Cartas dos Leitores


- Polêmica a respeito de O Poder Vai Dançar

Prezados amigos contracampistas:

Atentando para o fato ( nem sempre óbvio) de que vossa revista chama-se "Contracampo", ou seja, que o objetivo inicial desta publicação, se bem me lembro, era o de veicular análises críticas da arte cinematográfica em tudo diferentes da prática corriqueira do que se convencionou chamar "jornalismo cultural", venho uma vez mais protestar contra a subserviência da revista ao senso comum da mídia hodierna. Refiro-me específicamente às três ( ! ) críticas de "Cradle Will Rock", suficientes para irritar o leitor isento, que se aborrece mortalmente com o progressivo caminhar dos nossos críticos, jovens ou velhos, em direção a um assustador pensamento único.

As três ( ! ) críticas do filme em questão são absolutamente iguais entre si e absolutamente iguais a tudo que se disse na grande imprensa carioca, diferindo minimamente apenas no que concerne a "forma" do filme. Ou seja, todos acharam o filme "empolgante", "sincero", "um vigoroso painel de uma época", e outras bobagens fáceis de dizer. O que o filme é na realidade ( e aí eu não posso me furtar de assumir aquilo que deveria ser o dever da "Contracampo", que pretensão, meu Deus! ): um espelho auto-lisonjeiro da esquerda americana, uma falsificação do passado para o enaltecimento de um presente igualmente falso.

"Cradle Will Rock" pode ser resumido assim: um dramaturgo judeu e homossexual de tendências comunistas é constantemente assombrado pelo fantasma de Bertolt Brecht, do qual é uma cópia piorada. Tenta encenar o seu patético musical político com dinheiro público, até as autoridades perceberem que estavam, há muito tempo, financiando propaganda anti-americana, que assolava inclusive peças infantis ( e quem é brasileiro e tem mais de vinte e cinco anos e foi obrigado a engolir "Os Saltimbancos", não tem o direito de ignorar esta prática perversa). Por outro lado, os malignos capitalistas-aristocratas-fascistas ( que na cabeça esquerdista formam um único bloco unido contra as massas revolucionárias ), depois de se arrependerem de gastar U$21.000,00 num mural cafona e de orientação estética stalinista, resolvem apoiar Matisse para não terem mais este tipo de problema. Ou seja, Matisse é o produto de uma conspiração de milionários para abafar a verdadeira arte moderna revolucionária. Ridículo!

No meio disso tudo, temos um Orson Welles caricato e supostamente "alienado", um Brecht carrancudo apelando paradoxalmente por mais "humor", pobres artistas decadentes denunciando seus colegas comunistas ( e eram legião, como o próprio filme não faz questão de esconder ) e os olhos belos e expressivos de Emily Watson, responsáveis por boa parte da "emoção" e da "sinceridade" do filme.

Mas a História foi cruel com toda essa resistência anti-fascista propalada pelo filme. Em 1939, quando Hitler e Stalin fizeram seu famoso pacto, toda a orientação política da esquerda americana, inclusive dos sindicatos, foi de apoio a União Soviética e contrária a guerra com o nazi-fascismo. Em 22 de junho de 1941, quando os alemães atacaram os russos, tudo isso mudou. Ou seja, nem sinceros e nem heróicos, apenas bons meninos de recados.

No entanto, no meio da mentira acaba escapando, mesmo como ato falho, alguma verdade. Naquela cena final, que alguns consideram "genial", o poder realmente dança. Dança concretamente, posto que a intelectualidade e a classe artística ocupam o poder de fato, como formadores de opinião, e eram eles que dançavam animadamente na esperança da revolução. E dança metafóricamente, o berço, aquela patética Vanessa Redgrave, deslumbrada e idiotizada por seus queridos proletários.

A mensagem do filme é uma só: como nem o governo conservador e nem os capitalistas diabólicos apóiam a revolução, o jeito é fazer a revolução para que os meios de produção estejam nas mãos da esquerda proletária. Assim teremos centenas de diegos riveras, blitzsteins e tins robbins ditando as regras da arte. Deus nos livre!

Esse filme só poderia sair da cabeça daquela mesma classe de engajadinhos que foram indelicados com Elia Kazan no Oscar, apesar da superioridade artística de Kazan saltar aos olhos de quem sabe ver.

