Cartas dos leitores
Sobre o artigo de
Felipe Bragança acerca da Casa dos artistas
Um Porém
O longo e munucioso
artigo de Felipe Bragança sobre o programa Casa dos artistas, do SBT,
foi, sem dúvida, um dos mais cuidadosos que li tratando do assunto. Com
isso, finalmente, vi uma reflexão que não pecou por aquela arrogância
crítica que, em seu extremo, pode ser resumida pela atitude do "não é
preciso ver para não gostar". Por outro lado, vale dizer, talvez o artigo
tenha pecado pela sua força reativa. Ao se contrapor a esta atitude majoritária
da crítica cultural brasileira, o artigo parece, algumas vezes, não ver
mais nada além daquilo que a maioria ignora. Longe de mim tentar entrar
no mérito dos argumentos específicos do artigo, até porque não acompanhei
com tanto afinco o programa. No entanto, gostaria de colocar um "porém".
E ele consiste no
seguinte. Embora Casa dos artistas tenha sido, sem sombra de dúvida, a
melhor notícia da programação televisiva do ano 2001, como há muito não
se via, nem tudo é tão saudável nesta novidade da teledramaturgia. O fato
de reconhecermos a quebra da mesmice da televisão brasileira graças a
este programa não precisa nos impedir de ver nele indícios de um mundo,
ele mesmo, medíocre. Aliás, embora isso não sirva como caução, é este
o motivo pelo qual muitos descartam a importância do programa, de pronto.
A meu ver, Casa dos
artistas confirma que a espetacularização da vida privada, mesmo que forjada
dramaturgicamente, constitui uma obsessão de uma sociedade na qual a liberdade
parece se extinguir. A curiosity seeking, como chamam os norte-americanos,
é o que permite o sucesso da Casa. Em suma, é no olhar para a privacidade
do outro que está a sedução da Casa dos artistas. Por trás disso, o já
maltratado subjetivismo moderno resiste. Não é certo, vale ressaltar,
que o jogo entre o público e os personagens proposto pela Casa seja tão
lúcido como pode parecer. Segundo Felipe, "quando o público é conquistado
(…) pode-se observar que não estão sendo enganados, passados para trás:
pelo contrário, entra-se no jogo do personagem conscientemente, participando
da brincadeira". Não estou certo sobre a correção do advérbio "conscientemente"
aí usado, o que é fundamental.
Afinal, se é verdade
que os telefonemas dominicais giravam em torno das personas daqueles "artistas",
também é verdade que eles patentearam uma crença na "autenticidade", palavra
corrente tanto para o público quanto para os participantes. No perverso
esquema de utilização do princípio democrático do voto para a exclusão,
teve destacada importância, na opinião dos votantes, se o participante
da Casa estava sendo ou não aquilo que ele é fora do programa, se ele
estava ou não sendo autêntico. Subjaz aí, talvez, uma crença numa interioridade
verdadeira que pode ser como que verificada diante de certas circunstâncias,
às quais a Casa atende. A Casa faz as vezes da casa de cada uma daquelas
pessoas, portanto, cenário privilegiado para saber como elas são, o que
elas são.
Casa dos artistas
nos coloca diante de uma novidade e, como tal, nos convoca a pensar, ao
contrário do que muitos acham. Nem por isso, no entanto, está garantido
que o jogo aí proposto entre os personagens e o público resulte realmente
numa interação igualitária. Esta impressão deixa de lado o fato de que
a roda gira em torno de doze pessoas que estão ali para ser vistas, incitando
a curiosidade do público. De onde vem essa curiosidade e no que ela está
sustentada? Essas perguntas, ao que me parece, são cruciais. E ainda não
foram bem respondidas.
Pedro
Duarte de Andrade
Caro,
Pedro,
Bem
vindo seja o seu porém às minhas conclusões precipitadas.
Se meu enfático elogio à Casa dos Artistas teve lugar em
dado momento, talvez já seja mesmo saudável uma reflexão
posterior. Escrever para um canal como a Contracampo muitas vezes é
um trabalho que ultrapassa a mera observação e nos pede
uma certa tomada de estratégias argumentativas, um tanto imprecisas.
Naquele momento exato da publicação de meu artigo (Contracampo
33) não havia espaço algum para "poréns". Diante
das inúmeras e limitadas opiniões que circulavam na mídia
em geral sobre o programa do SBT, era necessária, sim, uma chamada
radical e direta quanto a necessidade de se olhar a Casa dos Artistas
por outro viés. Supervalorizar seus pontos positivos talvez tenha
sido a única estratégia viável para se sair do ping-pong
diário das críticas, que resumiam o programa a um zoológico
humano, a um circo popularesco de horrores, etc...
