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Após os atentados terroristas de 11/9 e todos os acontecimentos subseqüentes, houve uma série de vozes se levantando, tentando dar conta de quais seriam as modificações no pensamento, e talvez principalmente, no sentimento norte-americano em relação a seu papel no mundo a partir dali. Existe uma linha bastante ingênua de raciocínio que comemorou o fato como se aquilo fosse ficar marcado indelevelmente no imaginário americano como uma vergonha inesquecível, como uma derrota. E, havia os ainda mais ingênuos, que acreditavam que assim os americanos "aprenderiam" alguma coisa, e olhariam para o resto do mundo com mais atenção e respeito. Esta noção de "ensinar" algo a alguém, ainda mais ao custo de 3000 mortos, não encontra em mim qualquer eco. Os americanos não precisam tanto serem "ensinados" algo, pelo menos não mais do que os "brasileiros" ou os "muçulmanos". A posição anti-americana de uma suposta "esquerda" é, no fundo, a mesma que valida os ultra-direitistas de lá. Afinal, se achamos que vale usar as mesmas generalizações contra a "América" que eles usam contra o resto do mundo, e se achamos que os mesmos meios que eles usam são válidos em nossas mãos, estamos legitimando seus métodos. Portanto, esta contraposição aos donos do poder está apenas nisso, numa inveja do fato de que eles detêm o poder, e nós não. Pois, quanto aos métodos (ação violenta e repressora sem distinção entre civis e militares) e quanto aos pressupostos (generalizações grosseiras que ajudam a nos reconhecermos em oposição a um inimigo sem rosto), são exatamente os mesmos de que acusam os americanos. Mas, o pior desta ingenuidade toda está em achar que essas ações geram reações positivas. Quem pode em sã consciência dizer que hoje os EUA estão melhores do que em 11/9? É verdade, eles estão vivendo com um certo medo e excesso de segurança, isso foi atingido. Mas na sua postura perante o mundo, só houve pioras. Podemos falar dos direitos civis perdidos pelos estrangeiros, podemos falar do bombardeio ao Afeganistão que certamente ultrapassou de longe o número de mortos no World Trade Center, podemos falar do incentivo ao estereótipo e a xenofobia na opinião pública, e podemos falar sobretudo da perda de espaço para os ideólogos, pensadores e artistas americanos voltados a um pensamento mais ligado aos valores sociais e humanos mundiais, dentro do seu pai´s. Ah, sim: e o Pentágono conseguiu aprovar o maior orçamento militar desde o Vietnã. Parabéns, temos realmente um mundo melhor! *** Mas, a pergunta é: porque essas reflexões a esta altura, nesta revista?? Bom, vamos ao cinema então, como é nosso hábito. Na quinta, dia 7/2, me dirigi ao decadente mais ainda assim adorável cinema Largo do Machado, onde na sala 2 restava a última oportunidade para eu ver Atrás das Linhas Inimigas. É claro que eu já possuía uma boa idéia do que ia assistir, tendo visto trailers e lido algumas coisas sobre a história e posições do filme. Mas, exatamente por tudo descrito acima, me interessa muito entender este retrato audiovisual que a América faz de si mesma, que representa a maior "propaganda" dos tempos modernos, muito mais do que Goebbels jamais imaginou fazer ou atingir. Sentei-me no cinema, com lotação bem meia-boca, preparado para altas reflexões. Quase na hora do filme começar, chega um cara para sentar duas cadeiras à minha esquerda, que na penumbra do cinema eu não consigo delinear. Ele vira-se para uma pessoa na fila de trás e pergunta: "Qual filme está passando nessa sala? E o do Gene Hackman, não-sei-quê, aquele da guerra?" Resposta positiva, ele senta. Me preparo para uma longa sessão ao lado de um daqueles maluquinhos típicos que freqüentam estes cinemas (como, por exemplo, eu, mas que sou do tipo silencioso), ainda mais quando ao sentar ele dá uma forte tossida. "Xiiii...", eu penso. Bom, começam os créditos. Um barulho perturba minha