Pikoo,
pequena grande dose de cinema

O curta-metragem possui
uma linguagem particular bem sedimentada. Não é considerado
filme menor e já goza de independência suficiente para que
seja visto como legítimo representante de uma forma de organização
do universo fílmico que só pode ser encontrada em obras
desse tipo. A enorme aceitação que vem experimentando, por
tratar-se de audiovisual com signos bastante compreensíveis para
uma platéia já acostumada com cinema, e a relativa facilidade
de produção têm colocado cada vez mais o curta-metragem
como meio de expressão preferido de uma geração que
parece ter muito a dizer.
A 11ª Mostra Curta
Cinema provou um pouco o desespero que parece ter tomado conta dos realizadores
de curtas do mundo todo. Fascinados pelas possibilidades quase infinitas
do formato um grande número de filmes apresentados acabaram soando
exagerados, desengonçados, e até mesmo despreparados para
lidar com uma carga significativa em pouca duração. Isso
quando o próprio cinema não era colocado em segundo plano
para dar lugar a gritos de revolta e pedidos de justiça para um
mundo cada vez pior.
Seguindo à
risca o mandamento maior do artista atual, a ânsia de inovação
foi erroneamente perseguida como o uso correto e econômico da linguagem.
Cria-se assim um universo de filmes que não conseguem juntar eficazmente
suas formas e seus conteúdos, quase sempre privilegiando esses
últimos, como se a manipulação formal só valesse
como um apêndice curioso das obras. Parece um problema de valorização
da gramática cinematográfica.
Os três curtas
do diretor indiano Satyajit Ray, exibidos no meio da extensa programação
da mostra, foram o importante contraponto a essa produção
passageira. Não só por ser um realizador difícil
de ser visto por aqui e ter uma filmografia de peso, mas principalmente
pela alta dose de respeito à linguagem cinematográfica que
seus filmes carregavam.
Ray é um profundo
conhecedor do cinema. Sabe usar a decupagem e montagem como ninguém.
Foi uma pena apenas seu curta Pikoo ter sido exibido em película,
mas mesmo assim já foi suficiente para mostrar que o tratamento
de linguagem de Ray é totalmente diferente do de qualquer novo
filme da Curta Cinema.
Pikoo não
conta nenhuma história emocionante, cheia de ação.
Seu final não tem reviravolta reveladora. Fala apenas de um dia
na vida do garoto Pikoo e de sua família rica, de sua mãe
adúltera. Aqui, o que realmente importa é a maneira de filmar.
Indo por um caminho oposto aos exageros estéticos tão na
moda, ou à gritaria política e social engajada, Ray não
fez concessão para nenhuma intromissão de elementos que
não façam parte da mais simples e clássica linguagem
cinematográfica.
Porque é justamente
isso: linguagem clássica. Saber usá-la com destreza é
muito mais eficaz do que tentativas pouco estudadas de quebrá-la.
Então Ray,
com toda a simplicidade, prova que é inovador sem burlar qualquer
regra dessa gramática do cinema. Não se trata de ir além
do que é possível fazer, porque o diretor não ultrapassa
nem um pouquinho a fronteira do cinema clássico. Ele prefere usá-lo
na totalidade, até o seu limite, não dispensando movimentos
de câmera, zoons, gruas, mas nunca mais do que isso.
Cada plano filmado
consegue ser muito mais eloqüente do que normalmente se espera deles.
Se não fosse a montagem perfeita, usada em tomadas enxutas, milimetricamente
planejadas, tal efeito nunca seria alcançado. Aliás, Ray
entende muito bem o que é o processo de criação de
significados através da junção de dois planos. Aqui
eles se completam não pela previsibilidade, mas pela emergência
de um sentido que somente Ray tem habilidade para pensar e concretizar.
Suas costuras são obvias apenas depois de já terem sido
mostradas. Se até os batidos plano e contra-plano conseguem ser
mais expressivos, o que dizer de recursos um pouco mais elaborados como
movimentos de câmera altamente bem arquitetados. Ray chega ao extremo
de não necessitar da fala, estando seus diálogos igualmente
inseridos nessa lógica de sentidos por ele usada. Seus personagens
não explicam, apenas vivem, olham, se mexem no mundo perfeito idealizado
por Ray onde cada ato tem seu significado correspondente.
É como saber
escrever bem. A linguagem é uma só, mas nem todos fazem
o mesmo uso dela. Ignorar regras aparentemente rígidas é
mais um ato de revolta proveniente da incapacidade de domá-las
adequadamente. Criar, e não destruir, só se faz aplicando-as,
em toda a sua amplitude.
Talvez seja por isso
então que a obra de Ray é reconhecida como cinema, sem as
armadilhas do exotismo ou o interesse imoral pelo outro diferente. Porque
o que a pequena amostra que Pikoo nos dá é de um
cinema universal, que é exatamente o mesmo em qualquer parte do
mundo, se sustentando nas mesmas bases de compreensão. O fato de
ser feito na Índia não tem valor além da curiosidade
geográfica. O bom cinema não é reconhecido como tal
por peculiaridades desse tipo. Contam muito mais a coerência estética
e a organização interna da linguagem, que é a mesma
em toda a parte.
Ray dirigiu Pikoo
com uma tranquilidade e segurança de quem é reconhecidamente
perito no que faz. Seu objetivo não é negar a árdua
história da construção de uma linguagem cinematográfica
enfim sedimentada. Ele tem noção de que precisa exatamente
dela para poder materializar seu discurso em forma de filmes, bastando
para isso manipular esse conjunto fechado regras e torná-las adequadas
a um projeto pessoal, verdadeiramente artístico. Difícil
é isso, daí a quantidade de realizadores se debatendo com
essas simples leis. Ray se submete, mas como grande gênio adapta
suas ferramentas segundo seus interesses.
João Mors Cabral
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