Cartas dos Leitores


-Sobre Abismo de um sonho

Li sua crítica sobre "O abismo de um sonho", do Fellini. Achei muito boa, equilibrada e, sobretudo, sensível ao filme. No entanto, gostaria
apenas de fazer um comentário sobre um ponto que, justamente porque a crítica como um todo me pareceu muito sensível, a meu ver, destoou. Trata-se da parte em que você descreve o Ivan como um "pequeno-burguês interiorano cheio de si". Acho que um dos méritos do filme está precisamente em não deixar esta imagem dominar o personagem. Parece-me haver uma docilidade no modo como Fellini desenvolve a parte da narrativa que o segue e que faz com que se amenize esta que é, em verdade, a primeira impressão. O modo como ele dá valor aos compromissos sociais soa não como o de alguém "cheio de si". Ao contrário, me parece haver um "quê" de humildade, misto de ignorância e reverência, no personagem que retira dele esta aura de "pequeno burguês".

Algum apreço pela mulher, mesmo de um modo que pode parecer a nós meio torto, aparece no meio de sua ânsia em não decepcionar os tios. Seus versos de amor ridículos, por exemplo, demonstram uma tocante afetividade em relação à mulher, para além de ser socialmente bom que ela seja sua esposa.

Há uma sinceridade naquele homem, em seus sentimentos, e seu programa de viagens não é somente fruto de motivações pequeno burguesas mesquinhas, mas também de uma realização social que não exclui a importância que sua mulher tem em sua vida afetiva.

Um dos méritos, ao meu ver, do filme é esta docilidade com que o
personagem de Ivan, assim como o de sua mulher, é tratado.
Bem, era só isso.

Obrigado pela atenção,
Pedro Duarte

Caro Pedro,

Mais que pertinentes, seus comentários sobre "O Abismo de um Sonho" chamam atenção para minha própria negligência em relação a este aspecto (aliás, fundamental) do trabalho de Fellini.

A simpatia dedicada à personagem em questão (Ivan, o noivo) se estende a todas as outras no filme e corresponde a um sentimento presente com frequência em toda a fase inaugural da obra do cineasta. Assim Ivan, o Xeque Branco, Wanda, I Vitelloni, ou mesmo Cabiria, Gelsomina ou a jovem que aceita a proposta de casamento de um lobisomem em Un'agenzia matrimoniale recebem um mesmo tratamento respeitoso, cuidadosamente distanciado.

É essa distância -- sob a qual comportamentos absurdos, duvidosos, cômicos ou singelos são vistos como manifestações igualmente patéticas ou inocentes (ou ainda dóceis, como você sugere) -- somada à fina ironia dos primeiros Fellini, que nos permite cair na armadilha de negligenciar algum aspecto da ambiguidade fundamental sobre a qual o autor constituiu sua obra: quer seja a docilidade ou a crítica sutil dispensada às personagens.

Julgamos de suma importância uma leitura crítica e atenta de nosso trabalho (afinal é o que nos propomos no exercício da crítica cinematográfica, em primeiro lugar). Respostas como a sua nos incentivam a continuar aperfeiçoando esse trabalho.

Agradecendo os elogios e a visita à Contracampo, em nome de toda a equipe, me despeço.

Abraço,
Fernando Verissimo