Bola fora da "Contracampo". Convenhamos que fazer coro com o Júri B e com o Bonequinho Viu não é lá muito lisonjeiro. A continuar assim, a revista já pode ir mudando o seu nome para "Monobloco".

Cordialmente,
Jayme Chaves

Jayme,

antes de mais nada, UFA! Um texto e tanto. Bom, talvez Contracampo cumpra seu dever, afinal das contas se faz com que o leitor sinta este nível de necessidade de se confrontar e expressar com o que vê na revista... Esperamos agora o mesmo tamanho num elogio a um texto que você goste!! hehehe, brincadeirinha.

É o seguinte: tua carta pode ser dividida em alguns argumentos. Como editor da seção de críticas, num deles você tem toda razão, tanto assim que na mesma hora que recebi sua carta fui mexer na formatação da revista: jamais aqueles 3 textos deveriam compor um "Filme em Questão", afinal defendem de fato pontos de vista parecidos. Como eles foram escritos após o Festival do Rio de 2000, confesso que a memória me traiu e no afã de colocar os texto no
ar não os revisei em busca deste erro. Erro corrigido, valeu o toque! E é neste tipo de atitude que queremos nos colocar no contracampo da mídia estabelecida.

Quanto ao teor dos textos em si, duas coisas: quanto a "fazer coro" com JB e O Globo, não se pode usar esta expressão de fato, visto que como eu acabei de ressaltar, nossos textos são de 2000, após exibição no Festival. Então, mesmo se as opiniões por acaso convirjam, não se pode falar em "coro" de nossa parte, que publicamos antes.

Mesmo que fosse o caso, não temos como orientação editorial estarmos contra a crítica da grande mídia, até porque seria uma estupidez de nossa parte, inclusive porque isso seria dar importância demais a opinião de outros, em detrimento da nossa. Não nos estamos somente e sempre "contra", porque toda política feita assim é burra e limitada. Tentamos nos diferenciar sim é pela liberdade de expressão (tanto em pautar-se, quanto no tamanho do texto) e pela tentativa de investigação, mas não por nos opormos imediatamente ao que outros publiquem. Assim que, se indo ao filme obtivemos respostas parecidas ou não, isso nos é indiferente. Não podemos é mentir a nós mesmos para estarmos "contra" alguém. Esta proposta seria tão ingênua quanto inconclusa. Além disso, dentro da Contracampo temos o bom hábito de discordarmos uns dos outros inúmeras vezes, o que permite que a revista ganhe sempre em pluralidade. Nossa coerência é medida pela seriedade e pela liberdade, tão somente. Deste filme, há aqueles que não gostam dentro da revista também, que não puderam ou quiseram escrever. Isso porque, aonde nos diferenciamos e muito da mídia estabelecida, é no simples fato de não recebermos salários para escrever. Por isso nem sempre todos podem escrever todos os textos que gostariam. No caso deste filme, em meio à cobertura do Festival, 3 pessoas resolveram pensar sobre ele. Realmente, seria errado colocar o filme "em questão" visto o teor dos textos, mas também não faria o menor sentido numa revista onde todos escrevem por paixão não postar um ou dois dos textos. Quanto ao teor em si do filme, aceito e respeito muito seus argumentos. Mas, afinal de contas, cinema é cinema, e cada um na sua, se possível aprendendo e engrandecendo com a posição do outro. Contracampo não nasceu para formar discípulos nem fiéis e sim para incentivar o confronto de idéias (talvez sua interpretação do título da revista tenha sido um pouco apressada e unívoca). Acho pessoalmente que você não dá atenção a uma série de indícios auto-irônicos do filme em relação ao tal esquerdismo americano (por exemplo na sua análise da cena final), e acima de tudo me agrada nele a entrega, a vontade de dizer algo. Isso não justifica, é fato, que se diga "qualquer coisa", mas num cinema onde cada vez mais diretores parecem filmar burocraticamente e por obrigação contratual ou salarial, me agrada no cinema de Tim Robbins o "sincero" (olha a palavrinha aí) desejo de expressar alguma coisa, a necessidade mesmo.

