Preservação

Carlos Manga sempre enfatizou o choque sofrido em seu primeiro contato com o universo cinematográfico real. Conduzido por Cyll Farney para conhecer o estúdio da Atlântida, localizado na rua Visconde do Rio Branco, e especialmente o diretor responsável pelas famosas chanchadas, surpreendeu-se por encontrar este último em mangas de camisa carregando adereços, levantando cenários, manejando um martelo como qualquer cenotécnico. Watson Macedo não tinha escritório de luxo, secretária bonita e simpática, carro e chofer na porta da companhia. Traduzindo: não havia salários nababescos e muito menos recursos de monta para a produção e para a própria infra-estrutura do estúdio. A sobrevivência era difícil e com conseqüências óbvias. Pouco depois do memorável e decisivo encontro, o local sofreria um devastador incêndio, responsável pelo desaparecimento de quase toda a filmografia inicial da Atlântida.

Guardadas as devidas proporções, salientadas as peculiaridades de um arquivo de filmes e indicados os contextos diversos, passando dos anos 50 aos anos 80, pode-se dizer que tive um choque semelhante ao tomar contato com o universo das cinematecas brasileiras. Ao me aproximar do cotidiano da mítica Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro – Cinemateca do MAM, para os funcionários, amigos e admiradores – vez por outra via um ou outro carrinho carregado de filmes passar com latas desgastadas pelo tempo, as vezes amassadas, quase sempre enferrujadas parcial ou totalmente. Descobriria mais tarde, igualmente espantado, que quem empunhava o carrinho não era um auxiliar, mas o próprio conservador chefe. Havia poucos, pouquíssimos auxiliares. Mas nada se comparou à primeira incursão pela área de armazenamento de filmes, o famoso depósito de filmes. Na entrada a primeira surpresa: nada de luz. Explico-me: não era oposição à essência luminosa do cinema ou mesmo um cuidado técnico, pois a luz é um fator nocivo à conservação de quase todos os tipos de documentos, inclusive filmes. Era preciso simplesmente usar uma solitária gambiarra, o que tornava o cenário de corredores estreitíssimos, traçado irregular e estantes abarrotadérrimas e altíssimas, uma mistura de filme expressionista e de instalação surrealista, com direção de arte de Gaudí. Ah!, neste momento inesquecível identifica-se também o inconfundível cheiro de película cinematográfica, que dizem ama-se ou detesta-se para sempre. Eu gostei.

O choque completou-se muitos anos depois quando vi pela primeira vez o acervo da Cinemateca Brasileira, já instalada no Matadouro. Acreditei estar vendo todas as latas naquele enorme galpão (era só uma parte) e elas me pareceram três, quatro, cinco vezes mais do que estava acostumado na Cinemateca do MAM. A imagem é impactante e lembra um pouco os finais simbólicos de Cidadão Kane e Caçadores da Arca Perdida e suas implicações filosóficas, políticas e culturais. De imediato me veio à mente a idéia de que tão poucos jamais dariam conta daquilo tudo e naquelas condições tão precárias, sabendo-se de antemão da escassez de recursos humanos e financeiros, tecnologia, infra-estrutura adequada, falta de cursos especializados no país e do fato de que as latas nunca param de multiplicar-se. Alguns meses mais tarde, comecei a trabalhar de fato em uma cinemateca, a do MAM. Naturalmente fui vendo a questão da preservação de filmes por outros ângulos. A perspectiva interna é mais rica, nuançada e necessariamente mais complexa. Alguns mitos caíram por terra, certos clichês se desfizeram e práticas mal aceitas por usuários externos ganharam justificativas irretocáveis. Isso não significa que os problemas clássicos deixaram de existir, seu peso é considerável no cotidiano de um arquivo de filmes. Mas houve a compreensão de que os problemas de natureza documental, arquivística e técnica são parte da área, da atividade, da preservação em si. São fatores estruturais. Esses problemas sempre existirão, ou melhor, na verdade não existem, na medida em que são intrínsecos. A questão real gira em torno de sua intensidade – quando escapam ao controle, tornam-se do ponto de vista administrativo, gerencial e logístico um obstáculo pesado e oneroso - e principalmente da qualidade da resposta dada a eles.

