À
procura de uma fórmula para exibir

Pobre do entrevistador que vai cheio de perguntas
acerca de um trabalho sobre o qual ele pensa deter todas as informações?
"Há alguma preocupação em manter o acervo próprio
da cinemateca sendo exibido? Há relação entre o espaço
dado ao cinema nacional e o estrangeiro? Entre os filmes do passado e
os mais recentes?". A realidade é muito mais cruel e sem tantas
sutilezas: "Olha, só a sala da cinemateca permanecer aberta
já é uma grande vitória", conta Carmen Teixeira,
há mais de dez anos trabalhando na Cinemateca Brasileira. A declaração
parece bombástica, mas é só olharmos para a Cinemateca
do MAM, no Rio, que perceberemos que a realidade das instituições
é realmente muito dura. Sem patrocínio ou injeção
fixa de renda desde 1998 (ao contrário da Cinemateca Brasileira,
o MAM é uma instituição privada), a programação
da sala até o ano passado foi bissexta, e em 2001 a deterioração
dos materiais (projetores em constante defeito, reformas para colocar
o sistema Dolby Digital) obrigou a Cinemateca a uma parada que deve durar
até março de 2002.
Dificuldades à parte, a questão
da exibição numa cinemateca passa por uma redefinição
que é crucial hoje. Porque, se hoje elas se vêem encurraladas
pelas práticas mercantilistas da economia hoje, ao mesmo tempo
ainda existe uma procura da parte do público por uma educação
cinematográfica à antiga, com exibição de
clássicos e filmes do cinema brasileiro. "A exibição
na cinemateca tem uma função, e o fato de ter parado de
exibir cria um vácuo que os outros acabam ocupando", diz Gilberto
Santeiro, diretor da Cinemateca do MAM. A verdade é que certos
segmentos ainda podem encontrar escoamento nos circuitos alternativos
de exibição (leia-se as salas do Grupo Estação),
mas há um tipo de exibição que é exclusiva
das cinematecas. Qual? O acervo próprio.
E é aí que entra a questão
especificamente de preservação nisso tudo. Porque o circuito
de restauração dos filmes não encontra seu fim simplesmente
quando o filme ganha novamente uma cópia nova, pronta para ser
exibida nos cinemas. Sem a fase final, a exibição, são
obras recuperadas fisicamente mas que permanecerão invisíveis
para a memória coletiva, e um filme apto a restabelecer sua notoriedade
ficará preso nas salas refrigeradas das cinematecas.
Quando se fala em preservação,
almeja-se acima de tudo a manutenção e a recuperação
da memória. Difícil caminho, maior do que o da preservação
material: por mais que seja árduo restaurar os filmes, há
procedimentos a seguir que garantirão algum sucesso no momento
final. Quando o filme chega às telas, no entanto, nada garantirá
que o termo final do processo, a visão do público, será
atingido. Em 1997, uma programação de filmes brasileiros
restaurados pela Cinemateca Brasileira deveria ter sido exibida no Museu
da República. As cópias estavam lá, entre Triste
Trópico de Arthur Omar e O Saci, de Rodolfo Nanni, e
os projetores estavam em bom estado, o projecionista não faltou.
Faltou o quê? O público. Em todas as sessões de meio-de-semana,
às 21h, o borderô registrou zero pagantes. Não houve
sessões. Ao contrário de filmes como O Ébrio,
de Gilda de Abreu, exibido meses depois, que não obteve um sucesso
estrondoso mas conseguiu permanecer por algumas semanas no circuito de
exibição comercial.
Como a cinemateca pode atuar nesse sentido?
Sem verbas para realizar grandes projetos de lançamentos e sem
políticas que incentivem a exploração das obras (e
sua proliferação) em outros formatos como o VHS e o DVD,
é impossível hoje no Brasil considerar a preservação
e a restauração como negócios rentáveis, à
maneira do que vem sendo feito com os filmes de Hitchcock (Janela Indiscreta,
Intriga Internacional, Um Corpo Que Cai) e Orson Welles
(A Marca da Maldade). A única experiência semelhante
ocorrida no Brasil é a recente cópia de Dona Flor e Seus
Dois Maridos, recorde de público do cinema brasileiro no lançamento
em 1976, mas que na reexibição foi um retumbante fracasso.
