Sentindo
na Pele
Existem basicamente
duas maneiras de se encarar a produção de cinema. Uma que
sustenta a sua natureza popular, ressaltando que essa produção
se justifica no público e para ele. A outra, mais rejeitada pela
indústria, já prefere situar o cinema como uma arte, reservando
a ele o direito de se manter longe das picuinhas existenciais cotidianas.
A legitimação nesse caso não se faz junto ao público,
mas sim através de um julgamento que leva em conta valores menos
quantificáveis.
Não é
de admirar que nesse desacordo de concepções coexistam também
duas Críticas. Para o cinema público, de estúdios
industriais, de consumo rápido, há a crítica moldada
à sua semelhança. Fazendo levantamento das produções,
descrições e anúncios de novidades, é a responsável
pelo esvaziamento teórico da fruição cinematográfica
das grades platéias. Seu desacordo com a outra crítica está
basicamente na idealização do Cinema.
Seguindo também
as imposições do cinema que analisa, a outra crítica
já tenta entender seu objeto usando métodos mais livres,
considerações mais profundas, faz relações
entre diferentes realidades, e tenta estudar o filme sem partir do pré-suposto
de que ele é um produto de consumo simplesmente. Aqui contam mais
as considerações estéticas. Um extremo possível
de ser imaginado é a total transformação do cinema
em conceitos, abolindo-se de vez o objeto. E a separação
crítica/realização está dada.
Não que o extremo
vá ser alcançado. Afinal, espera-se que os críticos
exerçam a crítica por gostarem do cinema que vêem.
Mas, justamente por isso, existe uma certa arrogância, não
só por parte da crítica, mas também vinda dos realizadores.
Críticos achando que sabem exatamente como um filme deve ser, adivinhando
o que os seus criadores queriam passar, onde não concretizaram
seus anseios e porque não o conseguiram. Realizadores cheios de
revolta sem causa, ávidos por independência, cegos aos benefícios
que uma teoria e um julgamento bem embasado podem agregar às suas
obras.
Não se trata
de um embate entre a razão e os sentimentos criativos. No cinema,
ou na arte, a partir do momento em que o objeto está pronto, que
ele já está presente, sendo exposto, é impossível
impedir que ele seja admirado. A crítica ama o seu objeto e antes
de condená-lo injustamente, seu objetivo é elevá-lo,
entendê-lo, desvendar seus arranjos internos, para que o aprimoramento
aconteça. O esvaziamento do debate promovido pela crítica
rápida e rasteira acaba sendo contraditório. Mais é
compreensível que isso aconteça. Quando o público
demanda objetos de consumo, sua crítica será a superficial
cabendo ao realizador escolher quem ele quer agradar. É a velha
questão de saber quem mais entende de cinema, o público
ou os críticos da Cahier du Cinema.
Parece unânime
então que o bloqueio é armado por má vontade da parte
que produz os filmes, como se os ditames da Crítica fossem rejeitados
por pura birra. Mas uma observação mais desinteressada revela
que é muito mais fácil pensar sobre alguma coisa depois
que ela esta pronta. Realizadores são guerreiros. Enquanto o maior
problema dos críticos é a falta de resultados concretos
de sua militância, que é ignorada pelo esquema de consumo
de novidades imposta pela demanda do público, quem faz os filmes
e não quer participar desse mesmo esquema conhece a mesma ignorância,
mas nesse caso, depois de desprenderem muito mais energia.
O contato direto com
o público é feito pelo filme. Daí vem o primeiro
julgamento. Se a Crítica tem um compromisso apenas com o cinema,
os responsáveis pelos filmes não podem se reservar esse
direito. E além de tudo, concretizar uma idéia, colocá-la
na tela, é uma tarefa prática, muito técnica, que
lida diretamente com a realidade. Sempre vai haver espaço para
a Crítica exercer seu papel de auto-intitulada defensora dos interesses
da expressão artística, mas fica mais coerente pensar que
a arrogância é maior por parte dela.
Acho que agora posso
falar isso com mais convicção. Afinal, se já venho
escrevendo na Contracampo a algum tempo, somente de um tempo para
cá, depois que comecei a filmar meu primeiro curta, junto com uma
colega também estreante, é que apareceu a oportunidade de
sentir na pele o que é lidar com o fato concreto da realização.
Sentar em frente a um computador para escrever não se compara com
a trabalheira que é fazer um filme. Todas as escolhas estéticas
pesadas tão seriamente, cada significação tão
sabiamente elaborada, todo o resultado final ingenuamente delineado depois
de tanta reflexão crítica em cima do que desejava concretizar,
tudo isso, de repente confrontado com a dura verdade do fazer cinema.
Na prática as coisas são outras. O mundo ideal pensado não
tem correspondente direto com os inúmeros imprevistos do real.
Todos os problemas, de todas as procedências surgem de uma hora
para outra. Seja a falta de recursos para filmar um plano inicialmente
imaginado ou seja a constatação de que o que se pressupunha
ser a compreensão obvia do público não condizer com
a verdade. Foi fácil descobrir que um filme não é
só elucubração individual. O fenômeno cinematográfico
envolve a teoria em uma ponta e o público no final, sem esquecer,
é claro, todo o problema inerente à feitura do que se vê
na tela.
A Crítica se
vê muito injustiçada, esquecida pela platéia, sem
influência direta sobre o que se faz para as telas. Isso é
fato. Mas a experiência de filmar pode fazer com que a mesma Crítica
perceba que ela vai ser sempre incompleta enquanto não levar em
consideração o Cinema e todos os seus desdobramentos. Uma
abertura dura, mas talvez necessária para se adequar aos novos
tempos tão preconceituosos com o pensamento puro. É bom
incorporar a realidade para continuar idealizando o mundo com mais propriedade.
João Mors Cabral
P.S.: O autor está
finalizando, com sua colega Karen Barros, o curta-metragem Bichos Urbanos.
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