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Nos primeiros tempos da atividade cinematográfica a palavra cinemateca possuía acepção bem prosaica. Alguns dicionários do início do século XX registram o sentido de coleção de filmes, ou seja, uma biblioteca de filmes. O paralelo é óbvio mas traz embutido uma noção importante, a de que o filme poderia difundir conhecimento e servir como fonte de consulta, disponível a um público indiferenciado para além da sua manifestação presente. Um uso específico do registro cinematográfico como fonte histórica já havia sido previsto desde o final do século anterior. Em 25 de março de 1898 o cinegrafista polonês Boleslav Matuszewski publicou em Paris um livreto intitulado Uma Nova Fonte Histórica, em que preconizava a criação de locais destinados à guarda seletiva de filmes, o que denominou Depósito de Cinematografia Histórica. O trabalho como operador cinematográfico dos Lumière despertou-lhe a consciência para o valor das imagens que captava com a câmara, em especial as de caráter documental, desprezando as de natureza propriamente ficcional. É considerado muito justamente um precursor do conceito de cinemateca como espaço de guarda de bens culturais móveis destinados às gerações futuras.

As primeiras coleções de filmes se formaram igualmente no início do século XX, mas não por influência de Matuszewski. Os motivos foram bem menos nobres. Por conta da guerra de patentes travada por Thomas Alva Edison contra seus rivais no campo do comércio cinematográfico e pela necessidade de um registro legal que alicerçasse um processo judicial em torno desta ou daquela obra cinematográfica, a Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos (Library of Congress) começou a receber a título de depósito legal para resguardo dos direitos de propriedade comercial (copyright) os famosos paper prints. Por causa da película de nitrato utilizada então, autoinflamável sob certas condições, e da exigüidade de espaço para dar conta do volume de produção, a Biblioteca recebia os filmes sob a forma de tiras de papel com os fotogramas impressos, do primeiro ao último. Não fossem os paper prints, a filmografia norte-americana seria infinitamente menor, abreviando o conhecimento de autores inaugurais como David Wark Griffith, Ralph Ince e Edwin S. Porter. Deve-se a este material inclusive o desenvolvimento da primeira experiência de restauração cinematográfica, levada a cabo durante a Segunda Guerra Mundial pelo naturalista, cineasta, professor e inventor de câmaras de filmar Carl Louis Gregory, que criou uma truca capaz de reconverter os fotogramas de papel em imagem em movimento registrada em película.

Houve outras iniciativas de caráter isolado nesses primeiros tempos da atividade cinematográfica. Surgiram os primeiros colecionadores de filmes, responsáveis em grande parte pelo pouco que seria legado dos primórdios para a posteridade, e algumas ações de natureza institucional, como a do Imperial War Museum inglês, cuja coleção de filmes iniciou-se logo após a Primeira Guerra Mundial. Neste campo cumpre destacar a extraordinária e pioneira experiência brasileira com a criação da Filmoteca do Museu Nacional em 1910. Idealizada pelo antropólogo Edgard Roquette-Pinto para servir de repositório da evolução dos costumes urbanos nacionais e de registro das culturas indígenas presentes no país, a Filmoteca funcionou durante décadas e reuniu importante coleção de filmes. O descaso, a falta de conhecimentos de conservação de filmes e o tempo destruíram quase todas as películas. Na década de 60 o pesquisador Jurandyr Passos Noronha resgatou na sede da Quinta da Boa Vista umas poucas latas originárias da Filmoteca contendo alguns dos mais antigos títulos da filmografia brasileira, como o Circuito de São Gonçalo, de 1910.

