Queimem
as listas e não os filmes! 

Rolo
de filme abaulado
Queimem as listas
e não os filmes! Queimemos as listas dos cem, dez melhores filmes
de todos os tempos! Deixemos de escolher o que vale a pena ser lembrado
e o que pode ser esquecido. Deixemos de condenar à morte filmes
pouco vistos! Uma cinematografia como a brasileira não se faz com
cem, muito menos com dez títulos. Descubramos filmes esquecidos!
A historiografia de
nosso cinema é comumente associada a ciclos. Uma visão histórica
que começa com Alex Viany e que ainda tem sua permanência
nos dias atuais. Cinema das origens, ciclo Goitacazes, cinema dos grandes
estúdios, a chanchada, o cinema novo, o cinema marginal e por aí
vai...Ciclos com começo e fim determinados. Ciclos que pouco se
tocam, pouco se tangenciam. Uma história de etapas que estão
sempre sendo recomeçadas do zero. A dificuldade de se pensar uma
historiografia onde haja intersecções, onde haja continuidade.
A necessidade de se afirmar que algo acabou e foi superado. Superado por
um outro ciclo, que também terá seu tempo para acabar.
Na própria
negação de uma etapa anterior podemos identificar um ponto
de intersecção: as etapas, os movimentos, se reconhecem
mesmo que seja para negarem-se. O final de um ciclo é algo comumente
ignorado historicamente por já não possuir características
que o definiram em um primeiro momento, por não mais conterem a
força do que seria inaugural. Uma dificuldade de se pensar na transformação
de algo já estabelecido, com o qual já nos acostumamos.
Uma dificuldade de se pensar que um estilo, uma estética podem
estar sendo transformadas por algo que está fora dela: pessoas
que reagem ao que estão vendo, cineastas que fazem filmes como
resposta. O final, do que chamamos de ciclos, comumente já é
uma reação a algo novo que está tentando se impor
como supremacia, daí a impressão de uma perda de uma identidade.
A dificuldade de se
conhecer autores que não estejam incluídos nem identificados
como participantes de ciclos, movimentos. Autores que não pertencem
a um espaço definido e que transcendem a idéia de uma unidade
de grupo/pensamento, assim como Roberto Santos. Suas investigações
estéticas variadas foram incapazes de serem contidas em algo mais
fechado como um movimento, nem mesmo o Cinema Novo conseguiu abarcá-lo.
Hoje ele é, em parte, esquecido por ter assumido um caráter
próprio, independente de ciclos.
Quais autores não
conhecemos por não terem se identificado com um projeto de grupo,
ou por não terem um projeto que se sustentasse mercadologicamente?
Que autores não foram, de alguma forma, "sacrificados"
para que pudessem sobreviver a partir de um movimento? Que concessões
não fizeram? A obrigação de se estar atrelado a um
projeto comum, a um grupo (econômico ou ideológico) para
que seja, um dia, parte de uma memória coletiva. Quando nos remetemos
a nossa memória cinematográfica, a tendência geral
é nos reportarmos, aos movimentos, aos ciclos que nossa história
desenha. As listas com as quais comecei o texto, são apenas mais
um exemplo da nossa necessidade de delimitar um conjunto de obras que
não podem ser esquecidas. Se por um lado essas listas "protegem"
alguns títulos, e perpetuam sua importância na nossa História
cinematográfica; por outro lado, aceleram o esquecimento dos filmes
que ficaram de fora, repetindo a memória cíclica já
citada.
Não estou fazendo
uma apologia ao individualismo, ao fim dos grandes movimentos ideológicos,
sejam de massa ou marginais... Estou aqui colocando que a lógica
de nossa historiografia cinematográfica (é claro que existem
exceções a essa historiografia, tentativas de pensá-la
diferentemente) vem sendo incompatível com a lógica de preservação
e restauração.
Enquanto nossos historiadores
tentam defender a importância de determinado filme ou conjunto de
filmes, a preservação tenta defender que, para preservar
e restaurar, não existe filme mais importante que outro: existem
filmes em condições de deterioração maior
ou menor. Filmes que precisam de um tratamento mais urgente do que outros.
É aí que o problema todo começa. Como justificar
a uma classe cinematográfica, e à opinião pública
em geral, que uma pornochanchada tem mais prioridade do que um autor cinemanovista?
Como justificar, até mesmo dentro de uma instituição
de preservação, muitas vezes administrada por pessoas que
não trabalham com restauração, que se devem investir
recursos para que a pornochanchada não desapareça? A lógica
empresarial não pode ser aplicada a um arquivo, o critério
de restauração não pode privilegiar somente os filme
que darão lucros daqui a alguns anos.
Como justificar a
importância histórica de uma obra que sequer é conhecida?
Quem dá o certificado de importância histórica? Absolutamente
tudo deve ser preservado. Quem defenderá dentro das instituições
que os mais "desinteressantes" filmes fazem parte de uma historiografia,
e podem vir a fazer parte também de uma memória comum?
A área de preservação
esbarra constantemente nessa questão. Como em nosso país
ainda não temos recursos para restaurar, nem sequer guardar adequadamente
nossos filmes, nossas cinematecas constantemente tem que fazer escolhas
do que deve ser salvo e do que pode ser esquecido. Falta ainda vontade
política e organização econômica para que a
restauração no Brasil deixe de privilegiar apenas os cânones
de nosso Cinema. Inúmeros filmes têm sua importância
constantemente questionada por serem filmes desconhecidos, esquecidos,
sem defesa. Filmes órfãos de seus autores e de seus familiares.
Filmes que só tem instituições como arquivos e cinematecas
para defendê-los. Filmes que precisam ser reinseridos em nossa cinematografia
através da sua difusão.
Alguns podem estar
perguntando: por que vermos filmes até hoje não vistos?
Para quê vermos obras não valorizadas no momento de seu lançamento?
Para quê nos preocuparmos em ver esse número infinito de
obras esquecidas?
A resposta é
simples: para que não fiquemos somente nos auges dos movimentos,
para que tenhamos uma historiografia também dos "tempos mortos",
dos filmes não inseridos, dos filmes solitários...
Descobriremos outros
Robertos Santos, algumas obras primas, muitas obras descabidas...
Não teremos
uma visão totalizante nunca, nem é essa a proposta aqui
colocada. Teremos a possibilidade, sim, de uma história mais aberta.
A possibilidade de que nossa cinematografia seja ampliada de forma que
os ciclos não se encerrem em si mesmos. De forma que esses ciclos
possam ser refeitos e desfeitos. Que o cinema brasileiro deixe de lado
seu vício de tentar recomeçar do zero uma História
que já tem mais de cem anos!
Marina Meliande
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