O
que significa o termo "preservar", afinal de contas?

Foi numa aula de segundo grau
que ouvi de um professor, uma vez: "ninguém atravessa duas
vezes o mesmo rio". Rio? Na hora, quem riu fui eu, mas ouvi a explicação
– um rio é feito por águas correntes, e a água que
toca nos joelhos num instante não será a mesma de outro
instante – e, por extensão, pode-se dizer que a pessoa também
se transforma, como o rio. Depois fiquei sabendo que essa frase era de
um filósofo grego (um pré-socrático, como me ensinaram
a chamar depois), Heráclito, e descobri também que se referiam
a ele como ‘o obscuro’. Aprendi mais tarde que ele é visto hoje
como o filósofo do fluxo, do mundo em eterna transformação
– e é comum vê-lo colocado em oposição a Parmênides,
outro pré-socrático, que seria por sua vez lembrado como
o filósofo da transcendência, o sujeito que primeiro valoriza
a permanência das coisas. Já se notou também que Parmênides
foi muito mais influente sobre a maneira ocidental (platônica) de
ver o mundo – o interesse pelas idéias de Heráclito ressurgiu
mesmo só no século XX. Isso pode não significar nada,
mas também pode ser um bom indicador das idéias que circulam
em nossos dias, idéias de seres-no-mundo abertos ao devir e interessados
na imanência (em oposição à transcendência).
Pois é. Ninguém
vê duas vezes o mesmo filme, será que eu preciso lembrar
alguém disso? Nós mudamos e os filmes mudam para nós,
não?
Nosso problema pode ser definido
pelo velho provérbio, ‘casa que não tem pão, todos
brigam e ninguém tem razão’. Ou todos têm parcialmente
razão, isso não faz diferença. O fato é que
não adianta culpar realizadores ou preservadores por suas atitudes
subdesenvolvidas (chamemos assim, nostalgicamente). Porque não
me parece ser o mais importante no momento tecer julgamentos morais sobre
gestos como embarreirar a exibição de cópias de filmes
ou fazer um número alto de cópias-tiragem a partir do negativo
original. Isso tudo às vezes é apontado como o problema
central, mas não é, é só a pontinha do problema.
O problema é que não há demonstrações
evidentes de interesse da sociedade (ainda que pela via do estado) em
se preservar o cinema brasileiro – logo, não há grana.
Não há grana porque
o país é pobre? Bem, leite de criancinhas é um argumento
já folclórico. Mas o caso é que nosso amado Ministério
da Cultura vem, seguidamente, terminando o ano com grande sobra de caixa
– parece brincadeira, mas não é, foi inclusive noticiado
em um grande jornal carioca que nosso amado ministro Weffort autorizou
a contratação de uma empresa de consultoria para elaborar
um plano de administração futura dessa verba, isso foi feito
há coisa de dois meses, depois de quase sete anos no cargo. Há
casos semelhantes em secretarias de cultura estaduais e municipais. O
que falta é organização e projetos.
Aí chegamos ao ponto interessante,
ao ponto que intitula essa artigo – O que é preservar um filme?
Não tive como escapar da lembrança da oposição
dos filósofos, de como valorizamos o que se preserva, mas também
como aprendemos a valorizar o que surge com o fluxo – e o que se mantém
a partir do fluxo. Qual é o projeto, afinal?
Sim, porque é preciso estruturar
financeiramente nossas cinematecas, de um jeito que funcione e que dê
conta das imensas e constantes necessidades. Mas, ok, e depois? Me desculpem
a má imagem : manter um filme escondido numa cinemateca é
feito ter um sujeito em coma – isso não é vida, mas pode
voltar a ser. Não é orgulho ter cinco mil filmes escondidos,
o importante é que estejam facilmente disponíveis.
Mas pode-se dizer que é
perceptível o interesse pelo assunto da parte da sociedade e de
seus representantes públicos que cuidam especificamente do assunto?