Frente ao conjunto da produção mundial essas pequenas coleções, constituídas quase sempre seletivamente, tinham o sabor de gota no oceano. A falta de um movimento mais vigoroso quanto à salvaguarda do patrimônio fílmico em geral, proporcionou o desaparecimento em larga escala da maior parte dos filmes produzidos entre 1895 e 1950. Foram três grandes ondas sucessivas de destruição. A primeira ocorreu ao final da Primeira Guerra Mundial quando o longa metragem se consolidou como produto preferido pelo público. Não havia mais sentido para os produtores manter em estoque os velhos filmes de um ou dois rolos de tamanho. Não havia mais mercado para eles. Dissemina-se nesse momento a prática do reaproveitamento de matéria-prima, dissolvendo-se as películas para reobtenção da prata ou fornecimento de celulose para a fabricação de piaçava de vassoura. A segunda grande onda de destruição ocorreu por ocasião do advento do som a partir de 1927. Mais uma vez, o sucesso junto ao público determinou a obsolescência precoce de milhares e milhares de filmes reduzidos à condição de estorvo anti-lucrativo. A terceira onda se deu em 1950 por conta da troca da película de nitrato, inflamável, pela de acetato, não inflamável, o que implicou em novas tecnologias de projeção e na inadequação dos filme em nitrato frente ao panorama que se seguiu.

Estima-se perdas consideráveis para o cinema mudo mundial. Algo em torno de 60% a 70% da produção teria desaparecido em definitivo. A percentagem varia da país para país, com maior incidência em nações pobres como o Brasil, que salvou cerca de 10% de tudo que produziu entre 1898 e 1933. A velocidade desta verdadeira tragédia cultural diminuiu até a década de 50, com estimativas de perdas em torno de 30% do volume produzido nos países industrializados e em torno de 50% nos países pobres. Entre um momento e o outro surgem as primeiras discussões sobre o valor do que está desaparecendo e sobre iniciativas a tomar para deter o processo. Influenciados pelo impressionismo cinematográfico, que havia alçado o filme à condição de arte autônoma, vários críticos franceses lançam em 1933 a idéia de uma Cinemateca Nacional. O projeto não vai adiante mas sinaliza uma primeira conscientização quanto à necessidade de uma preservação sistemática e em larga escala do patrimônio cinematográfico. Este reconhecimento do cinema como arte significa a base conceitual que permitirá o florescimento das cinemateca nacionais ao longo da décadas de 30 e 40.

Ao longo deste período constituem-se cinematecas apenas na Europa e nos Estados Unidos. A primeira foi o Svenska Filmsamfundets Arkiv (Cinemateca Sueca), criado em 1933. No ano seguinte surgiu o BundesArchiv (Cinemateca Alemã). Em 1935 foi a vez do British Film Institute e do arquivo de filmes do Museum of Modern Art of New York (MoMA). E em 1936 apareceu a Cinémathèque Française. Dois anos mais tarde, estas cinematecas reuniram-se em Bruxelas e fundaram a Federação Internacional dos Arquivos de Filmes (FIAF). Longe de ser apenas um colegiado protocolar, a entidade mostrou-se decisiva em seus primeiros tempos na formação de uma mentalidade conservacionista. Rapidamente evoluiu do apoio ao esforço pela salvaguarda do filme para a ação mais geral e decisiva de conservar o cinema. Distinção sutil, a passagem da guarda exclusiva da película ao recolhimento conjunto dela e dos mais diferentes itens que gravitam em torno do filme como roteiros, boletins de continuidade e de marcação de luz, cartazes, fotos, documentos de produção, revistas de cinema e outros, configurou propriamente a área de atuação o e perfil institucional das cinematecas e definiu simultaneamente o cinema como documento e fato cultural em suas múltiplas manifestações.