atenção. À minha direita (também duas cadeiras para lá), estava um outro cara sozinho, classe média carioca típico, que conversava alto no celular antes do filme, mandando uma cantada legal na mulher dele, ou algo assim. Normal. Mas, ele está com um chaveiro na mão, que fica balançando e tilintando, em nível bem razoável de barulho. Observo um pouco, ele não pára. Como minha concentração é curta, tomo a liberdade de cutucar o braço dele e pedir, com calma (que afinal, os tempos são estranhos): "Você podia não fazer este barulho com o chaveiro?" Ele olha bem fundo nos meus olhos, como se não me entendesse pela música alta dos créditos: "Hein?" Pois então, eu repito: "O barulho, você podia parar? Está me incomodando." Em tom ameaçador, ele retruca: "Eu acho que você não tem o direito de me pedir isso. Tá cheio de lugar no cinema, é só trocar." Já passei da idade de achar que aqui o diálogo continuaria. A comunicação está claramente encerrada. Não mudo de lugar (gosto daquele lugar, oras), e ele faz ainda mais barulho, claramente feliz com a atenção recebida. Me preparo para uma looooonga sessão. De repente, o cara da minha esquerda se levanta, passa na minha frente, e se debruça sobre o outro. Eu ouço a conversa: "Você poderia parar com o barulho, é bastante incômodo." O outro retruca com o mesmo argumento usado comigo. "Você não vai parar?" pergunta o suposto maluquinho. E se planta de pé na frente do cara. Para minha surpresa, de frente para tela, como se fosse ver o filme dali. "Vai dar merda..." eu penso. Após breve hesitação, ele retorna para meu lado esquerdo, senta. O cara continua o barulho. Nem 10 segundos depois, o já a estas alturas meu maluquinho favorito levanta-se de novo, pára na frente do cara de novo, e diz: "Não vai parar mesmo?" Já imaginando que tudo ia degringolar num embate físico bizarro, eu me surpreendo com a genialidade do movimento seguinte do louquinho: ele simplesmente se senta na cadeira do lado do cara. E fica ali, como se fosse ver o filme com ele, bracinhos encostado no braço da cadeira, respirando no pescoço dele. Completamente desconcertado por aquele movimento, o cara se levanta meio assustado, e se dirige para o fundo do cinema. O maluquinho fica agora à minha direita, eu ali rindo por dentro como poucas vezes, e podemos ver o filme. Lá atrás, como negação da derrota clara, o cara ainda balança o chaveiro de vez em quando, mas está longe demais para atrapalhar. Os "incomodantes" se mudaram, pelo menos desta vez. *** Pobre leitor, a estas alturas está realmente perdido. "O louco começa com uma filosofia de botequim sobre atentados terroristas, depois conta causos do cinema que só interessam a ele... que merda!" Calma, calma. A forma como tudo se liga surpreendeu até a mim. Pois bem, passa o filme, cujo conteúdo já está bem descrito pelo Filipe Furtado na seção de críticas. Mas é preciso reforçar o engulho que se sente especialmente na sequência final, a capacidade desrespeitosa deste cinema patriótico americano, a noção vendida de que uma vida americana vale 100 estrangeiras (seja de onde forem). E, acima de tudo, a mistura de estética e ideologia que faz o exército parecer algo tão lindo, tão heróico, tão cool, o sonho de toda criança só pode ser fazer isso, matar essas pessoas pelo bem da América, para que possamos "bring home our boys". Mas nem mesmo eu estava preparado para o cinismo da sequência em que o soldado americano descobre o único bósnio gente boa é um que veste camisa do Ice Cube, canta rap e oferece uma Coca Cola geladinha para acabar com o sofrimento do americano. Ou seja: mesmo nos confins do inferno (qualquer lugar que não os EUA), a cultura americana está conquistando espaço, fazendo as pessoas melhores. Nossa! Termina o filme, e eu ainda tonto, ao sair iria cruzar com o nosso maluquinho favorito. Não resisto a um comentário: "Caramba (tá bom, talvez a palavra tenha sido mais forte, mas liberdade