15
Minutos,
de John Herzfeld

15
minutes, EUA, 2001
Antes de mais nada, o filme: impressiona
no 15 Minutos de John Herzfeld a capacidade de unir discurso e
estética numa forma que lembra e ao mesmo tempo o coloca no espetro
oposto do Planeta dos Macacos de Tim Burton. Onde ambos se aproximam
é no "disfarce" do filme de ação, do grande filme
hollywoodiano para perpetrar de fato obras de profundo alcance sociológico,
de observação aguda e pessimista da sociedade americana,
ano 2001 (e é essencial dizer que ambos surgem antes de 11 de setembro).
No caso de Herzfeld é verdade que o comentário é
mais direto, afinal o filme se passa na atualidade, em Nova York, e suas
questões são colocadas sobre assuntos delineados por personagens
de forma clara (bem diferente do filme de Burton, onde está tudo
por trás dos atos, da superfície). No entanto, também
é verdade que o formato clássico do policial tenta "escamotear"
o discurso como a ficção científica fazia no filme
de Burton. Outro ponto de contato está no domínio da linguagem,
segundo a qual ambos os cineastas conseguem colocar seu discurso, mais
do que na boca dos personagens, à flor da pele do espectador. Ou
seja, todo o incômodo de um e de outro não vem de uma reação
racional, a priori, mas de uma sensação profunda
de mal estar criada pelo modo de filmar, de montar, de fazer cinema.
É claro que precisamos parar a análise
conjunta aí, porque precisamos colocá-los em oposição
completa no que se refere ao discurso em si. Porque se o filme de Burton
é um alerta quanto ao caráter belicista do espírito
americano, do potencial de auto-destruição inerente a este,
e um ensaio sobre o animalesco instinto violento e sua oposição
ao conceito da diferença como convivência, o filme de Herzfeld
infere justamente o contrário. Embora a leitura de que se trate
de um filme xenófobo, pelo retrato dos dois personagens estrangeiros
como assassinos insanos, seja de fato rasa. Isso porque ambos não
são nunca apresentados como "maus" em si, mas apenas como personagens
marcados por um fascínio pelo imaginário americano e prontos
a utilizar as brechas de liberdade inerentes a este a seu favor. Se pensados
na ótica posterior a um ataque de terroristas que aprenderam a
pilotar aviões dentro dos EUA e que usaram como "armas" os aviões
das maiores empresas americanas, o filme fica assustadoramente premonitório.
Porém, se não é xenófobo,
o filme claramente advoga a retaliação, a tomada da justiça
pelas próprias mãos, numa cena final sem qualquer meio-tom.
E mais, embora o maior alvo de sua crítica sejam os próprios
EUA, se refere especificamente ao "excesso de liberdades", no discurso
mais francamente conservador, que se coloca contra a mídia, contra
o sistema legal, contra a leitura livre que um estrangeiro pode fazer
do "paraíso das liberdades" que seria a América. Não
mais, John, não mais... O que falta a Herzfeld é justamente
perceber as contradições de seu discurso (o personagem de
Robert DeNiro, por exemplo, se utiliza da mídia, mas é posteriormente
tornado um herói como bom policial, mesmo que use os exatos mesmos
meios dos assassinos; ao mesmo tempo em que o fascínio do público
com a violência que o filme tanto denuncia é o mesmo que
o torna atraente). Há ainda uma gradual perda dos tons de cinza
que o início do filme apresenta, para poder contar com adesão
completa do espectador. Assim que os assassinos que são mostrados
como ingênuos, não-premeditados e emocionais no início
logo se tornam verdadeiros gênios malvados do crime.
Mas, com todas estas mais do que graves oposições
ao filme, o que não se pode perder de vista é a sinceridade
do discurso (sim, sinceridade não é exclusividade da esquerda),
onde o diretor defende com paixão e bom cinema aquilo em que acredita.
Mesmo quem se distancia e vê com clareza o discurso do filme não
consegue evitar de ser completamente tomado pela argumentação
audiovisual vibrante de Herzfeld, que parte de inteligentíssimos
usos da metalinguagem e das imagens em vídeo (é especialmente
fantástico o momento em que um dos assassinos olha para o espectador
e declara "Todo filme deve ter uma tragédia"), e da construção
de sequências de ação brilhantes para atirar todos
os seus argumentos do que "há de errado com a América".