Conservar neste momento era entendido quase sempre como guardar de maneira relativamente ordenada. Essa guarda desinteressada do passado não implicava padrões rígidos de armazenamento, não tinha fins lucrativos e não dava direitos sobre a exploração comercial das obras, que permaneciam com os produtores originais ou seus sucessores, tal como hoje. Práticas pouco profissionais como simplesmente empilhar latas somavam-se a conceitos importantes no relacionamento com a desconfiada comunidade cinematográfica. Mas o verdadeiro senão deste momento estava na continuação da guarda seletiva. Os novos arquivos de filmes constituíram-se principalmente como cinematecas de caráter universal ou nacional (mais tarde apareceria a categoria regional, especializada em determinados temas ou na produção de uma região), destinados prioritariamente a recolher e guardar o que melhor a arte cinematográfica tivesse apresentado nas telas do planeta. Foi a época da busca dos títulos e autores fundamentais: um Nosferatu, um Aurora, um Intolerância; um Charles Chaplin, um Abel Gance, um Sergei Eisenstein. Naturalmente os critérios para esta seleção estavam nas mãos do diretor da cinemateca ou de seu curador e sofriam a influência de determinadas histórias do cinema, ideologicamente traçadas. Psicologias à parte, a questão girava em torno de uma suposta evolução estética do cinema, naturalmente qualificante e estreitamente vinculada ao que se fazia no Primeiro Mundo, hegêmonico desde os primórdios em termos de tecnologia, comércio e ideologia cinematográficas. Basta lembrar que o MoMA, uma cinemateca de caráter universal, só se interessou por um único título brasileiro, Limite, cujos negativos foram remetidos para Nova Iorque e lá se deterioraram. Na dependência deste tipo de sanção, nada mais restaria do cinema brasileiro. E se cinematecas houvessem por aqui nos anos 30 e 40, provavelmente o filme não seria salvo, pois foi um fracasso artístico aos olhos das platéias de seu tempo. Como em muitos casos semelhantes mundo afora a admiração e o esforço particulares salvaram Limite, constituindo-se em uma das grande sagas da preservação brasileira de filmes.

A alternativa ao julgamento de valor era uma só: guardar tudo sem seleção. Ultrapassar a barreira dos clássicos do cinema, no entanto, parecia dispensável do ponto de vista teórico, pois as cinematecas estariam mais próximas de museus que de bibliotecas, e impensável do ponto de vista prático, já que não haveria condições para recolher tudo o que se produzia. O cenário só começou a mudar após a Segunda Guerra Mundial, momento em que a idéia de guardar tudo se fortalece. Certamente o grau de destruição visto na história recente da humanidade teve alguma influência sobre a preservação das criações modernas, o cinema incluído. Mas os fatores decisivos foram menos evidentes, entre eles as concepções da chamada Nova História, que propunha estudos menos oficiais e ligados às classes dominantes, valorizando assim atividades distantes da política, do comércio e da guerra, como por exemplo o lazer e seu papel junto às classes trabalhadoras. Da mesma forma a Nova História e a Arquivologia moderna redefiniriam o estatuto daquilo que pode ou não contar a História, conferindo a qualquer tipo de registro em qualquer tipo de suporte a natureza de fonte e de documento, respectivamente. Filme, artístico ou não, clássico ou não, é documento, portanto, fundamental para a reconstituição de uma porção da história humana, operação essa melhor sucedida se objetivada a partir de um conjunto e não de alguns poucos elementos. Por fim certas formulações filosóficas, psicanalíticas e sociológicas põem em cena a noção de memória, instância formadora da identidade de um indivíduo tanto quanto de uma nação. O direito à memória cinematográfica nacional passa a ser um instrumento de luta e libertação, em especial no chamado Terceiro Mundo. Não por acaso, a maior parte das cinematecas do antigo Leste Europeu, da Ásia e da América Latina surgiu entre 1945 e 1955, entre elas a Cinemateca Brasileira em 1949 e a Cinemateca do MAM em 1955.

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O pós-guerra não conheceu apenas o vertiginoso crescimento do número de cinematecas espalhadas pelo mundo. A descoberta da magnitude das perdas anteriores teve um efeito interno tão importante quanto a ampliação do espectro de guarda. Estava evidente que a película cinematográfica e seu universo de atuação tinham uma natureza frágil e evanescente. Preservá-los implicava em uma profissionalização dos procedimentos internos quanto à conservação, manuseio e difusão dos filmes. Esta nova atitude face o objeto a ser preservado dependia evidentemente de uma mudança de mentalidade quanto ao valor de uma filmografia nacional e quanto ao papel do cinema dentro desta ou daquela sociedade. Mais diretamente requisitava a presença do Estado como agente político e financeiro decisivo na implementação de uma ação de salvaguarda de algo que deveria ser considerado patrimônio cultural nacional. Não foi por acaso que as cinematecas criadas nesse contexto constituíram-se na esfera pública, seja como verdadeiros arquivos nacionais de imagens em movimento, seja como orgãos com a incumbência de zelar pelo patrimônio cultural cinematográfico.