criativa...), que cara chato aquele hein... Muita falta de respeito!" Olho para o cara, e me surpreendo com uma cara claramente estrangeira, que na penumbra não reconheci. O que eu tinha entendido como dificuldade de expressão no escuro, se revela um sotaque carregado: "É muita falta de educação, não dá para agüentar não, merda!" E dá um sorriso cúmplice, gentil. Tendo morado por um ano e meio nos EUA, eu reconheço logo que o tipo (até pelas roupas) é de um americano. Me despeço, e vou saindo. Confesso que vem uma curiosidade grande de perguntar o que ele achou do filme, se não acha um absurdo completo aquela venda de ideologia desumana em nome da "bondade", etc. Mas acabo desistindo, tentando digerir aquilo tudo. Como disse, morei um ano nos EUA. Conheço bem aquele país, tendo passado um ano inteiro numa cidade do interior de Illinois, com 10000 habitantes, no chamado (por eles mesmos) Coração da América. Também passei temporada longa em Nova York, e numa universidade das chamadas "artes liberais", onde o que se vê é o maior convívio de etnias e origens geográficas que eu já vi. Portanto, eu estou longe de cair no golpe do estereótipo americano. Eu já vi de perto a generosidade, a capacidade de conviver com o diferente, a curiosidade, a tolerância americanas. Já tive (e tenho) inúmeros amigos entre os mais inteligentes e esclarecidos que conheci. Talvez por isso todo o discurso anti-EUA não me pega. Contra o governo, contra as multinacionais, OK. Contra o povo americano como se fosse uma massa una, estúpida e violenta, não. Ali naquele cara no cinema estava a metáfora viva do que são os EUA para mim. O interesse pelo outro está implícito no fato dele viver aqui, falar português (o sotaque deixava claro não ser um turista, mas alguém já há alguns anos no Brasil). Mas, criado com uma noção quase doentia de respeito ao direito do outro, de atenção às regras de convivência, e de intolerância com o que vai contra ele, ele não poderia simplesmente sentar e ver como aquele cara continuava a fazer o barulho mesmo tendo sido pedido por duas pessoas que parasse. Para ele, havia "justiça" a ser feita. No entanto, ao invés da violência, ele usou a inteligência, virando as armas do próprio contra ele. "Ah, você acha que quem está incomodado tem que mudar, né? Pois bem, vou sentar aqui do seu lado e te incomodar. Se quiser, mude." Mais uma vitória americana. Pois é este mesmo desejo doentio de melhoria e justiça, que às vezes nos faz falta aliás, que pode ser usado e moldado por um imaginário como o daquele filme (e de tantos outros filmes, e revistas, e professores, etc) e se transformar num megalomaníaco senso de correção e defensor do mundo, de acordo com seu olhar. De impor a SUA justiça aos outros. De não ver que as fronteiras entre certo e errado não são claras como nos filmes de Hollywood. Mas isso não apaga o potencial de cada um deles de ser uma pessoa tão "boa" quanto qualquer outra. O mesmo pensamento de que os americanos são um lixo é o que nutre frases como "o Brasil é lindo, o que atrapalha são os brasileiros". Desvia o foco do que realmente importa: que educação e formação de olhar e caráter não são fenômenos naturais apenas, e que neles é que está o problema. Uma pessoa só pode ser aquilo que aprende em volta dela. Ensine-a ódio, violência e intolerância, e ele aprenderá sem medo. Os ataques terroristas, pelo que pôde se ver em Atrás das linhas inimigas, vão garantir mais algumas gerações dos mesmos americanos dominantes, auto-centrados. Assim como cada ação americana garante mais alguns atos terroristas e ódio indiscriminado. O círculo é tão óbvio quanto aparentemente infinito. Ele não se encerra com grandes ações, como não é assim que ele começa. É com algumas pessoas, alguns atos, alguns professores, e por quê não, alguns filmes, alguns textos. Mãos à obra que o trabalho é grande. Eduardo Valente
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