Algumas
palavras sobre Satyajit Ray
A programação
de filmes na TV a cabo para 2002 não poderia começar de
maneira melhor. O ciclo O cinema de Satyajit Ray , programado
pelo canal Telecine Classic entre os dias 21 e 27 de janeiro dá
ao espectador a oportunidade de conhecer os trabalhos da fase inicial
daquele que é considerado, não somente o mais importante
realizador do cinema indiano, como também um dos grandes mestres
do cinema de todos os tempos. É verdade que todos os títulos
programados passaram no Festival de Cinema do Rio de Janeiro de 1998,
mas a exibição pela TV a cabo pode tornar acessível
a um maior número de pessoas alguns filmes essenciais de um diretor
muito pouco assistido no Brasil.
Satyajit Ray nasceu
na cidade de Calcutá, em 1921, em uma família de classe
média bastante ligada à literatura e à produção
gráfica. Estudou artes plásticas e, durante a década
de 40, trabalhou como desenhista para publicidade e ilustrador de livros.
Neste período foi co-fundador dá Calcutta Film Society,
que funcionava como cineclube, exibindo filmes ocidentais. Também
era profundo conhecedor de música clássica ocidental. Em
1949, Jean Renoir vai a Calcutá para preparar as filmagens de The
river (qual o título brasileiro?) e Ray o acompanha durante
a escolha de locações. Renoir pergunta se ele não
estaria interessado em tornar-se cineasta. Ray afirma que sim e apresenta
ao diretor francês um romance que havia ilustrado recentemente:
Pather Panchali, de Bibhuti Bhushan Banerjee.
Gostaria de ressaltar
que os dados biográficos do parágrafo anterior não
foram apresentados apenas a título ilustrativo ou como curiosidade
enciclopédica. São de fundamental importância para
a sua formação como cineasta e para a compreensão
de sua obra. A sua experiência como desenhista o aproxima de outros
grandes diretores seus contemporâneos que exerceram o ofício
antes de dedicarem-se ao cinema: Fellini e Kurosawa e que, assim como
Ray, demonstram em seus filmes um grande apuro na construção
de imagens.
Além do encontro
com Jean Renoir, outro fato marcante para o início de sua carreira
como diretor foi seu contato com os filmes do neo-realismo italiano, em
especial Ladrões de bicicleta, durante uma estada em Londres
no ano de 1950, quando Ray já trabalhava na adaptação
de Pather Panchali. A experiência lhe forneceu suporte para
a idéia de realizar o filme em locações reais e com
atores não profissionais ou desconhecidos, o que havia sido considerado
absurdo até então. Sua fita de estréia introduz a
linguagem neo-realista no cinema indiano, marcado por características
extremamente escapistas. Esta linguagem se fará presente durante
a fade inicial de sua obra, à qual é dedicado o ciclo em
questão.
A sua origem geográfica
da região de Bengali também está marcadamente refletida
em seu trabalho. Satyajit Ray e o escritor Rabindranath Tagore são
considerados os maiores expoentes da cultura Bengali. Tais características
regionais também se opõem ao estilo do cinema indiano tradicional.
Num país de uma pluralidade cultural tão diversa como a
India, o cinema popular se utiliza de temas heróicos e atemporais
e de uma forte presença da música para atingir uma platéia
o mais ampla possível. A ligação à cultura
Bengali é uma fonte de um bom número de críticas
que o diretor recebeu em seu país, uma vez que a difusão
de sua obra por todo o mundo faria com que as platéias ocidentais
considerassem a India retratada por ele como representativa de um todo.
Além disso, os mesmos críticos consideram sua obra contaminada
pela cultura ocidental, bastante presente devido às origens burguesas
e urbanas do autor.
Mas Satyajit Ray,
como todo grande artista, conseguiu superar algumas aparentes limitações
de sua formação criando uma obra de interesse universal,
que traz às telas uma temática profundamente relacionada
à identidade social de uma gama diversa de personagens. Ray acreditava
que o comportamento de seus personagens seria produto de sua existência
em um determinado contexto local e social. Ele geralmente sugere este
contexto através de detalhes significativos, que gradualmente irão
formar um universo em particular. Outra questão recorrente em sua
obra seria a oposição entre modernidade e tradição
e entre racionalismo e superstição.
