Mostras e filmoteca - Jurandir Noronha

Esta I Mostra Retrospectiva do Cinema Brasileiro, trás um sentido que escapou até mesmo aos possuidores de negativos e cópias de alguns filmes dignos de serem preservados. Poucos compreenderam que tanto o Museu de Arte Moderna quanto o Centro de Estudos Cinematográficos pretendem, com a iniciativa, dar início não apenas a conservação de todo um patrimônio que vai desaparecendo mas também de situar, frente a outros países, o que tem sido o esforço dos nossos patrícios no setor da sétima arte.

Exatamente, a mesma obra de um British Film Institute; de um Museum of Modern Art, de New York, ou então da Cinematéque Française. Quando assistimos, ainda hoje, as peliculas com as quais os Lumiere extasiaram a platéia daquele longínquo 28 de dezembro de 1895, já não pensamos em como seria bom examinar o O Transformista Original, realizado pelo grande Paulo Benedetti entre 1903 e 1910, tampouco a versão original de Iracema, terminada aqui em São Paulo pelo inesquecível Victorio Capellaro, em 1913; muito menos no Pátria e Bandeira de Antonio Leal, pronto à época da Primeira Grande Guerra, trabalho que era um pouco de ficção e um pouco de documentário, pois apresentava as manobras do exército realizadas imediatamente após a promulgação do serviço militar obrigatório. Quanto mais assistir a essa cousa controversa, perdida no tempo, e que foram os primeiros metros filmados no Brasil...

Que foi feito da produção mais recente? Da década de 920 a 930?

Que foi feito de Barro Humano, ainda hoje, ao reconstituirmos o seu cenário, uma pujante realização cinematográfica? Talvez nem mais existam as latas, corroída a película pela má conservação, impossível de descolarem-se os rolos onde estava, por exemplo, a bela sequência do passeio do casal de namorados, subentendido todo o acontecido à jovem pelo capinzal que deitava batido pelo vento, pela violência do mar invadindo uma gruta, por um chapéu de homem em cima de uma sobrinha de moça e pelo corte para a casa, com o gato preto fazendo tombar o salto do sapato em cima da estatueta de mulher que se partia. E a velha mãe benzendo-se e olhando aflita para o relógio. O salto do sapato, no caso havia sido, quando da sua quebra, o elemento que motivara o conhecimento do casal. Todo assim era Barro Humano, e não mais existe...

Onde encontrar Braza Dormida, com a seqüência do gigante Pedro Fantol esbofeteando o pequenino Maximo Serrano e a câmera, colocada em lugar do último, caindo ao chão para captar os fotogramas e os efeitos mais estranhos? Onde encontrar Sangue Mineiro, derradeiro trabalho do que poderemos chamar o "ciclo de Cataguases"? impossível revê-los (a não ser que existam cópias por aí afora...) desde que os negativos perderam-se num incêndio provocado por combustão expontanea.

Qual o destino de O Meu Primeiro Amor, filme que poderia ser a revelação de um diretor lírico como Borzage, não houvessem as péssimas condições da atividade querida levado Rui Galvão por caminhos diferentes? Se o revíssemos muitos ficariam admirados com o golpe de direção situando a moça entre os dois amigos que a amavam, levada pelo balanço para um e para outro, exatamente como nos planos e contra-planos de The Good Earth que pretendiam mostrar a pérola como elemento de separação dos dois interpretes. Acontece que na produção de Hollywood o efeito foi encontrado, o mesmo não acontecendo muitos anos antes, nas cenas maniveladas pelo veterano Manoel Ribeiro.

Imagine-se, toda essa ânsia criadora analizada agora com respeito e carinho...

Será possível ainda existir, pelo menos em trechos esparsos, a Sinfonia de São Paulo, cuja importância cresceria quando nos preparamos para os festejos do IV Centenário? Seria ao vivo o São Paulo de 1928, tomado em longa metragem, com a multidão pelas ruas, tão diferentes plasticamente, mas tocadas pela mesma sempre febricitante paulistanidade! Onde os vários Guaranis, os do rio e os de São Paulo? Onde a Escrava Isaura, apresentando Marques Filho, um diretor que muito prometia?

Onde o Paulo e Virgínia e O Vale dos Martírios, para cuja conclusão Almeida Flemming tivera que vender os próprios móveis? Que é feito de Fragmentos da Vida, de José Medina, e dos trabalhos de Adalberto Fagundes, um homem que andou com um barracão adaptado em estúdio lá pelos lados da Barra Funda e que deixou escritos sobre o cinema, ainda atualissimos pelos conhecimentos demonstrados...

O mau trabalho de laboratório, a guarda em ambientes não refrigerados, a inexistência de um serviço de conservação e a incompreensão vêm acabando com relíquias preciosas. O fogo vai levando todos os cofres (é justo chamá-los assim?...) de roldão: os da Atlântida, os da Cinédia, do INCE, do Medeiros (desta vez, no meio, toda uma coleção de Max Linder...), da Ita, uma velha empreza do pioneiro João Stamato. E eu nunca vi tanto desinteresse dos pais pelos filhos, nunca escutei tantos absurdos como os de cinematografistas que não viam em como se podia querer os seus antigos trabalhos, que já haviam sido exibidos, cumprido uma missão...

O Cinema Brasileiro tem que crescer também desse estado de espírito desconcertante. Uma nova consciência desperta com a geração atual e é ela justamente que pretende provar que muita cousa foi já feita de bom, de ótimo mesmo no Brasil, e isso com filmes que ao seu tempo, muitos deles, não tiveram siquér exibições nas grandes cidades. Que se acabe com a caturrice e estejamos certos de que muita preciosidade vái surgir do fundo das malas, dos porões e dos sótãos, das gavetas, das cabines dos velhos cinemas do interior e dos desvãos dos laboratórios, tudo miraculosamente preservado sem que saiba como. Porque se de muito existe a certeza de não mais podermos ter esperança, alguma causa surgirá, como este Exemplo Regenerador, de 1919, encontrado graças ao movimento desencadeado pelo Caio e Trigueirinho, dois cavalheiros que no caminho que vão acabam também num Museu de Cinema Brasileiro.

Enfim, esperemos que no ano próximo possam o Museu e o Centro organisar não a 11 a Mostra, mas lançar as báses do que venha a ser uma Filmoteca Brasileira.

1a Mostra Retrospectiva do Cinema Brasileiro

Museu de Arte Moderna de São Paulo

Novembro / Dezembro de 1952