O Quinto dos Infernos

O Quinto dos Infernos,
escrito por Carlos Lombardi e dirigido por: Wolf Maya

1ª PARTE: (semanas de 8/01 a 18/01)

"A História do Brasil do jeito que você nunca viu..." era o slogan que cercava a expectativa em torno da estréia de O Quinto dos Infernos. Passadas duas semanas de exibição do programa, a impressão, porém, é a de estamos assistindo a uma versão requentada de tudo o que já se viu dos estereótipos de Brasil e dos brasileiros. Bebendo na fonte do Carlota Joaquina de Camurati, esse O Quinto dos Infernos aparentemente não traz nenhuma novidade no que concerne a seu conteúdo e forma de representação do país. A habilidade incontestável de Lombardi, de fato, é a de aglutinar da maneira mais frenética possível tudo o que existe de mais óbvio na representação do Brasil: vagabundos, malandros, tarados... Em suma, "sacanagem" em todas as nuances de significado.

Os brasileiros e portugueses estão de volta como os mesmos seres sem-escrúpulos, incapazes de pensar em alguém além de si mesmos, mestres em artimanhas e maracutaias inimagináveis. Até mesmo o sexo para os personagens é usado como mais uma faceta de um povo interesseiro que teria construído (?) um país inteiro as custas de muitos golpes e traições.

Não se trata aqui de se fazer uma crítica a uma representação "mal-feita" de nossa história – longe de mim defender nossas tão imprecisas verdades históricas.Trata-se de uma resalva crítica ao modelo de país que Lombardi constrói. As declarações do autor na imprensa refletem a falta de coerência interna da mini-série: num momento anuncia que sua mini-série "terá passagens sérias e históricas e que será muito mais do que piadas", outra se defende das críticas dos historiadores dizendo que só escreve "para divertir o publico"... Como autor de novelas Lombardi deveria saber, e sabe, que divertir não exclui a passagem de informações, de idéias e de verdades – a comédia, mesmo em tom de farsa, é sim uma fonte de idéias daquilo de que fala. Portanto, sejam quais forem os parâmetros de História utilizados por Lombardi, seu discurso será obviamente mais complexo do que a pura diversão.

Dizer, também, que a representação de um país formado por homens vagabundos e degredados é apenas um retrato de nossa formação, é se apoiar de forma acovardada na muleta estratégica de consultores como o historiador Eduardo Bueno. Comparar O Quinto a uma pornochanchada soft é não respeitar (e desconhecer) o nível de auto-ironia e crítica que esses filmes traziam ao cinema erótico brasileiro. O Quinto não consegue, por exemplo, ter um décimo da autoconsciência que Casa dos Artistas carrega. O cinismo da exploração visual que extrapola o nível da hipocrisia não é alcançado com ênfase pelo Quinto global.

Não é de hoje que a Rede Globo vive esse dilema entre seus programas "de qualidade" e o avanço da audiência de outros canais "menos nobres". Esses padrões de "qualidade" viciosos, é que fazem dos programas populares globais, esses escravos desconjuntados de uma hipocrisia cega. Em O Quinto, por exemplo, diálogos sérios e embasados historicamente são jogados de forma aleatória nos capítulos e fica impossível disfarçar a necessidade artificial de se ver, ainda que em parte, como um programa histórico-educativo de "qualidade".

Se Lombardi pudesse assumir com totalidade o seu circo já armado, talvez O Quinto trouxesse de fato alguma novidade para as representações da história do Brasil na televisão. A mini-série não consegue alcançar com firmeza o patamar de carnaval, de festa que algumas de suas cenas estabelecem. Fica sendo esse filhote de nada com coisa nenhuma, dependente de piadas fáceis que caibam em suas seqüências como pequenas esquetes desarticuladas. Costuradas às referências diretamente históricas, as cenas farsescas de Lombardi criam uma narrativa totalmente desconjuntada, imprecisa e precária.

