Um
Sol Alaranjado, de Eduardo Valente


Um Sol Alaranjado
Sejamos diretos. Eduardo
Valente é editor de Contracampo, e é também o realizador
de Um Sol Alaranjado, um dos filmes mais interessantes surgidos
no formato de curta-metragem no último ano. Sem cabotinismo ou
concessões. Não é como editor ou amigo que se fala
aqui, mas como crítico de cinema. E este observa no filme um trabalho
admirável, tão impressionante quanto diferente do quadro
geral da cinematografia nacional. As imagens não fluem, o comportamento
dos personagens não é transparente, e na superfície
nada parece acontecer em suma, o filme tem um peso, uma opacidade;
um estilo, enfim.
Um Sol Alaranjado
segue quatro dias na vida de um apartamento numa vila. Nesse apartamento
há um pai e uma filha, mas parece haver muito mais: eternas vozes
de mães dando ordens aos filhos, o rádio que informa a hora
de ir ao trabalho, as músicas cafonas típicas da Amplitude
Modulada. Todos os sons invadem a casa, e no entanto nenhum som proveniente
da casa ultrapassa as janelas, ou sequer os lábios dos personagens.
São personagens mudos, ou antes emudecidos, pela falta do que dizer,
pelo protocolo absoluto que sustenta a relação dos dois.
Em poucas imagens tudo é dito: o velho sofre de algum tipo de enfermidade
ou insuficiência, e sua filha deve fazer tudo por ele: preparar-lhe
comida, dar-lhe banho, fazer-lhe copmpanhia. A única coisa que
ele parece conseguir fazer sozinho é fumar um cigarro à
janela. Sua filha não encara a tarefa como um fardo; é antes
sua principal subjetivação, seu principal contato com a
realidade (não se vê necessariamente amor ou ternura na relação:
tudo parece antes como uma questão de interdependência, de
inter-necessidade).
Se a primeira metade
do filme balança para o lado da mulher, que se movimenta pela tela
e revela toda sua força em relação ao pai, a segunda
inverte a posição. Na única fala do filme, o pai
chama a filha. No sofá, está um homem desfalecido. A filha
senta-se, tenta acordá-lo, ou ao menos recompô-lo, colocar
sua cabeça na posição ereta impossível:
o pior aconteceu. Mas a ausência da relação é
impossível: ela o coloca para dormir, e no dia seguinte procede
a mesma rotina de fazer o café, acordá-lo, dar banho, vestir...
A reversão se faz: agora é a filha que necessita do pai,
que precisa de sua presença para existir. Um Sol Alaranjado
não é um filme psicológico e profundo sobre o
amor de uma filha por um pai. Tudo parece querer dizê-lo, desde
a predominância dos sons ambientes (para sermos melhor impedidos
de saber o que passa pela cabeça dos personagens) até a
música final, onde o hardcore suave do grupo Los Hermanos mais
amplifica o sentimento de dissolução e caos do que propriamente
cede à tentação interiorizante (onde um leve pianinho
bastaria).
Não há
interior. A vida da personagem e o filme faz questão de
deixar claro é dominada pela repetição. O
que fazer quando essa repetição não é mais
possível? Repetir, ainda. Não à toa, a última
imagem da atriz Patrícia Selonk no filme é a repetição
do pai, à janela, fumando. Menos questão de psicologia do
que de insuficiência da psicologia: Um Sol Alaranjado é
uma pequena cartografia dos afetos, onde não há alma, onde
tudo reside na superfície da pele. Da pele e da película,
pois toda a antipsicologia dos personagens é traduzida em termos
cinematográficos por uma máxima visibilidade (vemos tudo
o que acontece aos personagens), uma mínima expressividade (são
sempre poucos gestos, sempre muito demarcados para demarcar os poucos
afetos dos personagens, o que dá ao filme um rigor surpreendente)
e uma nula explicabilidade (nenhuma cena para revelar uma verdade ao espectador).
Se algo "explica" o processo mental da personagem, se alguma
coisa "traduz" o que passa em sua cabeça, não
é nenhuma imagem, mas apenas as passagens em preto que separam
cada cena, sobretudo nos momentos finais, quando as tirinhas aumentam.
O fechamento do filme acontece à maneira dos bons filmes de terror
(Um Sol Alaranjado não deixa de ser um, de certa forma):
menos uma história que se acaba do que uma, muito pior, que começa.
Ruy Gardnier
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