Todos a Bordo

Get On The Bus, de Spike Lee (EUA, 1996)

Projeto que dá seguimento à adaptação de Richard Price Clockers, Get on the Bus marca mais um retorno de Spike Lee à estrutura independente de produção sob a qual foram realizados seus primeiros filmes. Lee, um dos pilares do moderno cinema independente americano, dono de uma vasta obra dividida entre realizações para a TV, publicidade e cinema, vem alternando ao longo de sua carreira trabalhos para os grandes estúdios e projetos de escopo menos ambicioso como este, nunca abrindo mão da liberdade para imprimir sua visão única e seu talento para provocar polêmica.

Get on the Bus foi trazido à luz com o apoio de 15 celebridades afro-americanas, incluindo astros do cinema como Will Smith, Denzel Washington e Danny Glover, que constituiram uma sociedade para financiar integralmente o projeto, orçado em pouco mais de dois milhões de dólares. Dado o fracasso nas bilheterias americanas, fica fácil entender as razões da sua ausência nos cinemas brasileiros. Realizado em Super16 e video digital, o filme conta a história de um grupo de homens negros que fretam um ônibus para levá-los de Los Angeles à capital Washington com o intuito de participarem da Million Man March, manifestação organizada em outubro de 95 pelo líder da Nação do Islã, Louis Farrakhan. Na maioria desconhecidos entre si, os homens atravessam uma série de problemas ao longo da jornada, especialmente conflitos desenvolvidos internamente.

A premissa é ideal como ponto de partida para uma reflexão sobre a diversidade de valores que informam os negros da sociedade norte-americana: assim, estão expostas as peculiaridades de cada posição cultural, religiosa, social, econômica. Os integrantes do ônibus correspondem a ordens diversas, em igual peso: entre outros, temos um representante dos guetos de L.A., ex-criminoso que viaja, por determinação judicial, em companhia de seu filho rebelde e delinquente; um casal gay de classe média; um policial; um estudante de cinema; um adepto da Nação do Islã; e um senhor, estudioso da história negra, que age na posição de consciência coletiva.

À parte alguns esquematismos da exposição, deliberadamente didática, Lee, um polemista por natureza, encontra um tom bastante apropriado para lidar com a imensa variedade de aspectos e problemas apresentados por um roteiro que busca, a todo custo, traçar um painel tão amplo. Sua direção se sustenta sobretudo na exploração do notável elenco, formado por nomes regulares em seus filmes (o grande Ossie Davis, mais Thomas Jefferson Byrd e Charles S. Dutton) e mais alguns jovens atores (destaque para De'Aundre Bonds como o jovem rebelde). Como em toda obra sua, há um punhado de experimentação visual, colocada aqui prioritariamente a serviço de uma distinção entre o espaço interno do ônibus (palco da colocação dos problemas de convivência do grupo) e seus exteriores.

Há, apesar da amplitude de problemas colocados, um discurso bem construído amarrando tudo, ainda que alguns temas sejam apenas tocados de raspão. O Million Man March de Farrakhan, por exemplo, não é problematizado senão ligeiramente, eliminando questionamentos mais complicados com um simples golpe de roteiro (o abandono do ônibus pelo motorista branco ofendido pelas colocações anti-semitas do ideólogo da Marcha) e afirmando o movimento como um mero pretexto para discussões sobre noções possíveis de grupo e comunidade negra -- uma afirmação que deixa escapar outras implicações sociais e políticas. Os resultados alcançados, embora limitados, ajudam a esclarecer uma idéia de utopia social sempre presente na obra de Lee: Get on the Bus é seu filme mais positivo, mais esperançoso neste sentido. Mesmo que aparentemente o objetivo do grupo não tenha sido alcançado no fim, ou que o filme termine com uma nota mais triste por conta da morte do passageiro mais querido, trata-se de duas perdas necessárias para que aflore um ideal de comunidade: um grupo onde o lugar de cada indivíduo é assegurado pelo respeito ao outro e onde o necessário embate de idéias não seja ameaçado pelo preconceito mais primário ou pelo paternalismo mais refinado.

Fernando Verissimo