Eles vivem, de John Carpenter

They Live, EUA, 1988

As
primeiras cenas de Eles Vivem não nos são estranhas:
grandes prédios, anúncios publicitários, outdoors,
constante movimento de massas, miséria e marginalidade. Enfim,
todos os signos que caracterizam e preenchem qualquer cidade grande se
fazem presentes. Mas o senso narrativo da direção de John
Carpenter obviamente pedirá algo mais destas imagens, e não
precisamos de muito tempo para termos sua sobriedade cênica revelada
neste início de filme: não apenas um universo é estabelecido
(uma metrópole), mas também o papel assumido pelo personagem
principal dentro deste universo (um andarilho em busca de emprego) e a
natureza deste personagem (um trabalhador braçal em busca de qualquer
oportunidade de trabalho nas cidades por onde passa).
Trata-se
de um filme de John Carpenter e deste fato poucas dúvidas restarão.
Vários elementos característicos de sua obra poderão
ser encontrados e se tornarão reconhecíveis rapidamente
e sem muitos pormenores: os outsiders, uma cidade abrigando uma
enorme quantidade de excluídos, um sentimento inconformista que
dará a impressão de estar prestes a explodir em algo que
não sabemos bem o que é, as inquirições tão
próprias que seu cinema realiza sobre sociedade, o papel do indivíduo
nesta e como ambos se relacionam etc.
Vemos
que está tudo aqui, é uma obra autoral, retornamos aos velhos
temas e ao modelo da "direção invisível" que caracteriza
o diretor...; enfim, mais um trabalho que expande o "corpo de trabalho"
deste cineasta. Todavia parece mais interessante no caso de Eles Vivem
perguntar sob quais condições o filme amplia a obra
de Carpenter do que simplesmente perceber e apontar a existência
de uma função carpenteriana.
Ao
analisarmos a porção inicial da carreira de Carpenter, diversas
vezes esbarramos em momentos onde sua encenação transforma
a própria representação cinematográfica em
objeto de problematização. Tomemos, por exemplo, o clássico
plano inicial de Halloween: como bem aponta a crítica de
Fernando Verissimo, "... um plano-sequência no qual, sob o ponto
de vista do assassino, somos compelidos a testemunhar/executar um assassinato".
Tal utilização deste tipo de recurso se repetirá
em pelo menos dois outros filmes deste período, A Bruma Assassina
e Christine - O Carro Assassino. Mas obviamente não
é apenas por meio do domínio técnico que o cineasta
levanta seus questionamentos referentes a este mecanismo de identificação
tão natural ao cinema: a temática da possessão, dividida
por O Enigma de Outro Mundo e Starman - O Homem das Estrelas,
abre espaço para indagações das mais diversas relacionadas
às interpretações que ambos os filmes possibilitam.
E
é assim que adentramos um terreno inesgotável, uma vez que
Eles Vivem é facilmente identificável como uma das
obras mais vastas do diretor entre as que abordam diretamente a imagem.
Não é nenhuma coincidência este ser um dos mais politizados
trabalhos de Carpenter, pois ao passo que trabalha com temas e sub-temas
de natureza político-econômica (a quase todo momento nos
deparamos com comentários dos mais pertinentes, quando não
hilariantes, acerca dos efeitos da Era Reagan na sociedade americana),
é a própria função política da imagem
que será dissecada pela sua direção.
Retornemos,
pois, ao início... Retornemos aos outdoors, aos anúncios
publicitários... Retornemos à entrada em cena do andarilho/proletário
(creditado apenas como "Nada"), à sua chegada naquela que imediatamente
reconhecemos como metrópole. A princípio aceitamos a imagem
por aquilo que ela aparenta ser mas necessariamente desconfiamos de algo,
pois o protagonista divide conosco - como a câmera no já
referido prólogo de Halloween - a função de
espectador, uma vez que, como nós, é um recém-chegado
a este universo. E é desta forma que com ele estranhamos o descontrole
patente daqueles que freqüentam a igreja próxima do abrigo
comunitário onde passa suas noites; estranhamos mensagens subliminares
em televisões; estranhamos o fato de testemunharmos constantemente
a situação miserável de grande parcela da população
e, no entanto, sermos rodeados pelo reflexo de um sucesso e um exagero
consumista que não se fazem presentes no espaço decadente
com o qual nos deparamos. O controle que Carpenter exibe sobre este material
é nada menos que assustador: à medida que Nada passa a desconfiar
daquilo que o cerca, que percebe algo de muito estranho ocorrendo ao seu
redor, somos tirados da cômoda posição que ocupamos
de espectadores e assumimos, tal qual o protagonista, o papel de investigadores.