Eis aqui uma primeira e grande diferença entre a origem da preservação de filmes no Brasil e em países de características históricas, econômicas ou culturais similares como Argentina, Portugal, Cuba e México. As cinematecas brasileiras continuavam a tradição dos primórdios do movimento. Eram fruto de iniciativas privadas, egressas quase sempre de círculos como cineclubes, associações de críticos, entidades cinéfilas. A institucionalização seguiu os moldes do MoMA, mas pode-se dizer que a associação foi algo fortuita. Não havia interesse real por parte dos Museus de Arte Moderna, tanto o do Rio de Janeiro, quanto o de São Paulo (onde a Cinemateca Brasileira inicialmente funcionou). O prestígio de considerar o cinema uma das criações modernas, o paralelismo com a entidade norte-americana e o retorno expressivo de público no tocante à exibição justificavam a cessão de algumas salas e uma pequena estrutura administrativa, mas sem considerar seriamente um investimento de peso na conservação, catalogação e restauração de milhares de rolos de filmes. As coleções floresceram sem planejamento, formação de pessoal especializado, conhecimento tecno-científico da matéria e armazenamento adequado. Como conseqüência a Filmoteca do Museu de Arte Moderna de São Paulo sofreu um devastador incêndio com menos de dez anos de existência, em 1957. Em contraponto, o Gosmofilmfond (Cinemateca da antiga União Soviética), nasceu neste mesmo período de uma decisão de Estado e foi fortemente apoiado pelo poder público. Desde o início tinha reservas técnicas climatizadas com ar condicionado industrial e logo atingiu a condição de maior cinemateca do mundo em número de títulos e rolos, posição que ocupa até hoje.

No caso brasileiro, à falta de uma política de apoio público, somaram-se a lenta assimilação da profissionalização mundial quanto aos procedimentos internos de trabalho em uma cinemateca e principalmente o desconhecimento do comportamento físico-químico das diferentes películas fabricadas ao longo da história do cinema, primeiro o nitrato, depois o acetato. Estávamos marcados não só por nossa condição de subdesenvolvimento, como principalmente, de um ponto de vista técnico, pela localização do país em região tropical. Temperatura e umidade elevadas e inconstantes são os vilões imediatos da conservação de documentos, em especial películas cinematográficas. Não que relaxamento, descaso e omissão não se manifestassem em paralelo e tivrssem dado também sua contribuição decisiva ao desaparecimento de boa parte da filmografia brasileira. No período pré-cinematecas, o que escapava ao reaproveitamento ficava encostado em depósitos, sotãos, galpões e similares, muitas vezes sob telhados de zinco, quase sempre sem qualquer cuidado especial dos funcionários das produtoras. Nada sobrou do que foi produzido entre 1898 e 1909. Dois dos mais prolíficos produtores dos primórdios, Paschoal Segreto e Francisco Serrador, perderam seus acervos em incêndios de casas de espetáculos, o do velho cine-teatro Carlos Gomes em 1929 e o do cinema Alhambra em 1940, respectivamente. Alberto Botelho, nosso cinegrafista de atualidades mais produtivo, viveu a tragédia pessoal de dois incêndios em laboratórios próprios, um em 1924 e o outro em 1940. Quase todos os velhos estúdios viram seus acervos arderem em chamas – Sonofilmes em 1940, Atlântida em 1952 e Brasil Vita Filmes em 1957. O mesmo ocorreu com grandes produtores de cinejornais e institucionais do pós-guerra, como Isaac Rozemberg e Herbert Richers, que viram seus acervos anteriores a 1963 desaparecerem quase por completo. Da mesma forma a Filmoteca do Serviço de Informação Agrícola (SIA), constituída informalmente em 1939 sob a iniciativa do crítico de cinema Pedro Lima, cinegrafista do orgão, e que pode ser considerada a primeira cinemateca de fato do país, pois coletava sistematicamente o passado cinematográfico brasileiro, não escapou a mais um incêndio, ocorrido em 1952. Dos pouquíssimos títulos sobreviventes constava o único registro fílmico de Noel Rosa e do Bando dos Tangarás, recentemente redescoberto e exibido. Os incêndios do SIA e da Filmoteca do MAM-SP destruíram boa parte do que ainda restava àquela altura do cinema mudo brasileiro.

