Nosso mundo é assim: bizarro, ou como pode um indivíduo adolescer no Mundo Cão

Há 3 anos a Mostra Curta Cinema optou por radicalizar sua luta em ser reconhecida como um verdadeiro festival internacional de curtas. Passou a buscar maior divulgação e fazer esforços curatoriais no circuito internacional de festivais. Com isso, tem atraído a cada ano mais inscrições, montado programas mais ambiciosos, e recebido maior número de convidados internacionais. Que isso não tenha ainda tido no público a resposta de qualidade que o evento ganhou, é mais um retrato da cegueira do tal "mundinho cinéfilo" carioca. O fato é que hoje a Mostra apresenta um painel variado, vibrante, e quase exaustivo do que de melhor se produz em curtas no mundo inteiro.

Juntamente com o início deste processo, a Mostra fez uma opção por criar sessões "temáticas". Ao invés de optar por separar seus filmes em programas numerados e indistinguíveis, cria a cada ano alguns motes para agrupar os filmes em sessão. É uma decisão de marketing arriscada porque, se cria uma identidade própria aos programas aparentemente mais atraente do que um simples "Programa 1", também é verdade que permite certa confusão na priorização do espectador por uma ou outra sessão. Se tem funcionado criando programas que tornam-se "favoritos" do público, como o Mundo Bizarro, também acaba arriscando um certo desinteresse por temas áridos como Indivíduo ou Mundo Cão.

No entanto, esta disposição em arriscar é muito elogiável, acima de tudo porque assume uma corajosa posição curatorial. Sim, porque o espectador se vê num duplo papel de julgamento dos filmes: pode achá-los fracos, e questionar sua seleção para uma Mostra com tantos inscritos; mas passa a poder também questionar sua inserção num determinado tema. E é fato que várias das seleções temáticas são questionáveis. Podemos afinal ver filmes longe de qualquer noção de bizarrice no Mundo Bizarro (podemos pensar este ano em Bailongas ou Member), questionar o que é exatamente o Mundo Cão (a seleção pareceu confusa, havia ali coisas realmente bizarras, enquanto A Guerra Nossa de Cada Dia parecia muito mais Mundo Cão) e ficar confusos com qual exatamente a diferença entre Nosso Mundo e A Vida é Assim. Afinal, a vida não é assim no nosso mundo? Por outro lado, outros programas acertaram em cheio como o caso do referente à Guerra, ao programa Adolescer, e ao programa com o conceito mais fluido possível, e que por isso mesmo acabou instigante, o Indivíduo (embora fosse possivelmente o mais fraco, se visto filme a filme).

Se colocar desta maneira "pessoal" (entre aspas, já que não é uma só pessoa decidindo a seleção ou temas), porém, é um ato corajoso até mesmo pelos possíveis erros e contestações. Mais que corajoso é inteligente ao incentivar este tipo de debate, que infelizmente não possui qualquer ressonância na grande mídia ou com o público em geral, aparentemente avessos a discussões mais desafiadoras. O que talvez falte nesta curadoria é levá-la ao último grau, ou seja, colocar os temas em discussão, criar um ciclo de debates sobre os filmes com convidados diários juntos com alguém da organização. Pode ser uma forma de fazer o público se sentir mais participante e incentivar a presença em mais sessões para comparar os temas, etc. Na verdade, as sessões como estão estruturadas hoje impedem a viabilidade desta idéia, porque são longuíssimas maratonas de curtas, ao final das quais o espectador chega exausto. Aquele que tentasse acompanhar a mostra toda, por exemplo, no CCBB, chegaria ao final do dia com quase 6 horas de filmes nas costas, com 5 minutos de intervalo entre sessões. Claro que assim o debate fica prejudicado, e é caso de perguntar se não precisamos pensar em sessões um tanto mais curtas (sem trocadilho). Claro que cada vez mais os festivais precisam produzir números (tantos filmes, de tantos países), mas o processo fica meio esquizofrênico quando afeta a exibição e recepção das obras pelo espectador.

