Lute
pela Coisa Certa

School Daze, de
Spike Lee (EUA, 1988)
Que seja dito, de saída, e bem claro:
este é um filme estranhíssimo. O espectador passa boa parte
do tempo patinando nas intenções de Spike, em busca de uma
bússola que o guie e indique como ver aquilo que se passa diante
de seus olhos. Porque é fato que ele arrisca aqui neste filme,
como poucas vezes se vê no cinema, um abraço a um gênero
ao mesmo tempo em que se detona suas estruturas, de dentro. E, é
difícil tornar palatável um cinema de gênero enquanto
se tenta demoli-lo, afinal o gênero pede a adesão do espectador,
enquanto é criticado.
O filme só se desvenda por completo
na cena final, com um dos mais belos e poéticos planos da carreira
de Spike Lee (e isso é dizer muito), numa sequência que inclusive
inaugura no seu cinema um tipo de movimento de câmera que volta
constantemente na sua obra, aquele no qual o personagem voa por sobre
um cenário junto com a câmera na grua, criando uma estranha
leveza áspera. Finalmente fica claro ali o que ele quer nos dizer
ao longo de duas horas de muitas dúvidas: que deveria ser OK para
os negros poderem se divertir com uma autêntica frat house comedy
(pensemos aqui em Clube dos Cafejestes -Animal House/1978,
acima de todos), mas que eles no fundo não podem cair no golpe
de achar que já estão neste ponto politicamente. Antes de
poderem descansar e se dedicar às gargalhadas há muito chão
para cobrir. É isso que indica o plano final (com Laurence Fishburne
olhando no olho do espectador e sussurrando "Por favor, acordem!", como
se todo o filme que tivéssemos visto fosse apenas isso, um sonho),
o que se torna ainda mais significativo se pensamos que o filme seguinte
do diretor seria o seminal Faça a Coisa Certa.
Aliás, é extremamente adequado
pensar em Lute pela Coisa Certa (título chupado do sucesso
do seu sucessor, claro) como um sonho. Porque só isso explica a
estrutura absolutamente livre, porque não dizer caótica
mesmo, onde cada sequência parece obedecer uma lógica interna
diferente que desconcerta seguidamente o espectador. Assim é que
o discurso político se mistura com a sátira comportamental
que se mistura com o número musical que se mistura com a comédia
sexual mais direta, tudo numa estrutura que torna o filme muitas vezes
enfadonho e desritmado. Mas, que se visto a partir do seu final ganha
um sentido absolutamente político e pé no chão mesmo,
onde Spike conclui que o momento dos negros se divertirem e serem descerebrados
e amantes do "cinema pelo cinema" ainda não chegou.
É claro que a partir desta leitura,
o espectador pode ir recolhendo as pistas que o diretor vai espalhando
pelo filme, a começar pelo belíssimo desenho dos créditos,
com fotos de arquivo lembrando os grandes ícones e momentos na
história dos negros norte-americanos. A pesquisa de alguma forma
lembra o trabalho feito em A Hora do Show, e aliás o nível
de auto-crítica e ironia mordaz presente na figura do negro cria
paralelos interessantes entre os filmes, que a trilha sonora por exemplo
reforça bastante. Talvez esta seja a melhor maneira, aliás,
de ler este filme: como certamente um projeto truncado e imperfeito, mas
que se visto sob a luz da carreira que se seguiu até este mais
recente filme, transborda não apenas de coerência, mas de
uma verdadeira e corajosa teimosia, e "mau humor" da melhor estirpe. Além
da capacidade de ser um grande apanhado da figura do negro no cinema e
na sociedade, coisa que Spike só ampliaria, lidando com o negro
na música, na política, no entretenimento, na violência
urbana, etc.
Eduardo Valente
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