Prêmio
Kieslowski, ou nossos concursos de roteiro são tão ruins
quanto os deles

Já
há algum tempo que venho defendendo a posição de
que os concursos de roteiro não podem ser a única maneira
de se financiar a produção de qualquer formato audiovisual
de um país. Os motivos são óbvios, começando
pelo fato que o roteiro não é uma obra de arte em si, mas
parte de um processo. Portanto, julgá-los como indicador final
de qualidade de projeto é quase absurdo. Quase porque seria um
método válido, se entre outros. No entanto, como tem sido
no Brasil, onde este é o único método de escolha
de projetos, o que vemos torna-se de fato um absurdo, uma vez que a produção
em geral vai mostrando a cada ano as marcas deixadas. Uma produção
que claramente possui uma "cara", em detrimento da liberdade criativa
e da tal diversidade. Filmes "corretos", "engraçados", "inteligentes"
e uma produção que se analisada em sua quase totalidade,
causa muito mais bocejo do que espanto pela ousadia, como se poderia esperar
dos curtas.
Por isso,
a Mostra Curta Cinema prestou um enorme serviço à causa
deste argumento ao trazer um programa chamado "Prêmio Kieslowski",
cuja unidade advém justamente de trazer filmes que são resultado
de um concurso de roteiro. Porque dizemos que isso foi um bem? Porque
ajudou a esclarecer que o problema com a produção dos curtas
brasileiros não vem de uma má qualidade de júris,
ou de um posicionamento ideológico das instituições
que criam os concursos. Antes, o problema é mesmo intrínseco
ao formato do concurso de roteiro, seja aqui, seja na França. Só
que na França este é apenas um exemplo de fomento, mas longe
de ser o único. Aqui, está rapidamente se espalhando como
formato sagrado.
O que
vimos no Prêmio Kieslowski que indicou esta tendência? A repetição
quase total de uma mesma conhecida fórmula. Em primeiro lugar,
em sua imensa maioria, temos aqui filmes "com moral da história".
Esta é a característica principal dos concursos de roteiro
porque, afinal, ao invés de uma viagem audiovisual, os roteiros
em geral apelam ao racional do julgador. Para ao fim do processo de inúmeras
leituras ele poder saber se leu algo de relevante ele precisa poder simplificar.
"O que nos disse este roteiro?" Daí a "moral da história".
Moral esta que pode ser efetivamente em formato de "pregação",
mas também pode vir como uma piadinha, ou um "causo". O importante,
quase sempre, é: um fecho de ouro.
Os filmes
de concurso de roteiro também incentivam a idéia de "personagens",
de lógica narrativa. Sim, porque ler e julgar um roteiro pede uma
apreciação comparativa que só pode passar pelo racional.
Portanto, supostas contradições de personagens que na tela
são tão somente bobagem perto da experiência do cinema,
no papel parecem atravancos sérios ao projeto, que não tem
"lógica", quando analisado e analisado.
Outro
problema: a linguagem cinematográfica em si fica reduzida a uma
mesma idéia clássica romanesca na imensa maioria dos projetos.
Porque falar de cortes, de uso criativo de som, de montagem, de câmera,
num roteiro, são abstrações impossíveis de
passar pelo crivo de um leitor que não consegue "visualizar" aquela
proposta. Por isso, os filmes tendem a ser absolutamente corretos, certinhos.
Até
aqui parece que trata-se somente de um problema do redator com os filmes
narrativos, certo? Longe disso. Acontece que é muito difícil
dirigir bem um filme narrativo. E isso o concurso de roteiros esconde.
Enquanto nos projetos menos "lógicos" o julgamento fica turvo e
negativo. Portanto, no geral o que é julgado é um fato que
não corresponde ao filme. Em suma, palavras no papel não
são palavras lidas por personagens e filmadas por uma câmera
e editadas com sons. Portanto, o que soa bem em papel nem sempre (ou até
mesmo poucas vezes) resulta num bom filme. Por isso tudo, os concursos
de roteiro têm que ser mais e mais relativizados, sempre.
No caso
dos curtas deste Prêmio Kieslowski, o formato encontrado ainda era
mais errôneo na sua origem. Porque propunha não só
um concurso, mas temas. Dentro desta idéia, havia dois julgamentos.
O primeiro já descrito acima, torna-se um concurso de "bem escrever".
O segundo, ainda mais surreal, julga a adequação do trabalho
a um "tema", como se "Homem", "Mulher", "Dar", "Receber", pudessem ser
englobados. Podia ser só uma provocação interessante
se os júris demonstrassem algum senso de humor e originalidade,
mas na tela não foi o que vimos. Resulta numa coleira ainda maior,
que exacerba a idéia de "fecho de ouro", de "moral da história",
de uma forma que Kieslowski em si abominaria, tendo em vista sua Trilogia
das Cores ou seus Dez Mandamentos, onde seu approach temático
primava pela sutileza e dubiedade.
O que
nós vimos de fato nos 12 curtas deste programa? Um belo filme,
escapando das amarras pela capacidade poética (Os Cegos),
um roteiro forte e moral mas que funciona na tela pelos bons atores (Doce
França), um filme simpático (A Idade da Razão,
quase uma homenagem a Truffaut). Fora isso, tivemos um grupo de filmes
absolutamente "corretos" e assépticos ao ponto do desinteresse
(Umas Flores para Irma, Camille e Os Riscos Ignorados),
filmes que optavam pela piada ou pela anedota com final "exemplar" (Os
2 Pullôvers, O Homem e o Cão) ou filmes que tentavam
abraçar totalmente os seus "temas", sendo finalizantes e completos
no retrato destes (O Círculo, Receba e Cale-se).
No geral todos estes filmes eram uma mistura dos 3, na verdade. Havia
ainda dois filmes que podiam ter maior interesse: Meus 4 Últimos
Desejos, que saía de uma sacada de roteiro fascinante mas tomava
uma rasteira da "fórmula", do precisar ser exemplar, e jogava fora
seu belo início; e Hiromi, que era o único que parecia
confrontar diretamente seu "tema", mas que resultou mal resolvido, sem
um atrativo de fato.
Ou seja,
não havia no programa inteiro um só filme que chamasse a
atenção como havia tantos em vários dos outros programas
internacionais. Não havia um só filme que pegasse o espectador
de surpresa, virasse sua percepção, ampliasse seu olhar
do mundo ou do cinema, que causasse sensação ou maior emoção.
Havia vários filmes "corretos", inegável. Mas a grande maioria
era tão óbvia na sua correção... É
somente para isso que se faz filmes? Embora a questão temática
de fato piore bastante as coisas, não tenhamos ilusão: qualquer
outro prêmio de roteiro, brasileiro ou não, que resolva mostrar
sua produção coletivamente, vai resultar na mesma sensação.
É inerente ao formato, por isso o perigo. Como uma opção
de cinema, nada a reclamar. Como a única, trata-se de uma cela
de prisão.
Não
por acaso, os risos na sala de cinema eram audíveis lá pela
metade da sessão quando aparecia o nome da produtora de todos os
curtas. A piada só funcionaria em língua portuguesa, mas
de tão simbólica parecia proposital. O nome da produtora?
NADA. É por aí mesmo...
Eduardo
Valente
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