Mas, passemos aos filmes em si. Alguns deles já foram alvo de crítica e análise mais aprofundada aqui na Contracampo, quando do Festival de Curtas de SP ou do Anima Mundi, o que mostra mais uma vez um olhar atento dos curadores em busca do que haja de melhor no mundo. Entre estes, sobre os quais não escreveremos aqui, podendo o leitor se referir aos artigos anteriores, estavam 3 dos melhores curtas do ano, talvez os 3 melhores mesmo: Camera, de David Cronenberg; Helicopter, de Ari Gold; e The Nest, de Owen Fitzpatrick.

Nos programas Nosso Mundo (única sessão com dois programas, parece um pouco um espaço onde vale tudo de bom que os curadores querem mostrar e não se encaixam nos outros temas), destaque para o tcheco Pád, de Aurel Klimt (também exibido e comentado no Anima Mundi) e o galês 3 Minutes of Torture, de Chris Morris no programa 1; enquanto o programa 2 talvez fosse o mais fraco de toda a mostra (pelo menos sem os dois curtas que não puderam ser exibidos na sessão assistida por nós, entre eles pelo menos um excepcional, Einspruch II). O programa 1 tinha ainda alguns curtas instigantes que não levavam totalmente a cabo suas propostas, como o esloveno U Transitu ou o francês Mohamed, e o polêmico filme búlgaro-americano Lemon is Lemon que para alguns foi um dos melhores da Mostra, mas me parece tão somente a bela filmagem de um tema assustador, sem qualquer posicionamento mais interessante. Aliás, se isso não é Mundo Cão...

O favorito do público, Mundo Bizarro, tinha o genial The Nest (que segura com facilidade uma segunda assistência), o cáustico e hilário Rejected (também mencionado no Anima Mundi) e de resto uma série de filmes muito pouco bizarros, exceção talvez ao polonês Q, este sim merecedor com louvor do adjetivo. Havia desde experimentos pós-modernos de linguagem e política (o fraquinho Member) até piadas no máximo excêntricas, mas não bizarras (como Bailongas e A heap of Trouble), chegando à bizarrice de vitrine representada pelo péssimo Der Pilot. Faltou choque verdadeiro, que ficou espalhado entre o susto inicial do insano desenho de Don Hertzfeldt e o final com o filme da Polônia.

O programa Mundo Cão exibiu, em oposição, dois dos filmes mais bizarros do Festival, ambos muito bons, o inglês To Have and to Hold e o suiço Sans Fin que impressionou pela coragem e produção, sendo um filme de escola. Manter até o fim uma proposta ousada como a do filme, com segurança, é fato raro nos filmes mais profissionais. Havia ainda um belíssimo filme argentino, El Cazador es un Corazón Solitario. A sessão era completada com os ainda menos Mundo Cão Born Loser e The Big House, ambos portfólios brilhantes para seus diretores ingressarem no mercado de longas, mas de pouco interesse além disso. A longa duração destes dois, e os fracos filmes complementares (sendo o pior o coreano, mas que pelo menos era de fato um mundo cão...) prejudicavam a lembrança de 3 filmes excepcionais ao fim da sessão, servindo de argumento pelo pedido de sessões mais curtas, onde filmes possa ressoar mais.

Na sessão A Guerra Nossa de Cada Dia, o tema bastante claro ajudava a dar unidade aos trabalhos. Houve os esperados documentários competentes e pungentes, em especial o bósnio Galochas Vermelhas, e pelo menos um filme americano interessante pelo que tem de premonitório do momento atual, e quiçá futuro, mas que cai vítima do velho "esquematismo" (Dog Days). Mas, a sessão era toda mesmo do impressionante filme russo Et cetera que ensina como fazer um ensaio pessoal e poético com material documental. É o filme que Marcelo Masagão faria no dia em que tirasse os olhos do umbigo e enxergasse a grandeza do ser humano, na sua baixeza mesmo.

A sessão Indivíduo era a mais regular. Ou seja, nenhum filme era fenomenal, nenhum filme era ruim. Claro, havia o filme de Cronenberg, mas este tema relacionado ao filme era tão estranho que nem conseguimos pensá-lo como integrado ao programa. De resto, filmes como o finlandês Hyppaja ou o canadense Soowitch não aproveitavam de todo pontos de partida fascinantes, seja pela longa duração, seja pelos desvios desinteressantes que tomavam.

