Os Verdadeiros Reis da Comédia

The Original Kings Of Comedy, de Spike Lee (EUA, 2000)

Charlotte, Carolina do Norte. Quatro humoristas negros se reunem para mais um espetáculo de uma das turnês mais bem sucedidas do show business americano. Casa lotada com platéia 99% negra. Quando Spike Lee resolve documentar em video digital a apresentação, esperamos, otimistas ou pessimistas, que ele faça dos comediantes seus instrumentos ideológicos. Quando notamos, já nos primeiros instantes do filme, que as piadas dizem respeito tanto ao cotidiano americano quanto às diferenças culturais entre negros e brancos, já antevemos a mistura explosiva que Lee, habilmente, orquestrará. Com o decorrer do filme, é inegável certa frustração. Do mesmo modo que é notória a satisfação, ainda que moderada.

Trata-se de um documentário. Então, nada mais justo que Lee deixe o objeto, no caso os comediantes, livre para voar. Eles brilham, a direção dele, não. Tudo o que vemos é o registro do show de maneira careta, com várias câmeras, como manda o figurino. Mas seria tolice dizer que Lee está desinteressado no tema. Ele, que sempre foi criticado por certos maneirismos de câmera, agora apenas se contém humildemente para que possamos admirar esses quatro talentos do humor afro-americano. Alguns podem reclamar da incorreção política que norteia todo o show. Mas o humor raramente se mistura com o politicamente correto. E é salutar rir do próprio umbigo. Assim, pede-se ao público e, por consequência, ao espectador que ignorem o senso de ridículo e se entreguem à grande farra.

Steve Harvey se encarrega de apresentar os outros três. Comunicador perfeito, ele brinca com a platéia, tira o sarro do time de futebol local e divaga sobre os caminhos da música negra. Numa sequência belíssima, ele reclama da ausência de letras de amor no rap atual. Diz que antigamente os soulmen declaravam, através das canções, o amor pelas mulheres. Agora não. Pede-se que as mulheres gostem dos rappers porque estes são valentões e musculosos. E suas letras glorificam a violência. Por mais reducionista que possa parecer essa tese, ele consegue a adesão da platéia quando bota pra rolar sucessos de Earth Wind and Fire e Lenny Williams. É uma sequência forte menos por artifícios da direção do que pelo talento de Harvey.

Quando D.L.Hughley está sendo apresentado, o espectador vê o seu nervosismo, numa das poucas cenas que transcendem o documentário. Lee mostra que aquele comediante carismático ainda morre de medo do palco, mesmo depois de centenas de apresentações.

Hughley entra e se transforma no palco. Pega um pouco mais pesado, com piadas racistas e ressentimentos com a condição do negro americano. Em um momento divertidíssimo, afirma que Jesus era negro, uma velha reivindicação. Diz que transformar água em vinho só pode ser coisa de um "brother". "Não vamos estragar a festa", teria dito o Messias. A platéia delira.

Cédric, the Entertainer é o próximo. Embora ainda mais agressivo que Hughley, perde para este na habilidade de condução da platéia. Por isso suas piadas nem sempre funcionam. Ainda assim, tem seus momentos, como quando reclama que nunca teremos um presidente negro. "Chegamos perto com Clinton, mas um negro nunca cairia no conto de Monica Lewinski". É em seu show que, num dos vários momentos de provocação com a platéia, vemos nitidamente, num enquadramento digno de Spike Lee, uma jovem negra às gargalhadas enquanto atrás dela está uma senhora branca carrancuda. Pequena e rara provocação do diretor no filme. Sem levar em conta que o simples fato de se levar um espetáculo assim para os cinemas pode e deve ser considerado uma bela provocação.

Bernie Mac é o último. Através das vinhetas inseridas por Lee ao longo do filme, já havíamos percebido que ele era o mais radical dos quatro. Sua agressividade ganha ainda mais peso porque ele é extremamente talentoso. Raramente ri, deixa todos sem saber o quanto de suas provocações devem ser relativizadas. Não poupa nem as mulheres negras, "que têm penteados ridículos e cheios de cola e praticam mal o sexo oral." Seu humor não é para todos os gostos, mas sua aspereza é bem-vinda, pois contrasta com o bom mocismo levemente ofensivo da maioria dos comediantes de palco. Bernie parece não ter limites, chegando até a insinuar tortura infantil. Pobres sobrinhos. Ele nem mesmo poupa sua irmã drogada e ainda solta uma farpa: "Todos vocês tem problemas assim na família, não é mesmo." Humorismo que cutuca. Um pouco negativista, é certo. Mas necessário para se evitar o conformismo da sociedade americana.

Como algumas piadas são de difícil compreensão para quem não mora nos EUA, outras perdem a força para quem não é negro (artigos para o cabelo, sentimento de tensão pelo preconceito racial...), é inevitável que sua distribuição seja irregular no resto do mundo. Não é de se estranhar seu ineditismo nos cinemas brasileiros, ao contrário de obras bem mais acessíveis como Crooklin e He Got Game. Porém, se você não se incomoda facilmente com provocações, terá duas horas de grande diversão. Já quem procura um posicionamento mais ostensivo de Spike Lee, como em A Hora do Show, bateu em porta errada.

Sérgio Alpendre