Menos
estranho não é o momento em que, junto com Nada, colocamos
óculos escuros e descobrimos tudo aquilo que anúncios de
revistas, campanhas publicitárias e programas televisivos ocultam:
uma overdose de mensagens de conteúdos dos mais ditatoriais e autoritários
("submeta-se", "continue dormindo", "consuma", "não pense", "assista
T.V." e, talvez o mais genial de todos, "este é seu Deus" ao mostrar
um punhado de dólares nas mãos de um vendedor). Mas maior
será nossa surpresa quando temos revelado aquele que é,
com certeza, o mais inusitado contorno que Carpenter imprime ao seu roteiro
(assinado com o pseudônimo "Frank Armitage"): a existência
de alienígenas que, sob a falsa aparência de seres humanos,
estão a concretizar uma invasão de natureza social e econômica
que se dá por meio do controle daqueles humanos que almejam o sucesso
exibido nos anúncios publicitários (de autoria, não
por acaso, dos tais alienígenas).
Nos
deparamos com a quase completa desconstrução de um mundo
que aos nossos olhos se fez real durante toda a primeira metade do filme,
justamente aquela em que Carpenter trata de uma importante vertente de
sua obra e propriamente aquela que se faz necessária no início:
o embate presente na relação entre indivíduo e sociedade.
A descoberta de uma diferente realidade determina uma nova possibilidade
de mundo para Nada e de imagem para nós (através da utilização
dos óculos escuros no caso de Nada e no nosso caso por meio da
apreciação e reflexão da imagem cinematográfica),
e será a partir deste novo cenário que Nada traçará
novos rumos referentes ao papel que ocupa como indivíduo (primeiramente
quando se dá a liberdade de eliminar os alienígenas, posteriormente
ao se juntar a um grupo de resistência humana) e que nós
passaremos a pôr em xeque os diversos desdobramentos que a interpretação
de uma imagem - qualquer uma - estabelece.
Seria
errada e falsa qualquer tentativa de transformar Carpenter em herói.
Se por um lado ele se importa com seus personagens, tenta compreendê-los
dentro dos limites de cada um (o colega de Nada que possui uma família,
o padre que sai a pregar pelas ruas clamando a revolta e a indignação
das camadas mais baixas da sociedade), por outro ele não tomará
a posição de piedoso observador, não passará
as mãos nas cabecinhas de seus marginais e não manterá
nenhum de seus personagens nas posições de recalcados, miseráveis
ou fracassados. Carpenter pede de seu protagonista tanto quanto do espectador
uma atitude, e se esta se institui pela anarquia de mandar tudo às
favas e partir para a guerra como Nada, ou pela participação
do espectador na pesquisa empreendida por seu cinema a respeito das acepções
que a imagem adquire, pouco importa: um posicionamento precisará
ser adotado.
É
com Eles Vivem que Carpenter passa a integrar o panteão
destes raros artistas (pensemos em Godard, Welles, Lang, Eastwood, De
Palma, Kiarostami, Argento e Resnais) que, partindo do movimento da imagem,
transformam a própria no ponto convergente de suas investigações,
e mesmo que nos direcionamentos e propósitos as pesquisas destes
senhores tomem os rumos mais ecléticos imagináveis o que
se torna importante é o fato de termos um cinema que ponha em dúvida
os méritos de suas próprias leis e estatutos... e que, por
tais razões, talvez seja o maior de todos os cinemas: aquele que
evoca o pensamento a seu respeito.
Bruno
Andrade
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