Há interesse por projetos de preservação realmente
consistentes? Não é difícil elaborar a criação
de um fundo financeiro para preservação de filmes – nem
é difícil justificar o uso de verbas a partir das sobras
do dinheiro destinado em orçamentos prévios à área
cultural – dinheiro que deveria ser gasto em produção e
difusão cultural e por quaisquer motivos não tenha sido.
Justificar não é difícil, mas conseguir é
sim, a gente sabe disso. Só que é aí que a coruja
dorme. Tem alguém que realmente batalhe por esse tipo de projeto?
Batalhe na prática, quer dizer, no front da pequena política,
procurando empresas e poderes públicos com propostas definidas?
Porque, se houver, aí vem
a curiosidade: como é o projeto de preservação de
filmes, no Brasil?
Mesmo tendo o carinho pelo MAM
que a assiduidade me trouxe, devo lembrar que o país não
termina na Via Dutra, é maior que Rio de Janeiro e São Paulo.
E depois de preservar? Passar nas telas de cinema de todo país?
Dos mais de cinco mil municípios
brasileiros, nem dez por cento tem sala (ou tela) de cinema. Já
tiveram, não têm mais. Têm televisão, serve?
Deveria servir, já que o Estado Brasileiro controla uma rede nacional
de televisão (além de regulamentar as outras, mas vamos
pular essa parte, que seria chatíssima, diria o que todo mundo
sabe e tornaria essa artigo longo demais). Tá certo que essa rede
nacional de televisão é muito mal difundida e, não
raro, tem péssima qualidade técnica de transmissão
– e será que seria muito complicado resolver isso?
E a mais produtiva maneira de
difundir é selecionar a difusão, me parece. Sem selecionar
nada, o que fica não é tudo, na verdade não fica
nada. Não adianta pretender restaurar filmes tendo em vista exibições
comerciais. Todo tipo de filme deve ser restaurado e colocado à
disposição do público, mas é preciso também
projetos de difusão específicos para os cânones, sem
pudor de canonizar. Certo, precisaria ter critérios (que são
sempre discutíveis) na escolha desses filmes , mas, ora, não
é assim quando escolhem Machado de Assis? Os critérios são
sempre discutíveis, mas precisam ser usados para poderem ser ampliados.
Ou será que isso custaria caro e tiraria leite de crianças?
Nosso Ministério da Educação
distribui vídeos e computadores pelo país para ajudar as
professoras a educar as crianças. Distribui Machado de Assis a
várias bibliotecas país afora –e ainda bem que o faz, nunca
é demais louvar as boas iniciativas. Pois precisa distribuir filmes
para o acervo dessas cidades também – os filmes mais renomados
da cinematografia brasileira, assim como faz com livros. E até
poderia programar filmes na sua Rede Escola para auxiliar o aprendizado
em diversas matérias.
Pois é, as crianças
assistem muito os programas disponíveis na tevê. Não
é muito fácil para elas encontrar filmes brasileiros na
programação. Confesso que imagino aqui a resposta que eu
ouviria dos detratores em geral, "mas que crueldade, querer impor
‘Terra em Transe’ para as crianças, elas vão acabar assistindo
às pornochanchadas, nossas pobres crianças, sem leite e
com ‘Terra em transe’...". Até acho alguma graça na
idéia que me passa pela cabeça, mas o humor azeda quando
a gente pensa na programação disponível nas tardes
e noites televisivas. Nenhum problema, cada um assiste ao que quiser.
Mas será que pode assistir a tudo que quer mesmo?
Canonizar é sempre um problema.
Muitas crianças podem achar chatíssimo ter que estudar Machado
de Assis ou Manuel Bandeira, mas é sempre possível que uma,
duas ou mais se interessem e façam valer a pena todo esse esforço
de produção, de manutenção, de difusão,
de exibição. É isso que justifica, não é?
Crianças todos somos. Talvez não seja leite, mas isso também
nos alimenta, não?