Sem chance de recorrer a esquemas maiores de divulgação,
cabe às cinematecas fazer pacotes dos filmes, imprimir catálogos
onde constam as informações sobre os filmes, e exibi-los
nas próprias cinematecas.
Mas se o poder da cinemateca é muito
pequeno no que diz respeito às chamadas "cópias novas",
sua força é fundamental para a divulgação
de filmes que ainda estão em bom estado de exibição.
Sem um maior interesse comercial, esses filmes só têm condições
práticas de serem exibidos e vistos pelo público nas cinematecas.
Nenhum cinema se interessaria por exibir hoje Mulher de Otávio
Gabus Mendes (1930) ou As Pontes de Madison de Clint Eastwood.
Onde o espectador poderia assistir a pérolas de procedência
tão disparatada como essas a não ser numa cinemateca? Por
isso a necessidade de uma fórmula de exibição, de
um conhecimento forte de seu acervo e acima de tudo uma compreensão
forte de história do cinema desde os primórdios até
os últimos filmes em cartaz. Após o conhecimento, a aplicação
da fórmula, o que implica escolhas.
O que exibir? Filmes nacionais obscuros,
sucessos internacionais recentes, cinema de autor, blockbusters, exclusivamente
filmes nacionais, cinematografias diversas? Hoje em dia a fórmula
é mais radical do que essa: exibir o que for possível. "O
problema de exibir é os filmes existirem. Trabalhando sem grande
orçamento, não podemos recorrer aos filmes de distribuidoras,
que são pagos, nem importar, então dependemos unicamente
do nosso acervo ou dos esquemas de consulados", explica Gilberto
Santeiro. Carmen Teixeira também exalta a participação
dos consulados, fundamentais na divulgação dos cinemas de
países como a França ou a Alemanha. Acervos dos consulados
+ Acervo próprio, tal era a fórmula das duas cinematecas
há cinco anos.
Hoje, por dois motivos diferentes, a coisa
mudou. Se a Cinemateca do MAM enfrenta problemas financeiros, a Sala Cinemateca
passa por problemas de identidade. Por três anos sob o comando de
Leon Cakoff, a sala transformou-se numa espécie de "última
chance" do circuito alternativo, passando a abrigar os filmes recentes
que estão terminando seu circuito de exploração comercial.
Se o status da Sala Cinemateca se mantinha (afinal, os filmes ainda são
"de arte"), entretanto o conehcimento e o uso do acervo era
mínimo, e ficava restrito a eventuais mostras ou a exibição
de dois filmes por semana (sempre um clássico e um nacional nos
dois primeiros anos). Se a fórmula Cakoff ao menos deixava a Sala
aberta, não era apropriada ao funcionamento de uma cinemateca:
era apenas mais uma sala de circuito comercial, porventura localizada
numa cinemateca.
Hoje, os dois projetos em andamento nas duas
cinematecas vêm privilegiar aquilo que é específico
delas: o acervo. Consciência de um papel que só a cinemateca
pode oferecer: o de constantemente recuperar a memória coletiva
e de servir como uma grande universidade de cinema, onde os professores
são os próprios filmes. Seja qual for a fórmula de
exibição de uma cinemateca, ela só tem a ganhar com
a diversidade de propostas. Quem freqüentava a Cinemateca do MAM
em meados da década de 90 ouvia falar das brigas homéricas
que Cosme Alves Neto, fiel defensor da exibição do cinema
brasileiro na cinemateca, tinha com Susana Schild, preocupada em exibir
ciclos de grandes autores internacionais como Rohmer e Bergman. Os dois
discutiam, mas a cada mês a programação vinha recheada
de pérolas e raridades nascidas do conflito dos dois. Isso constituía
uma fórmula? No fundo, pouco importa: quem ganhava com essa indecisão
constitutiva era o freqüentador da sala, que por um breve período
pôde ver Zé do Caixão e Jean Renoir, Claude Chabrol
e Cinédia anos 30, Cinema Novo e Ingmar Bergman, indeo de clássicos
como Arsenal e Crepúsculo dos Deuses até novidades
como Pulp Fiction e Traídos Pelo Desejo. Quem viu
lembra até hoje. E como lembra...
Ruy Gardnier
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