Tanto melhor o cineasta que se coloca tão claramente, que faz com
que inclusive aja espaço para que as vozes se levantem contra ele.
O filme tem momentos de um épico, assumindo sua condição
de "retrato de uma época", quase expressionista na sua explosão
de rancor, de raiva. Tão mais daninhos são os que escondem
idéias tão piores quanto por trás de uma forma "neutra",
de um discurso "inocente". Herzfeld não é desses. Filma
o que pensa, e filma muito bem.
* * *
A edição do DVD no Brasil tem
uma quantidade de materiais extras que explicitam ainda mais o discurso
do filme, e tornam até desnecessária uma faixa de comentários
do diretor (que de fato não há). Começa por dois
chamados documentários, que na verdade são pequenos programas
de entrevistas. Um deles é basicamente formado de depoimentos de
apresentadores de programas sensacionalistas de TV, um dos fenômenos
modernos americanos mais detonados pelo filme. Eles, com seu discurso
de que são o resultado de uma sociedade "livre", de que "o público
tem direito a ver o que quer", de que os valores que eles expõem
são os mais básicos que existem na humanidade desde sempre
e que a literatura ou o teatro de um Shakespeare se baseiam no mesmo processo
catártico parecem dar munição ao ataque de Herzfeld,
com seu "cinismo de resultados". Ou seja, eles são tudo que 15
Minutos não seria: hipócritas, de duas caras, aproveitadores.
E o golpe de gênio é deixar isso claro nas vozes dos próprios.
O outro programa é um no formato de mesa-redonda, a partir de temas
que o filme levanta. Por exemplo: "O crime compensa?" Embora haja pessoas
as mais distintas nesta mesa, o tom para o qual convergem é o mesmo
do filme: as liberdades podem ser importantes, mas precisam de limites
com urgência.
Mais uma vez, assim como no filme, a posição
do diretor fica tão clara que ele mesmo cede de bandeja os argumentos
contrários. Quando falam do que acham ou não ético
mostrar nos seus programas, os apresentadores imediatamente fazem o espectador
pensar: "Porque precisamos de limites nestes programas quanto à
pena de morte se um cineasta pode mostrar com requintes uma cena de justiçamento,
de assassinato consciente pela lei, e ainda nos fazer torcer por ela?"
Ou ainda, quando no debate um dos advogados afirma que o método
usado pelo assassino no filme é altamente não-funcional
na vida real, ou seja, o terror pintado pelo diretor das liberdades excessivas
não tem espelho total na realidade.
Esta quase ingenuidade de se apresentar tanto,
ao ponto do desmascaramento, transparece de forma mais interessante ainda
no extra que mostra as cenas cortadas da versão final do filme.
Este tem sido sempre um dos mais reveladores material que o DVD apresenta,
porque geralmente serve para mostrar que havia material não apenas
escrito, mas filmado e montado, que podia tornar o filme algo completamente
diferente. Este tipo de material torna o filme como é exibido um
material ao mesmo tempo mais questionável (porque vemos outras
possibilidades), e paradoxalmente mais intocável, porque podemos
ver as opções ideológicas mais claramente. No material
do filme, há pelo menos duas cenas primordiais: em ambas toda uma
história prévia do assassino é desvendada, tornando-o
muito mais humano, ou melhor, mais claramente identificável dentro
do perfil do "marginal vindo de infância complexada". Se inseridas,
tornariam o filme bem mais indigesto, jogando no colo do espectador a
decisão se aqueles fatos o tornariam mais ou menos perdoável.
Como foram retiradas do filme, na versão final deste fica o assassino
como um mentiroso malandro, que apenas diz ter sofrido abusos na infância,
mas que parece apenas usar isso a seu favor. Também aparecem outras
cenas que introduzem um personagem que não aparece no filme (e
que quebrava um pouco a redoma do policial), e uma que dá um caráter
quase adorável-pastelão aos vilões, no início
do filme. Ou seja, todos os cortes são para tornar o filme o mais
unívoco possível, sem possibilidade de confusão do
espectador. Faz todo sentido.
Já os ensaios e o trailer possuem
função menos direta de compreensão do filme, mas
são materiais bem cuidados e agradáveis. No todo, uma bela
edição que descortina todo o processo de um filme com o
qual pode não se concordar (e é bom mesmo), mas do qual
não se pode negar o mérito e, acima de tudo, a relevância
do discurso hoje.
Eduardo Valente
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