A Bruma Assassina, de John Carpenter

The Fog, EUA, 1980


Antonio Bay, uma cidade construída na infâmia; 100 anos depois, os maltratados voltam para receber tudo que lhes é devido. Eis um tema tipicamente caro a John Carpenter: uma sociedade bonita, orgulhosa e bem-ordenada, criada a partir de um pacto sinistro e injusto, é ameaçada quando o grupo de excluídos - leprosos há 100 anos tornados fantasmas às vésperas dos festejos de centenário - retorna a Antonio Bay para devolver aos herdeiros da cidade um pouco do mal que lhes foi inflingido e reclamar o ouro com o qual toda a cidade foi erigida. Um relato perfeito para Carpenter destilar sua desconfiança diante da auto-arrogada perfeição dos Estados Unidos, assim como mostrar em que condições um "acordo de cavalheiros" é possível: sempre discutindo para remanejar a mais-valia de outros não-desejados pelo status quo. Daí que A Bruma Assassina é, mais que um filme de terror, a história de um acerto de contas revolucionário - uma revolução dos maltrapilhos - com os senhores hipócritas de outrora.

Curiosamente, é seu único filme em que o "mal" é perspectivado. Não que não haja sempre um tratamento desse "mal" nos filmes de Carpenter: o herói é sempre já um elemento marginal, indesejado pela sociedade ou até preso (caso de Snake Plissken, protagonista dos dois Fuga...). Mas em A Bruma Assassina, trata-se de algo mais profundo. É que o equilíbrio entre o bem e o mal vacila: aquilo que acreditávamos no começo do filme muda radicalmente a partir do momento em que sabemos que o grupo encoberto pela misteriosa bruma foi vítima de uma traição que os condenou à morte covarde pelos fundadores da cidade, e que logo - ao menos em princípio - eles têm alguma motivação moral plausível para a onda de assassinatos que irão cometer.

O filme começa com o tradicional relato em volta do fogo: um velho senhor conta para um grupo de crianças a lenda local, em que uma estranha bruma apareceu na cidade e levou um navio com sua tripulação inteira. Na volta do nevoeiro, voltaria também o barco em busca de vingança. Uma primeira seqüência incrivelmente especular para Carpenter: mostrando o velho relato assustador contado para crianças, à noite, o diretor filosofa sobre sua própria arte, e revela o cinema de terror como uma verdadeira atualização audiovisual do antigo e tradicional conto assustador para povoar o imaginário dos jovens.

Mas o dia amanhece e a cidade é pacata. Antonio Bay é uma cordial cidade de costa, com uma geografia típica – e incrivelmente explorada em sua simplicidade por Carpenter, um verdadeiro herói em localizar seus persongens dentro de ambientes – formada por uma igreja, um farol, a torre de uma rádio... Esses serão os pontos notáveis da cidade e, junto com o palanque do centenário, as localidades decisivas da narrativa do filme.

Os heróis do filme são tão simples quanto a cidade. Adrienne Barbeau é Stevie Wayne, a dona da rádio local, fazendo uma narração sexualmente instigante e mexendo com o imaginário dos homens do local. No entanto, ela é simplesmente uma mãe que luta para criar o filho e sua rádio, pela qual tem um profundo amor. Tom Atkins vive Nick Castle, dono de uma camioneta com a qual dá carona para Elizabeth, interpretada por Jamie Lee Curtis. Se Stevie é a força estática do filme, povoando-o na banda sonora com músicas e narrações ao passo que precisa ficar na rádio – que fornece uma vista panorâmica da cidade e, por conseguinte, da movimentação da bruma – para informar os habitantes da cidade e tentar salvar seu filho, Nick e Elizabeth são a força dinâmica, movimentando a camioneta (sem vidros, uma vez que o carro foi um dos primeiros ataques da bruma pouco depois da meia-noite do dia anterior) para salvar o filho de Stevie e, mais tarde, para dirigir até a igreja local, onde acontecerá o acerto de contas.

O que mais conta em A Bruma Assassina é o clima instaurado. Hábil em evocar o clima dos lugares que filma – como seu mestre Howard Hawks –, Carpenter consegue com poucos motivos dar toda a dimensão da cidade: a praia, a vida cotidiana, a coesão da comunidade. Quando a bruma chega, ela também é carregada de mistério: move-se contra o sentido do vento, e acima de tudo tem um brilho ofuscante, que assusta a todos os personagens e consegue resultados visuais muito bonitos. Sendo um cineasta que filma à moda antiga, não é de se esperar que os amantes do slasher movie – gênero dos assassinatos consecutivos, do qual Sexta-Feira 13 é o exemplo mais famoso – não tenham admirado o filme. Carpenter sublinha antes de tudo a espera, o suspense do que o próprio ato do assassinato em si, freqüentemente acontecido no escuro e sem glamour.

Se há algum filme com o qual A Bruma Assassina dialoga frontalmente, é antes de tudo com Os Pássaros de Hitchcock. O mestre inglês já estava subentendido por uma ponta de Janet Leigh (de Psicose) na história, mas a sintonia está presente antes de tudo na forma como uma força da natureza passa a se movimentar fora de sua situação normal e, exercendo uma espécie de desígnio divino, ceifar a vida de pessoas cheias de si. A comparação, no entanto, serve apenas para medir a distância que separa um e outro. Em Hitchcock, note-se sobretudo a picturalidade de cada cena, a forma como tudo parece já definido mesmo antes da filmagem (processo que o cineasta realmente desconsiderava como quase irrelevante); em Carpenter, ao contrário, existe um vigor quase documental de incorporar a geografia, o clima de cada lugar para contribuir à força do relato. Duas maneiras diferentes de fazer cinema, duas propostas em franca oposição, e dois filmes primorosos. O cinema se nutre de contradições.

Ruy Gardnier