É, sim, preciso mostrar
e tornar disponíveis muitos filmes país afora, seja pela
Rede Nacional, seja pelas cópias de filmes da Funarte – uma coleção
que precisa crescer e se difundir numa escala imensa – que, por acaso,
almeja? É preciso sobretudo tornar fácil o acesso a filmes
preservados, a quem quer que pretenda vê-los. Isso requer grana
e organização, com certeza – mas não dá para
escapar de pensar nos inúmeros e deliciosos coquetéis que
nos proporcionam nossas carinhosas leis de incentivo à cultura.
Todo mundo tem direito a, uma vez na vida, usar o argumento do leite das
crianças, não é mesmo?
O fato é o seguinte: enquanto
não conseguirmos preservar vivos os nossos filmes, temos mesmo
que ter vergonha em nos olharmos no espelho. Nem que seja por uma homenagem
da hipocrisia à virtude, uma vez que, como sempre nos é
lembrado, é isso que a perda desses filmes significa. Perdoem outra
má imagem, mas, retomando a metáfora do filósofo,
o que temos é um rio que vê sua fonte secar e erodir. Ele
não terá suas águas transformadas quando por lá
passarmos – simplesmente porque a água está minguante, o
rio está secando. Para permanecer, é preciso se adaptar
ao fluxo. Mas, meramente entregues ao fluxo, viveremos no reino do imediatismo
de Cronos. Quem o venceu foi seu filho Zeus, o deus dos raios – e dos
pensamentos. Se disfarçou em pedra para sobreviver ao imediato
cronológico. Atiradas em rios, as pedras correm, mas não
se desfazem.
Não, não, a sugestão
central desse artigo não é que se lancem latas de filmes
antigos em alto-mar.
Enquanto escrevi esse artigo,
pensei bastante em lembrar de Ademar Gonzaga – nosso maior gerador de
cinema até metade do século XX – e do seu mítico
filme perdido, Barro Humano, falar também de Favela dos
Meu Amores, o filme de Humberto Mauro que falou das favelas antes
de aparecerem Nelson Pereira e o Cinema Novo, pensei também em
lembrar do caso do nosso querido Carlão Reichenbach, que tem sua
posição renhida de desconfiança com relação
à Cinemateca Brasileira – desde que descobriu que os negativos
de Filme Demência, lá depositados, estavam danificados
("Meu melhor filme, porra!"), de forma definitiva, mas nada
comprometedora, por muita sorte, pouco mais de dez anos depois do filme
ter sido lançado – e que, recentemente, descobriu que a mesma Cinemateca
Brasileira tinha recuperado em seu acervo o negativo original de "Corrida
em Busca do Amor", que o próprio cineasta já considerava
perdido. Lembrei-me de todos eles, mas é na família De Andrade
que penso agora, e é a ela que dedico essas linhas contracampistas.
Vou terminar esse texto lembrando um pouco o dr. Rodrigo Mello Franco
de Andrade, que foi o primeiro diretor e o organizador do Patrimônio
Histórico Nacional, nomeado por Gustavo Capanema a partir de indicação
de Mário de Andrade – e, segundo a opinião da época,
fez um trabalho esplêndido. Lembro também da neta dele, Alice
de Andrade, que, além de tocar adiante sua carreira de realizadora,
ainda cuida como pode da restauração e preservação
dos filmes do pai dela, junto com Ana Maria Galano. E me parece que toda
essa defesa de preservar vivos os filmes se justifica lembrando justamente
de filmes como os de Joaquim Pedro, que são uns filmes do cacete
e precisam ser muito bem preservados e muito bem vistos. Não há
como escapar da lembrança dessa família ao falar em preservação
histórica no Brasil, e é por isso que a ela dedico esse
texto.
Esse texto, como toda essa pauta,
é para não esquecer desse monte de coisas que a gente tem
que ter como lembrar. Que nós consigamos preservar a valer os filmes
dessa família imensa e brigona que é o cinema brasileiro,
esse me parece ser um bom desejo para o fim de ano – já que nem
todos os filmes têm seus realizadores ou suas mães ou filhas
para lhes proteger. Como já se disse, se nós não
amarmos nossos filmes, ninguém o fará por nós.
Daniel Caetano
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