A presença
de uma temática relacionada ao indivíduo foi também
outra intensa fonte de críticas ao autor. A grande difusão
de uma ideologia marxista entre as camadas intelectuais de Calcutá
fez com que este grupo em particular considerasse Satyajit como o supremo
representante de uma cultura burguesa e que a política fosse vista
como uma temática ausente de sua obra. O diretor rebateu essas
criticas afirmando que sua obra teve um posicionamento político
mais evidente que o de qualquer outro diretor indiano e que não
foi além devido às pressões da censura em seu país.
De qualquer forma, este posicionamento político mais explícito
encontra-se presente numa segunda fase de sua obra, a partir da segunda
metade da década de 60, que não costuma ser tão apreciada
pela crítica internacional quanto seus primeiros trabalhos.
Quanto ao seu estilo
de filmar, Satyajit Ray considerava que "a melhor técnica
de filmagem é aquela que não é notada pelo espectador".
Para ele, a técnica seria somente um meio para que fosse atingido
um fim. Não era de seu agrado a idéia de um filme chamar
mais atenção para o estilo que para o conteúdo. Nunca
fez uso de seu total domínio dos recursos cinematográficos
para demonstrar virtuosismo. Sua movimentação de câmera
era planejada de forma a retratar as características psicológicas
dos personagens. Mesmo buscando esta neutralidade, seus filmes são
repletos de planos extremamente elaborados, dotados de uma beleza ímpar.
Satyajit Ray era um
autor completo que participava de todas as etapas da criação
cinematográfica. Em todas as suas fitas, foi também o produtor
e roteirista, além de compositor da trilha musical a partir de
Três mulheres (1961). Operava a câmera e exercia um
controle rígido sobre a montagem e a direção de arte.
Sempre filmava os exteriores em locação e os interiores
em estúdio e trabalhou durante sua carreira praticamente com a
mesma equipe. Dirigiu pelo menos um filme por ano desde sua estréia,
em 1955, até a década de 80, quando seu precário
estado de saúde fez com que diminuísse o rítmo. Mesmo
assim, concluíu seu último trabalho, Agantuk, em
1991, apenas um ano antes de sua morte.
Falemos agora sobre
os filmes a serem exibidos. O ciclo começa com seu primeiro trabalho,
Canção da estrada/Pather Panchali Lançado
em 1955, demorou três anos para ser concluído, por dificuldade
de financiamento. Como já foi dito, foi adaptado de um romance
e é dotado de um estilo neo-realista. Conta a história de
uma família pobre que vive numa aldeia em Bengali. O filho mais
jovem, Apu será também o protagonista de outros dois filmes
que se seguirão a este que retrata a sua infância, marcada
por descobertas e pela amizade com a irmã mais velha, Durga. O
filme é caracterizado por um equilíbrio entre nostalgia
e realismo. Poucos filmes retrataram de maneira tão lírica
quanto este a integração homem-natureza. Tem fundamental
papel na narrativa a estrada que leva à casa de Apu , através
da qual seus personagens interagem com o mundo, até a sequência
final, quando a família parte para a cidade após a morte
de Durga. Seu êxito em festivais projetou o nome de Ray mundialmente.
Em seguida veremos
os filmes que dão sequência à chamada Trilogia
de Apu. O invencível/Aparajito foi feito logo em seguida,
em 1956. Ganhou o Leão de Ouro em Veneza, e mostra Apu no final
de sua infância, na cidade de Benaras, e adolescência, quando
retorna com a mãe para o interior, após a morte do pai.
Sua desavença com a mãe, que aspira torná-lo sacerdote,
em oposição ao seu desejo de frequentar uma escola ocidental
reflete o embate entre tradição e progresso. Seu retorno
à casa vazia, após a morte da mãe é um momento
de genuína emoção, onde Ray consegue driblar de forma
brilhante as armadilhas do melodrama fácil. Ao final, vemos Apu
novamente na estrada, para iniciar uma nova etapa em sua vida.
