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Uma pauta sobre preservação e restauração. Taí o tipo de tema que é absolutamente cristalino, simples mesmo de sabermos o que vai (e mesmo assim tem que) ser dito, o que vai ser defendido. Afinal preservação de filmes é que nem campanhas contra a fome, ninguém pode ser contra não é? Sem dúvida alguma. Mas ainda assim me passaram esta bola... Eu sei, eu sei, a culpa é minha. Embora quando sente para escrever eu prefira o perfil ponderado de argumentação e diversidade, na mesa dos bares eu não nego que prefiro comprar algumas brigas. Ao menos que seja para quebrar um pouco com as tais certezas, para fazer todo mundo repensar e confirmar (ou não) suas opiniões. É o mesmo papel que venho desempenhar aqui, agora. Então, como eu tento fazer toda vez que este assunto surge, vamos dissipar logo as dúvidas básicas: "Você é contra a preservação?" Não. "Você é contra o trabalho e dedicação das cinematecas?" Não. "Você é a favor de verbas altas irem para a restauração de filmes?" Sim. Já não pareço um contraponto dos mais interessantes, não é? Pois é, mas o problema é exatamente este? O que eu proponho desde sempre nesta questão não é nem nunca foi uma oposição aos trabalhos essenciais realizados na área. Trata-se tão somente de uma relativização, de tentar colocar que não só por ser a favor disso tudo aí em cima eu precise comprar todos os argumentos jogados para defender uma boa causa. O problema está justamente em forçar as pessoas a teorizarem e justificarem tanto para conseguir defender uma posição que devia ser óbvia e auto-explicativa: precisamos preservar os nossos filmes. Ponto. Mas, como tudo é torto neste mundo, obriga-se a quem defenda isso que argumente, explique, faça sua defesa. E aí é que eu acho que começam a se confundir conceitos, jogam-se verdades supremas que não o são, perde-se coerência. Vamos tentar entender isso ponto a ponto:
Não é bem assim. O teatro tem se caracterizado como a arte do efêmero desde sua primeira aparição. Boa parte de seu fascínio vem deste fato: cada apresentação é única, irrepetível. Pode-se até gravar uma apresentação em vídeo, mas ela será apenas isso, a gravação de um dia, o que não é o espetáculo como um todo. Nem por isso se pode dizer que as peças não existiram, que o teatro não tem passado (talvez seja das artes de performance a de maior passado), que não se estabelece uma relação, que as peças não existiram. Paralelos parecidos podem ser traçados com shows e concertos, até mesmo com obras arquitetônicas e plásticas perdidas no tempo. A questão do que seja "passado" é muito mais complexa do que isso. O cinema entra num campo relativamente novo onde tanto a reprodutibilidade como a existência de uma obra física não una em tempo (peça de teatro) ou espaço (pintura, escultura) permite sua suposta permanência. O fato de que ele permite isso não infere automaticamente que, caso ele se perca, isso é o fim do cinema. O cinema também é uma arte única, pois cada exibição é única. Então preservá-lo vai muito mais longe do que ter a cópia, é dar a ele permanência e transcendência. Os filmes já perdidos existem, porque há registros deles, porque eles existiram com um público, porque em seu tempo eles fizeram a linguagem evoluir. O fato de não podermos vê-los hoje não nega isso. Portanto, devemos tentar sim preservá-lo, mas não exagerando e mentindo como se a perda de um filme fosse a morte de uma arte, de uma criação. Não é verdade, simplesmente. Quando se fala que "devemos preservar" é lógico que parece uma coisa óbvia, simples de defender. Porém, perde-se a perspectiva da complexidade do assunto. Por exemplo: especialmente num país como o Brasil, é claro que não poderíamos jamais preservar TUDO. Nossas cinematecas e instituições simplesmente não teriam espaço, pessoal, orçamento para todos os longas, todos os curtas, todos os cinejornais, todos de tudo. Ainda mais no trabalho atual onde começamos um "pronto-socorro" de filmes, no qual precisamos optar na emergência por qual paciente salvar. Aí a coisa começa a ficar um pouco mais confusa. Porque afinal quem escolhe o que se preservará, o que se restaurará (ainda mais grave)? Sob quais critérios? Obras relevantes? Para quem? Geralmente é sob este tipo de pressão que a coisa começa a ficar estranha, porque passamos por conceitos voláteis como o de relevância, importância, permanência, que significam uma coisa para cada pessoa. E muitas vezes começamos a ver um certo cânone do "bom gosto" escolher qual memória afinal devemos preservar, e ao fazer isso direcionar o que é o "nosso passado". Na minha modesta opinião, todo passado é importante. Desta maneira só posso levar a sério a questão do "passado" quando perder Cidadão Kane seja considerado o mesmo que perder uma pornochanchada. Enquanto junto com o discurso do "preservar" venha sempre as frases "estamos perdendo filmes importantes como...", não posso defender de todo o conceito. Então, o que o escriba está fazendo, propondo a paralisia, e que nada se preserve para não se fazer opções? Longe disso... O escriba apenas tenta mostrar que algo que parecia extremamente simples e óbvio vai se mostrando cada vez mais dúbio... Não vou nem me alongar neste tópico, pois ele está sendo tratado por outros artigos nesta pauta de forma mais específica. O fato porém é que as nossas cinematecas, muitas vezes por opção, e muitas vezes por falta de, acabam se tornando caixas pretas misteriosas de memória. Sabemos de alguma forma que, lá dentro, está o nosso passado. Mas ele é um passado morto, pois não é exibido, não é discutido, não é mostrado. E quem vai me dizer que um filme em cópia única fechado numa cinemateca está mais vivo que um filme "perdido"? Como já adiantei, não vou me alongar, mas é preciso pensar que não só o trabalho de exibição e disponibilização deste passado é vital, mas que as cinematecas se tornem algo sempre em movimento. É um absurdo, por exemplo, que as escolas de cinema não trabalhem sistematicamente em conjunto com estas instituições. Se nem os alunos do cinema brasileiro podem conhecer seu passado, quem poderá? Somente estes três pontos são tão gigantescos e controversos que eu não posso simplesmente sentar e concordar com tudo que se diga em defesa da preservação. Preservar e restaurar é muito, muito importante. Mas não é nada de óbvio nem de simples. Precisa ser muito mais discutido do que simplesmente montar-se um projeto de captação ou afins. Precisamos pensar nestas perguntas. Porque senão os "defensores da película" começam a se assemelhar aos ecologistas. Por terem uma luta que, em última instância, ninguém pode em sã consciência se declarar contrário a ela, acaba se justificando atos e argumentos que são tudo menos corretos. Porque preservar o cinema depende, como tudo, de pessoas e opções. E estas, se não o mote em si, são e serão sempre discutíveis. Eduardo Valente |
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