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Preservar filmes significa coletar, identificar, documentar, estabilizar, recuperar fisicamente, restaurar técnica e esteticamente, transferir para novos suportes de guarda, conservar, catalogar, difundir e disponibilizar para consulta permanente, entre outras tarefas associadas. Mesmo longe do ideal, este trabalho pode ter uma enorme influência na vida de uma comunidade e mesmo de uma sociedade. Basta pensar na precariedade das cinematecas brasileiras no começo dos anos 60 e na sua participação direta e indireta no movimento do Cinema Novo. Como centros de formação estética, discussão artística e política e base de produção e finalização, atraíram a atenção daquele grupo de jovens e depois da comunidade cinematográfica e da sociedade em geral, estimulando os primeiros depósitos voluntários de filmes recentes, servindo de referência confiável para o envio de velhos títulos e sedimentando a tradição cinematográfica brasileira junto a um público maior. Neste momento as cinematecas tinham o status de centros geradores de cultura em sentido amplo, refletindo o bom momento da atividade cinematográfica e participando ativamente dele. Se isto ajudou no crescimento ou na reconstituição das coleções e no fortalecimento de uma identidade para o setor, não melhorou as condições de guarda e muito menos promoveu de início uma profissionalização do trabalho interno. Os problemas permaneciam praticamente os mesmos dos primórdios.

Mas quais problemas permaneciam os mesmos? Visto em perspectiva histórica, o trabalho de preservação naquele momento implicava principalmente em tarefas arquivísticas clássicas, como inventariamento da coleção, acondicionamento em padrões rigorosos de conservação (temperatura e umidade controladas) e na transferência das matrizes (negativas ou positivas) em nitrato para película de segurança, por conta do risco de incêndio e por crença de que essa simples operação já representava uma preservação mais adequada, o que se revelaria um equívoco posteriormente. O inventariamento era sumário, o acondicionamento não existia e a transferência era feita, quando os recursos o permitiam, em laboratório comercial, o que foge aos padrões de processamento recomendados para a confecção de matrizes mais duráveis, pois a rotina empresarial difere profundamente dos requisitos necessários à geração de materiais estáveis do ponto de vista físico-químico. Nesse sentido, os problemas permaneciam os mesmos, mas começariam em breve a serem atacados de frente, não com vistas à sua resolução definitiva, pois descobriria-se em breve que a deterioração de películas é natural, irreversível e começa no ato da fabricação, mas ao controle das diversas variáveis que interferem em dada situação, viabilizando-se soluções possíveis para as dificuldades encontradas. Para tanto era preciso realizar um amplo e abalizado diagnóstico da situação brasileira.

De outro lado, o notório desinteresse do Estado brasileiro pela preservação de filmes começou a sofrer lentas transformações. Na passagem do antigo Instituto Nacional de Cinema Educativo para o Instituto Nacional de Cinema, criou-se a primeira reserva técnica climatizada para guarda de filmes no Brasil, destinada a abrigar principalmente a filmoteca da instituição. Embora longe de parâmetros ideais, era um primeiro passo com vistas à estabilização do acondicionamento de uma coleção. Mais tarde, a Embrafilme, sucessora do INC, tornou-se a principal financiadora dos projetos de remodelação e modernização das cinematecas, promovendo a compra de equipamentos, a adaptação e refrigeração de reservas técnicas e a duplicação e restauração de inúmeros títulos. Ao idealizar seu centro de apoio técnico à produção, desenvolveu o primeiro projeto de uma área especialmente desenhada e construída para a guarda de filmes no Brasil, o Arquivo de Matrizes do CTAv. Idealizado sob orientação de João Sócrates de Oliveira, então chefe do laboratório de restauração da Fundação Cinemateca Brasileira, o local pretendia ser uma unidade modelo em termos de engenharia civil, refrigeração e desumidificação e mobiliário de guarda. Inaugurado em meados dos anos 80 como setor da Fundação do Cinema Brasileiro (atual Funarte), representou um marco técnico importante e uma solução intermediária, considerando parâmetros rígidos, e de relativo baixo custo. Tem demonstrado bom desempenho na conservação de um acervo formado basicamente por produção dos últimos vinte anos. Em duas ou três décadas, este modelo demonstrará sua eficiência ou suas limitações.