Agora,
passado o impacto inicial, e aqui preciso agradecer a você o incentivo
a continuar pensando a questão, talvez seja importante avançar
mais alguns passos. Explicitar certas intenções e admitir
certos limites.
*
* *
Em
meu recente artigo sobre o Big Brother Brasil exibido na Rede Globo reiterei
meus elogios ao programa do SBT – nesse artigo, de certa forma, esclareci
um pouco mais certas questões da Casa. Com a estréia da
versão Global do sucesso holandês, tornou-se necessário
novamente reiterar as "diferenças possíveis" entre
os dois programas. Tornou-se necessário demarcar os limites que
evitem colocarmos tudo no mesmo saco de lixo. Digo "diferenças
possíveis" pois não se tratam , necessariamente, de
aspectos explicitamente colocados pelos programas em si, nem que partissem
de uma proposição direta de seus diretores. Diferenças
que merecem ser colocadas não como frutos de mera observação
mas como proposta.
Supervalorizar
o aspecto de consciência do público diante da Casa dos Artistas
era, portanto, não apenas um trabalho analítico mas a demarcação
de uma trincheira crítica para as potencialidades do programa e
do tipo de realidade construída ali dentro.
Discordo
que o programa funcione como um espelho de um mundo medíocre. Esse
tipo Minha tentativa é justamente a de observar os possíveis
indícios de nossa mediocridade e valorizar aqueles pontos que possam
representar a possibilidade de alguma renovação do jogo
social-simbólico estabelecido normalmente pela televisão
brasileira.
Se
a liberdade em nossa sociedade tende a extinguir-se, é necessário
justamente nos reformular diante das prisões. Constatar o aprisionamento
e propor um movimento de recuo é infrutífero. Mais interessante,
me parece, é assumir, sim, nosso caráter de observadores
e reconfigurar esse espaço para nossa própria reinvenção
de liberdade. Atravessando os muros.
Se
é na curiosidade na privacidade alheia que vive o sucesso de Casa,
a presença ali, naqueles Domingos, de um espaço público
de significação também é incontestável
e, a meu ver, talvez seja mais interessante valorizar esse espaço
do que se limitar a criticar nossas obsessões privadas.
Em
Casa dos Artistas vemos os impulsos pela observação da privacidade
de 12 pessoas se transformar num espetáculo conjunto de dramaturgia.
O subjetivismo ali se reconfigura em farsa – os "artistas" se
expõe como palhaços e o espetáculo se entrega ao
público. Não creio que tenha existido tal crença
na autenticidade, como você diz. O que tento ressaltar é
o modo como o próprio Silvio Santos se encarregava estabelecer
o tom do espetáculo improvisado – nunca utilizando, por exemplo,
a "marca registrada"de reality show para o programa. Numa das
passagens mais memoráveis, Silvio Santos respondeu a Supla sobre
as críticas de que o programa seria uma farsa: "Claro que
sim, vocês todos são atores, e eu...eu sou o maior ator de
todos, por isso eu estou aqui e vocês aí..."
Se
A Casa dos Artistas foi limitada, como coloquei antes, pelas temáticas
que seus atores souberam representar, seu modelo de espetáculo
público merece ser observado e diferenciado dos shows de reality
da TV Globo. A falta de criatividade do BBB demonstra a dependência
nula que a TV Globo vem alimentando em relação aos ditames
da criação internacional de TV. Por outro lado, a Casa representa
o que há de mais rico na experiência subversiva de reconfiguração
e digestão do modelo holandês para a criação
de um espetáculo único da TV Brasileira. Se não há
interação igualitária em Casa dos Artistas, acho
que é nosso papel como críticos observar essa potencialidade
e valorizá-la. Muitas vezes, a estratégia de se relevar
os poréns é a única alternativa para trazer à
tona os novos aspectos que nos interessam.
*
* *
As
perguntas que o programa nos coloca estão sim ainda em aberto.
Porém, mais do que respondê-las, é essencial pensar
Quais são as perguntas que queremos fazer. Se tudo se resume à
curiosidade do publico?... Creio que essa explicação não
nos traz muitas possibilidades. Mais do que analisar essas causas, seus
sustentáculos, Casa dos Artistas pode ser uma possibilidade vital
para a proposição de novos paradigmas de representação
para nossa televisão. A descentralização da autoria
dramatúrgica e a ausência do ranço de qualidade virtuosa
ditada pelos padrões Globais de TV, podem, e devem, ser usadas
a nosso favor como possibilidade de descentralização tanto
da produção quanto da criação televisiva em
nosso país. E é aí que está a motivação
maior de meus elogios.
Localizar
os poréns de um fenômeno como a Casa será sim um desafio
importante e essencial para o desenvolvimento mais preciso de idéias
em torno do tema. Espero, entusiasmado, que esse nosso diálogo
tenha fôlego para continuar.
Grande
abraço,
Felipe
Bragança.
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