O terceiro filme,
O mundo de Apu/Apur Sansar (1959), não foi feito logo em
seguida, nem foi inicialmente planejado por Ray. Surgiu apenas pela necessidade
de um êxito comercial após o fracasso dos dois trabalhos
que se seguiram a O invencível. Mesmo assim, é outra
ótima fita, na qual vemos a entrada de Apu na vida adulta, sua
dificuldade para ingressar no mercado de trabalho, seu desejo de se tornar
escritor e seu casamento de conveniência. Guarda em comum com os
outros filmes da trilogia a presença da morte, a habilidade do
diretor de emocionar sem manipular o espectador e o plano final da estrada
,como metáfora da vida que segue.
A sala de música/Jalsaghar
(1958) foi o trabalho anterior a O mundo de Apu, e conta a história
da decadência de H. B. Roy, um outrora grande proprietário
rural, refletida em um salão onde eram oferecidos concertos musicais
a inúmeros convidados como demonstração de opulência.
O diretor vai fundo no retrato do embate entre tradição
e modernidade, encarnada no vizinho inculto que vai enriquecendo ao longo
do filme, enquanto o protagonista dilapida sua fortuna. Apesar de demonstrar
uma certa simpatia por Roy, Satyajit considerou o personagem como "um
dinossauro patético que não se dá conta de haver
entrado em extinção". Entre os momentos mais expressivos,
temos as encenações dos concertos e o plano final da aranha
passando sobre o desbotado rosto de Roy, pintado na parede da sala de
música.
Não sabemos
qual das versões de Três mulheres/Teen Kanya
, de 1961, será exibida, pois o filme, composto originalmente por
três episódios foi reduzido para dois na versão internacional,
devido à sua longa duração. O guia de programação
relata a metragem como tendo 161 minutos, o que nos dá a esperança
de assistir a versão completa desta adaptação de
três contos de R. Tagore. Neles observamos uma outra característica
importante da obra de Satyajit Ray que é a presença de mulheres
de temperamento forte. Merece especial atenção o episódio
inicial, The postmaster, onde um cidadão culto de Calcutá
chega a uma pequena vila do interior para trabalhar como inspetor postal
e inicia forte amizade com uma menina que trabalha como sua criada. O
diretor narra de forma bastante sutil o contraste entre as distintas personalidades.
Um drama urbano passado
na cidade de Calcutá. É assim que podemos definir A grande
cidade/Mahanagar (1963). Uma família passa por dificuldades
financeiras e a mãe é obrigada a arrumar um emprego, o que
não é visto com bons olhos pelo marido e pelo sogro. Estão
aí mais uma vez a mulher ativa e a resistência das antigas
tradições a um novo status quo. Faz-se importante ressaltar
a utilização pelo diretor de sua cidade natal como quase
um personagem na trama. O filme é um interessante retrato das dificuldades
econômicas contemporâneas à época na qual foi
realizado.
O ciclo se encerra
com A esposa solitária/Charutata, de 1964, que tanto o diretor
como boa parte da crítica consideram seu trabalho mais bem acabado.
Nele o diretor concretiza de forma mais eficiente a utilização
da câmera para retratar e enfatizar as características psicológicas
de seus personagens. É mais uma adaptação de Tagore,
onde Charulata, a protagonista é uma mulher burguesa extremamente
inteligente que se vê imersa no tédio devido às limitações
que lhe são socialmente impostas e à falta de atenção
do marido. A chegada de um primo do marido irá despertar em ambos
uma atração inevitável. Charulata é o arquétipo
da personagem feminina na obra de Ray e são inesquecíveis
as imagens que a retratam observando a rua através de um binóculo
e ao balanço.
Lamentamos a inexplicável
ausência no ciclo do absurdamente belo A deusa/Devi (1960),
que junto com os demais foi exibido na mostra de 1998. Fica também
a expectativa que algum dia também tenhamos acesso aos filmes posteriores
da Satyajit Ray, um diretor que por suas diversas qualidades conseguiu
sobressair-se naquela que é a mais prolífica indústria
cinematográfica do mundo, e que conseguiu deixar sua marca até
na televisão comercial americana (ou então por que será
que o indiano dono da loja de conveniência em Os Simpsons
se chama Apu?)
Gilberto Silva Jr.
|