A presença do Estado ainda pode ser sentida na normalização da situação institucional da Cinemateca Brasileira, que saiu da esfera privada e virou uma autarquia federal em 1984, conservando, porém, a natureza e autonomia de uma fundação de direito privado. A esfera pública ainda proporcionou-lhe uma sede definitiva em 1985, após décadas de peregrinação pela cidade de São Paulo e sucessivos incêndios, embora de proporções menores do que o de 1957. Contudo, nenhum desses fatores talvez tenha tido tanto impacto sobre a qualidade das rotinas internas como o conhecimento mais abalizado e atualizado sobre a deterioração em si: suas origens, manifestações, formas de controle e principalmente prevenção. O entendimento do processo como um todo e do grau de interferência de instâncias como a catalogação, o acompanhamento técnico rolo a rolo e a restauração, permitiram pela primeira vez um mapeamento preciso do estágio em que se encontrava o problema, sua natureza específica e as soluções adequadas para o acervo da instituição, o que permite planejamento a longo prazo e consequentemente controle de resultados. Este conhecimento foi obtido com a pioneira ida de Carlos Augusto Machado Calil ao FIAF Summer School de 1976, realizado no Staatlichesfilmarchiv (Cinemateca da antiga Alemanha Oriental). Já no ano seguinte a Cinemateca Brasileira inaugurava seu Laboratório de Restauração, criando um diferencial de qualidade para a produção de novas matrizes, e montava a infra-estrutura que proporcionou o início da catalogação em larga escala não só de seu acervo, como de toda a filmografia brasileira (os guias referentes ao período 1897-1930 foram editados na década de 80 e o projeto está sendo retomado agora como Censo Filmográfico Brasileiro).

O mesmo estágio foi fundamental para a Cinemateca do MAM. A permanência de um ano de Francisco Sérgio Moreira em Berlim Oriental, complementada mais tarde com igual tempo passado no UCLA Film and Television Archive, deu-lhe a convicção e os conhecimentos necessários para implementar a climatização do acervo em parâmetros semelhantes aos do CTAv e almejar também uma unidade laboratorial para higienização e duplicação, com ênfase na restauração de originais no limite do desaparecimento (grau elevado de abaulamento, encolhimento ou desbotamento e outros danos). As mudanças aqui, entretanto, foram mais restritas em função do incêndio que atingiu o prédio principal do Museu (o acervo de filmes não foi atingido, apenas a sala de exibição original da Cinemateca foi danificada) e a conseqüente paralisação da maioria das atividades da instituição. O contexto econômico adverso dos anos 80 e a permanência da Cinemateca do MAM na esfera privada acabaram por limitar a reforma estrutural necessária.

Houve igualmente em ambas as instituições a reprodução da famosa querela fiafiana entre os dirigentes que advogavam o primado da exibição sobre a preservação e vice-versa. A falsa questão aflorou nos anos 70 por conta dos métodos de Henri Langlois, fundador da Cinémathèque Française. Famoso por sua defesa intransigente do cinema como arte e do direito dos filmes sobreviverem, além da influência que exerceu sobre a formação da geração da Nouvelle Vague, conduziu a cinemateca de forma personalista até sua morte em 1977, não permitindo a modernização dos trabalhos internos, em particular nos campos da conservação e catalogação, que, diziam, odiava. O resultado não se fez esperar. Um violento incêndio tomou conta dos depósitos do Pontel em 1980, causando a perda de cerca de dez mil títulos e uma das imagens mais impressionantes que já vi de acidentes na área, milhares de latas e rolos carbonizados espalhados em um raio de quilômetros. A partir da catástrofe o governo francês investiu seriamente na recuperação da instituição e com a posse em 1982 do cineasta Constantin Costa-Gravas como diretor da cinemateca, realizou-se um enorme e fundamental trabalho de catalogação do acervo, abrindo-se lata por lata e registrando-se os dados técnicos e de conteúdo dos materiais. A formação desse banco de dados, aliada à revisão periódica e sistemática da coleção, representa o ponto de partida para um gerenciamento profissional de qualquer cinemateca. O conhecimento da natureza do acervo, seus problemas e estágios de deterioração, permite gerenciar tempo e recursos, otimizando os trabalhos internos e os sempre escassos investimentos externos.