As citações de linhagem pop são usadas seguindo as piores lições do cinemão pós-moderno (Moulin Rouge): servem apenas como atrativos sem propósitos. Brincamos de encontrar referências a filmes como se procura o Wally nos livros: não há nada ali além da descoberta. A apresentação de Dom Pedro I imitando a cena (até a decupagem) do personagem Wolverine do filme X-Men é totalmente inócua, tendo como efeito sua mera banalidade. Doença pós-moderna, esse tipo de construção referencial é uma praga sem rumo, cuja única representatividade é entulhar os olhos do espectador de informações que o convidem a participar de um jogo audiovisual rumo à indiferença. Se isso é feito com habilidade, e daí? Não pode haver mérito nesse exercício masturbatório de referências.

Seguindo a linha referencial pop, a trilha sonora da trama consegue ser um dos únicos méritos completos da mini-série. Ao colocar clássicos de Frank Sinatra, e outros, para compor a sonoridade de seus personagens, O Quinto consegue, aqui sim, uma significação além da pura referência. O tom de ridículo que os temas musicais tomam em certas cenas, serve, sim, de interessante recurso para um comentário narrativo sobre o que está sendo visto.

Por vezes, fica a impressão de que uma bela cena de farsa irônica imaginada por Lombardi, foi totalmente desperdiçada pela direção de Wolf Maya. Enredar o ridículo machão de Humberto Martins com temas que lembram heróis de faroeste, seria sim uma referência inteligente. Isso, é claro, se a direção do programa soubesse também assumir o mesmo tom de espetacularização exacerbada. Nessas horas é que se percebe os limites impostos pelos padrões Globais e as limitações de Wolf Maya como diretor: até agora mais preocupado em colocar os seios de Danielle Winnits à mostra do que em construir uma identidade visual para o programa. A não ser, é claro, que alguém considere cortes rápidos, sinônimo de identidade visual.

Nossos velhos estereótipos de "país de vagabundos" poderiam sim merecer uma releitura menos amargurada e descrente. Mas Lombardi está acorrentado demais nos fatos históricos de plantão. O Brasil não saiu ainda de O Quinto dos Infernos fortalecido por uma possível mitologia da auto-ironia. Nem sequer é relido pelo olhar dos degredados ou redescoberto na valorização de nossos coadjuvantes. Não. As duas primeiras semanas de O Quinto se resumiram a uma vaga piada recalcada. Seu retrato de país é uma recriação pop de nosso velho pesadelo ridículo: a incapacidade de ser mais do que apenas um bando de malandros otários. Ao transformar esse pesadelo em Festa, Lombardi não estabelece um espaço de criação farsesca autocrítica e positivamente criativa – se limita a brincar com nossas vergonhas como quem ri de si mesmo e abaixa a cabeça para seus próprios complexos.

Se ao menos nos orgulhássemos de ser mesmo o Quinto dos Infernos, se fôssemos capazes de nos querer como esses vagabundos e constituir nosso rumo e gestos como tais. Mas não, O Quinto dos Infernos acaba sendo apenas mais um exercício de ridicularização do fracasso e do atraso brasileiros – rimos de nós mesmos como se ríssemos de outros... Afastados de nós mesmos, nos diminuímos. O resultado é uma colagem mal feita de boa comédia pastelão, com refugos de programa educativo, dirigido, de forma medíocre e desinteressada, por uma elite resmungona e derrotada por suas próprias pretensões.

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Resta a metade dos 47 capítulos previstos para O Quinto dos Infernos. Corre o boato de que pode haver uma prorrogação até 80 capítulos. Ainda há tempo para Lombardi acertar os rumos de sua nau. Assumindo de uma vez seu olhar de bufão, Carlos Lombardi poderia trazer para a TV Globo um olhar menos rançoso sobre a história brasileira e sua memória visual. Lombardi está a poucos passos de uma grande reinvenção, mas desperdiça seu trabalho ao aceitar a ditadura bem comportada da história oficial (típica dos elefantes brancos de Sérgio Rezende). Um circo armado e todo paramentado, mas onde os palhaços teimam, volta e meia, em se travestir de pesadas figuras históricas e fingir que são sérios, e tentar nos convencer de que têm "qualidade".

Felipe Bragança