e reencontrar em três dias sua nave espacial. Nela também se vê a importância dos atores, e da maneira com que Carpenter trabalha com eles. Muito geralmente se critica a falta de arroubos dramáticos em seus atores, o fato de serem mais expressões do que atuações. Mas como com Hitchcock ou Sternberg (que odiavam a interioridade dos atores), são sempre as expressões mais simples, e portanto mais diretas, que carregam a dramaticidade de cada cena. Assim, os olhos de Karen Allen - grandes e perdidos como os de outra Karen, a Carpenter (nenhum parentesco com o John) - dão a perfeita dimensão de mulher perdida no mundo. Com Jeff Bridges, basta que ele faça alguns gestos inadequados para que se caracterize como extraterrestre, sem gestos de grandiosidade ou do freqüente histrionismo com que Hollywood nos brinda em seus filmes mais pretensiosos. Para John Carpenter, a austeridade dos atores e a concisão dos gestos é a qualidade fundamental de atuação.

Starman se desenvolve como uma história de amor pelas estradas do sudoeste dos Estados Unidos. O argumento sci-fi, um alienígena que chega à Terra, não passa de um mcguffin, um dado atrativo ao espectador mas que só serve para fazer evoluir a história. O importante no filme é a troca, a aprendizagem que realiza um casal que não revela nenhum traço especial – atenção para os semblantes bastante anódinos dos protagonistas –, são simplesmente duas pessoas comuns perseguidas pela força policial inteira dos EUA.

É nesse aspecto, contudo, que o filme se revela mais carpenteriano. Cedo no filme, uma conversa entre o chefe de investigações Fox e o cientista Mark Shermin nos apresenta a questão: o homem do exército quer perseguir o alienígena sob pretexto de segurança nacional, enquanto o cientista preocupa-se antes de tudo pelas possíveis trocas com outros planetas. Perguntado pela possibilidade de haver uma situação semelhante a quela em que os missonários são comidos pelos canibais, o homem de ciência redargüe: "Mas nesse caso quem são os missonários e quem são os canibais?" O prolongamento do filme mostrará claramente: os homens e sua sede de manter tudo em controle e em aparente superioridade. Tema tipicamente próprio a Carpenter, os chefes, os homens que tomam decisões não passam de grandes canibais que se alimentam – e gozam – unicamente do poder. E o gesto final é sempre o da recusa, da insubordinação. Uma vez tendo travado contato com o alienígena e descoberto que ele teria pouco tempo de vida se ficasse na Terra, Shermin os deixa seguir viagem atestando não serem os suspeitos. Pouco depois, Fox chega e, quando toma conhecimento do ato de Shermin, já é tarde demais. Como em Fuga de Nova York, o anti-herói dá ao poderoso em questão uma pista falsa.

Como contraponto à sordidez do serviço de Fox, reside a ingenuidade de uma criança aprendendo os códigos humanos, aprendendo a rir, a fazer sinais (OK, o polegar levantado de agradecimento ou o dedo médio levantado em sinal de desagravo), perguntando singelamente a sua companheira "Jennyhayden" o que é o amor. Retrato idealizado, segundo as regras do gênero, mas antes de tudo um apelo pungente às forças da cordialidade num mundo dominado pela intolerância. Ao final, a separação dos corpos. Scott-alien parte para seu planeta e Jenny permanece na Terra. Uma semente, no entanto, os unirá para sempre e fará o que era fisiologicamente impossível para a viúva, declarada estéril: um filho de seu marido.

Ruy Gardnier