O mesmo ocorreu com a Cinemateca Brasileira nos anos 80 e está ocorrendo agora com a Cinemateca do MAM. Sem isto o impacto da quarta onda de destruição, a que aflorou da recente descoberta de que o acetato deteriora de forma mais rápida, disseminada e violenta do que o nitrato, teria sido bem maior. Todo um conhecimento acumulado quase sempre empiricamente mundo afora vem sendo modificado nos últimos quinze anos pela pesquisa científica sistemática do comportamento da película frente ao seu microambiente (a lata ou estojo) e ao seu macroambiente (a reserva técnica e a cidade em que se localiza o arquivo). Se nos anos 70 era possível ler que o nitrato explodia e podia deteriorar o acetato com seus gases nítricos, e que o acetato deveria permanecer envolto em plástico e lacrado em sua lata original, hoje sabe-se que tanto um quanto o outro liberam gases tóxicos e contaminantes, que os acervos devem ser separados, que a exaustão é tão fundamental quanto a climatização e que a redução da velocidade da deterioração está intimamente relacionada com a queda da temperatura de guarda. Estar preparado para separar o acervo por suporte e estágio de deterioração permitiu à Cinemateca Brasileira a reordenação rápida das práticas internas e principalmente o planejamento de soluções definitivas (frente ao conhecimento atual). Pela primeira vez na história da preservação de filmes no Brasil, está se buscando o diferencial de qualidade para a sobrevivência da filmografia brasileira. Pela primeira vez entrou em cena a possibilidade de uma preservação de longo prazo (em termos arquivísticos nunca inferior a um século). Com a inauguração recente do novo depósito climatizado da instituição, os materiais com baixo nível de deterioração poderão ser guardados a baixas temperaturas (10ēC), ganhando a perspectiva de chegarem inteiros ao século XXII, permitindo assim a aplicação dos recursos disponíveis a um maior número de títulos ameaçados por mais tempo.

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O Estado brasileiro continua distante do universo da preservação de filmes.

Há falta de vontade política e suporte financeiro por parte da sociedade, da classe cinematográfica, dos poderes públicos.

Não há legislação específica de proteção ao bem cinematográfico brasileiro.

As cópias de exibição, brasileiras e estrangeiras, são sistematicamente destruídas em sua maior parte após a exploração comercial.

A lei de depósito legal de títulos brasileiros raramente é cumprida por parte dos produtores.

Não há lei de depósito legal para títulos estrangeiros.

Não há legislação prevendo o repatriamento de matrizes de filmes brasileiros que se encontram no exterior.

O Brasil está mais quente e mais úmido, consequentemente provocando mais acidificação, fungos e bactérias nas películas.

O filme virgem em preto e branco está cada vez mais caro e raro, implicando no uso de filme colorido para obras originalmente realizadas em tons de cinza.

A importação de filme preto e branco para fins de preservação não tem qualquer redução de tarifa ou imposto.

Não há escolas de formação de pessoal técnico especializado na preservação de filmes no Brasil.

O filme colorido tem problemas mais graves de preservação por conta do desbotamento dos corantes.

O Brasil ainda não restaura filmes coloridos.

Não há estudos sobre o impacto dos meios eletrônicos sobre a restauração de filmes.

É preciso cuidar de todos os filmes e não apenas restaurar este ou aquele título.

As cópias de filmes brasileiros deveriam ser distribuídas, após a exploração comercial, por instituições sem fins lucrativos espalhadas pelo país, resguardando-se os direitos dos produtores, economizando-se em fretes sempre caros, e difundindo o cinema e a cultura brasileiros junto a platéias que raramente tem oportunidade de ir a uma sala de exibição.

Que a difusão tenha compromisso com a preservação e com o público.

Que os poucos recursos sejam bem aplicados onde quer que seja necessário.

Hernani Heffner