Meu Compadre Zé Ketti,
de Nélson Pereira dos Santos


Meu Compadre Zé Ketti

Há raros casos em que um filme se realiza antes mesmo de se rodar o primeiro plano, de se escrever a primeira linha de roteiro. Pois bem, a simples idéia de fazer Meu Compadre Zé Ketti já contém em si todas as propriedades para se fazer um grande filme: uma feijoada, uma roda dos mais renomados sambistas amigos, entre Guilherme de Brito, Monarco, Nélson Sargento, Wilson Moreira, Délcio Carvalho, etc., que se reúnem para prestar uma homenagem ao amigo partido cantando seus grandes sambas. Tema excelente, conteúdo notável. Poderíamos perguntar: como se conseguiria fazer um mau filme?

É aí que entra a questão: nem mesmo com tudo jogando a favor, é-se capaz de realizar um bom filme. O cinema é uma arte misteriosa, onde um plano mais afastado pode causar frieza e um plano mais próximo pode revelar que o sujeito por trás do filme não filma aquilo que está adiante, mas um mito, uma legenda. Era o grande perigo de Meu Compadre Zé Ketti: afundar na reverência de seu tema. Aí percebemos a grande sabedoria de Nélson Pereira dos Santos: ele não filma os grandes sambistas, ele não filma a memória encarnada de uma das mais fortes manifestações culturais brasileiras – ele filma uma reunião de amigos, onde a câmera entra tímida, humilde. Desde o primeiro plano o que se filma é um ritual: um carro que chega, uma câmera que sobe as escadas até uma sobreloja onde estão já reunidos todos os sambistas, numa roda de samba. O filme não apresenta ninguém, pois não é questão disso.A filmagem só diz respeito a uma pessoa, a Zé Ketti, e todos os outros são figurantes. E a partir daí o que vemos é, com literalidade, uma roda de samba, com cada sambista cantando alguns versos dos sambas do saudoso amigo.

Diante de tanta crueza e limpidez da narrativa, podemos nos assustar: mas é só isso mesmo? será que Nélson anda preguiçoso? Eu diria extremamente o contrário> Seria fácil emperequetar o filme de trocentos efeitos de emoção, dentre os quais o mais óbvio, uma foto do mestre homenageado à medida que os amigos lembram-se dele e de suas composições. Outra possibilidade: um resumo biográfico de sua vida, ilustrado por fotos do sambista com seus amigos ou no palco. Se Nélson Pereira dos Santos recusa tudo isso, não é porque tornou-se preguiçoso, mas sim porque sua estética, de Rio 40 Graus até seus últimos longas, é o caminho de uma depuração extrema da linguagem cinematográfica, que corresponde a uma visão de mundo destituída de qualquer dimensão espetacularizante, onde a arte não é a manipulação psicológica do espectador mas antes o maravilhamento com o ser humano em suas característica mais genéricas, seus gestos, seus costumes, sua expressão cultural.

Meu Compadre Zé Ketti tem néctares óbvios e alguns deliciosos, mas escondidos. Entre os óbvios, o mimo de podermos ouvir "Diz Que Fui Por Aí", "Máscara Negra" ou "A Voz do Morro", e isso da boca de bambas que por si só já constituem outro néctar. Mas a arte de Nélson também passa por meandros, por gestos quase imperceptíveis. Assim, a candura e a neutralidade de sua câmera ao filmar a pele negra, uma naturalidade que uma vez o cinema brasileiro teve e, a julgar pela tipologia construída por filmes de novos diretores, pode ter definitivamente perdido. Uma outra pérola escondida reside no respeito: se bem olharmos, todos os sambistas vestem azul e branco, as cores da Portela, berço de Zé Ketti. Nélson aceita, incorpora a seu filme, mas não insinua: respeito declarado é pura vaidade. O mesmo com o próprio compositor: de Zé Ketti não vemos nenhuma fotinho sequer, mas há no filme algo que vale por ele – uma cadeira vazia, e nela um chapéu postado. Não é à toa que, finda a roda de samba e todos prontos para a feijoada, que já está no ponto, o filme dirija-se àquela cadeira vazia, e termine a roda como aquilo que o filme é verdadeiramente: uma oferenda a um amigo, com quem trabalhou desde a década de 50, com Rio Zona Norte. Por fim, o fim: depois dos créditos, com um samba em off, surge uma criança, cujos lábios seguem os versos da música. Me disseram ser o neto de Zé Ketti, mas pouco importa: o decisivo é que Nélson, com um plano tão simples e aparentemente bobo, quase estúpido, faz a passagem da geração, filma a continuação da tradição, e filma o prolongamento do samba para os públicos futuros. O cinema é uma arte misteriosa: muitos sambistas já fizeram canções para declarar que o samba não morreu. Nélson, com um plano, parece ter feito uma aplicação prática, e tirado a prova.

Ruy Gardnier