Finalmente, independente de tudo isso, só não posso concordar com seu metonímico impulso de tomar a coisa pelo todo, e a partir de uma análise de filme que te desagradou acusar a Contracampo disso ou daquilo. Me lembra o espectador que não gosta de um filme nacional e conclui que "o cinema brasileiro não presta". Ora, Jayme, tenho certeza que você encontrará na revista inúmeros textos e análises que aprecie, e que portanto nem a "pretensão" nem o nome da revista estão em jogo. Se você começar a ler alguma revista na qual concorda com absolutamente tudo, cuidado: ou você ou a revista têm algo de muito errado.

Um grande abraço,
Eduardo Valente

Apenas complementando a resposta do nosso editor Valente,
Jayme,

Eu diria ainda que não concordo com a sua visão das teses de mundo do filme. E ainda reclamo de uma coisa principal, puxando a sardinha pra cá: os textos disponíveis não são iguais. Especificamente no texto que escrevi, notei que o filme me agradara em vários aspectos – como espetáculo, foi isso que me pareceu que ele se propunha a ser – mas que tem tremendos problemas narrativos, dramatúrgicos mesmo.

Mas aí vem uma dúvida, Jayme: seu problema é com o filme ou com a "esquerda" americana? Porque aí talvez nossa expectativa tenha sido diferente – a mim não parece tão crucial a auto-crítica extrema da "esquerda" de lá, a ponto de me incomodar a "auto-indulgência" de um filme espetacular (no estilo, não na qualidade). Exemplificando, meu problema com a história de Rockefeller e Rivera não é ideológico, é narrativo mesmo – aquilo não está bem estruturado dramaticamente, não se cola ao resto do filme, coisa que eu mencionei no meu texto. Mas não é por isso que eu vou ficar fulo da vida com a "esquerda" americana. "Esquerda"? "Mensagem do filme"? "Classe de engajadinhos"? Acho que não estamos falando de cinema, Jayme, desconfio até que não seja o mesmo filme – não para cada um de nós. Fazer o jogo stalinista? De que "esquerda" você está falando? À "esquerda" de quem? Isso é saco de gatos, e uma sociedade é composta por indivíduos. Diferentes entre si. O Grande Ditador, Jayme...

Com relação a qualquer "tese de mundo" do filme, o que me pareceu foi o seguinte, o realizador não acredita em revolução (o plano final indica isso, ele não me pareceu um ato falho, mas antes uma auto-crítica), mas manifesta imenso carinho pelos que acreditaram, ainda que os veja como ingênuos. Tenho problemas com algumas posturas dele, mas criar um debate ideológico a partir daí me parece ingênuo, mais até que o discurso do filme ou mesmo o de seus personagens. Essa discussão 'esquerda auto-indulgente' me parece tão velha... pense bem, o que acharia você se, assistindo ao próximo filme blockbuster eu escrever algo sobre alienação e mensagens ideológicas subliminares? Será divertidíssimo....

(eu hoje escreveria coisas diferentes, até por ter descoberto coisas que eu não sabia sobre o filme - por exemplo, que a história da peça do Welles já tinha sido dramatizada anteriormente, com ele e Houseman ainda vivos).

Ainda sobre os problema dramáticos do filme, percebi um problema em dar uma painel além da conta. Aí, realmente, os recortes evidenciam limitações estéticas e complicações éticas. Mas ele se assume mitificador, em suma, se assume como espetáculo – daí vejo a necessidade de julgá-lo, mas não entendo esse compromisso imposto de ‘revisionismo histórico’. A maior crítica ao filme ainda assim seria um elogio, o de que é um bom passatempo. Auto-indulgente? Ingênuo eu acho mais adequado. (Aliás, eu comentei isso no texto que lhe pareceu igual aos outros). Mas ingenuidade é perfeitamente desculpável quando sincera.

Finalizando, não entendi por que citar Kazan, nem por que generalizar. Ademais, gostar dos filmes dele não precisa ser sinônimo de admirá-lo como pessoa, a não ser pra quem não sabe dissociar pessoas de suas obras. Não querer aplaudir Kazan não significa negar qualidade e força aos filmes dele. Filme é filme, autor é autor. E aplaudir Kazan não é apenas aplaudir um grande artista, é aplaudir um símbolo – isso eu não vejo por quê negar. Tanto as atitudes de aplaudir quanto a de pôr a mão nos bolsos me parecem naturais e justificáveis – tem certeza de que não são?

Mas, olha, "classe de engajadinhos" ou é uma esbravejada ou é miopia.

Um abraço,
Daniel Caetano