O programa Adolescer talvez fosse o mais completamente apreciável. Tinha pelo menos 3 filmes de muita qualidade, variando do experimentalismo subjetivo de Baby à síntese de sutileza naturalista que é Lollipops, mas talvez o seu filme mais delicado e inteligente fosse o francês Les Petites Oiseaux. No geral, a passagem infância/adolescência foi tratada como um momento de mistura entre a inocência infantil com uma malícia e educação do olhar. Temos que notar ainda o muitas vezes desarticulado, mas adorável na sua estranheza, Elefantes do Planeta Marte e outro francês na linha mais sutil, Gelée Précoce.

O último programa efetivamente temático, o tradicional A Vida é Assim, tinha o maior número de ótimos filmes da Mostra. Fechando com o excepcional Helicopter (já analisado em SP), tinha ainda três filmes que pegavam o banal da vida e encontravam nele o sublime com grande delicadeza: o finlandês Pizza passionata, o português O Inventário de Natal, e em especial o francês O Pão, absolutamente impressionante. O resto da sessão era mais desigual, mas não comprometia de forma alguma, com exceção talvez do bastante óbvio filme de Hong Kong Primeiro Encontro. Junto com o programa Adolescer formava o melhor dos programas.

Os últimos dois programas do Panorama Internacional (os curtas infantis não foram vistos) não eram temáticos, mas escolhidos por outros critérios. O primeiro era o já tradicional Premiados, que apresenta os filmes vencedores dos principais festivais e competições. Surpreendentemente, talvez fosse um dos mais fracos programas da Mostra. Tem o ganhador do Oscar, que é um dos filmes mais moralistas e francamente babacas do cinema atual (Quiero Ser), o ganhador de Clermont Ferrand que parte de uma idéia boa para executar uma direção quase patética de atores e decupagem (Ouça) e chega ao cansativo ganhador de Oberhausen, já visto no Anima Mundi e em SP, O Caminho para o Nirvana.

Todos, diga-se, se arrastam por longos minutos, tornando a sessão um suplício. O ganhador de Cannes que abriu a sessão (Bean Cake), se não chega a ser equivocado como os outros, é apenas um filme OK. O único filme mais destacado, o alemão vencedor de Veneza Freunde, passaria melhor no programa Adolescer ou afins, onde seria melhor apreciado, embora não fosse ser o melhor curta de nenhuma outra das sessões. Mostra como premiações são contestáveis mesmo.

Finalmente, a sessão Curta nas Salas parte de um pressuposto prático (não ter diálogos) para permitir que os filmes passem durante a Mostra num circuito maior, mas por isso mesmo acaba tendo uma unidade de estilo, que são as experiências de linguagem. Entre piadinhas bobas como Quak ou La Flamme, 3 filmes de destaque. Os inteligentíssimos Música para um Apartamento e seis Percussionistas e Filme com uma Garota, e o extremamente sutil na sua crueldade do banal, o melhor filme da sessão, Bye Bye.

Houve ainda os programas especiais, que destacaram desde a produção portuguesa, sempre instigante, até os filmes de escola da Cinefondation, uma tradição já da Curta Cinema. Outros programas mereceram textos específicos na pauta.

No geral, a mostra possuiu um alto nível, como seria de se esperar de um apanhado tão abrangente do melhor da produção mundial. O público certamente foi muito menor do que os filmes mereciam, e isso precisa de uma reflexão de ordem prática e mesmo conceitual por conta da produção do evento. Que não deve, porém, se render à mediocridade reinante, mas sim fazer com que o seu produto de qualidade chegue mais fácil ao que temos aí como circuito e público. Houve de fato filmes excepcionais em exibição e é um absurdo que a mídia e os espectadores não dêem a repercussão necessária para as únicas exibições destes trabalhos no Rio de Janeiro. Desde já aguardamos a Mostra em 2002 para descobrir afinal se o Nosso Mundo é mesmo Bizarro...

Eduardo Valente