Diagnóstico do cinema brasileiro

Em meados de 2000 a Secretaria do Audiovisual, órgão do Ministério da Cultura, convocou a Brasília diversas instituições, empresas e entidades para discutir a questão da preservação de filmes no Brasil. Estavam chegando inúmeros pedidos para liberação de recursos a serem aplicados na restauração deste ou daquele filme, desta ou daquela obra completa de determinado cineasta. A Secretaria queria uma avaliação da situação e sugestões para sua pronta resolução. O relato ouvido das diversas partes indicou um problema complexo, com diferentes facetas e graus de manifestação e sobretudo com perspectivas de solução apenas a médio e longo prazos. O órgão então encomendou um estudo às diferentes partes, com propostas de implantação para o ano seguinte. Coube à Cinemateca Brasileira a formulação de uma proposta que revelasse o tamanho, natureza e problemas do cinema brasileiro ainda existente. Optou-se por um levantamento inicial junto aos dois maiores acervos de filmes do país, o da própria Cinemateca Brasileira e o da Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Com o repasse de verba de R$ 1.000.000,00, destinados a catalogação, melhora das condições de guarda e duplicação emergencial de títulos em vias de desaparecimento, a Secretaria do Audiovisual lançou o projeto Diagnóstico do Cinema Brasileiro, cuja execução ficou a cargo da Cinemateca Brasileira.

De imediato a Cinemateca Brasileira assinou um convênio com o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, repassando parte dos recursos e estabelecendo um cronograma de trabalho visando o inventário sumário do acervo e a análise preliminar do estado de conservação dos materiais fílmicos. Na prática a tarefa transformou-se em um gigantesco raio-x da coleção da Cinemateca do MAM, com inúmeros reflexos sobre a forma de guarda, a identificação dos materiais, sua revisão e a formação de um banco de dados informatizado. O segundo maior acervo de filmes brasileiros do país ganhava pela primeira vez uma visão completa de sua natureza, mazelas e necessidades. Pela primeira vez iria ocorrer a abertura sistemática de todas a latas contendo materiais nacionais ou ligados ao Brasil, a realização de uma higienização simples, a descrição técnica e de conteúdo, a determinação do estágio de deterioração das películas, a revisão física dos rolos e a troca parcial das velhas latas enferrujadas por novos estojos de plástico (polietileno rígido injetado). Com isso, pela primeira vez haveria uma radiografia do acervo, seu grau de comprometimento e uma definição quanto ao que estava precisando de restauração urgente.

A tarefa prática de promover um tal exame coube a uma equipe de 12 pessoas coordenada pelo Curador da Cinemateca, Gilberto Santeiro. Foram selecionados 8 estagiários, dois supervisores e dois revisores de filmes. Os estagiários vinham dos cursos de cinema da Universidade Federal Fluminense (cinco) e da Estácio de Sá (um), do curso de pós-graduação em Comunicação da UFF (um) e da Escola de Estilismo do Senac (um). Os supervisores tinham passagem anterior pela Cinemateca, garantindo um mínimo de experiência em relação ao acervo, e os revisores tinham larga experiência na profissão, embora sem contato anterior com as rotinas diferenciadas de um arquivo de filmes. Toda a equipe recebeu treinamento durante uma semana em março de 2001, ministrado por técnicos da Cinemateca Brasileira. Em seguida começou o trabalho de fato, que consistia no exame uma a uma das latas contendo filmes brasileiros, no preenchimento de um boletim descritivo com dados sobre a obra, sua natureza física e seu estado de conservação, na revisão física de uma parte dos filmes, na troca parcial de invólucros de guarda e guarda definitiva. Dependendo do que o exame indicasse, certas operações eram deslanchadas, como a retirada de plásticos, papéis e outros itens colocados nas latas, como a segregação dos materiais avinagrados para evitar a contaminação geral do acervo e como o afrouxamento dos rolos para permitir uma maior aeração e durabilidade dos materiais.

Os ganhos de qualidade neste processo foram evidentes. Além da experiência adquirida pela equipe, cujo preparo para a tarefa baseava-se na passagem por um curso introdutório de preservação de filmes, oferecido pela Universidade Federal Fluminense, eliminou-se em grande parte a presença de latas enferrujadas, retirou-se fatores diversos de agressão aos filmes dentro das latas, efetuou-se uma limpeza superficial, principalmente poeira, promoveu-se a revisão e realocou-se as matrizes (negativas e positivas) em novos locais de guarda, obedecendo-se a um princípio de separação entre materiais de preservação e de difusão e entre estes e materiais comprometidos pela deterioração acelerada. Os últimos, em função da grande liberação de gases tóxicos, foram isolados para determinação da possibilidade de salvamento ou não e para submissão a um processo de extração de gases do ambiente por meio de exaustão. Deve-se ressaltar em particular a eliminação progressiva da presença de ferrugem, elemento que intensifica o processo de acidificação do microambiente da lata e que tem enorme peso no cotidiano de um arquivo instalado à beira do Oceano Atlântico. As excessivas umidade e salinização são particularmente difíceis de controlar nessas condições e impõem o estojo plástico como solução (as latas neste ambiente enferrujam completamente em menos de 10 anos).

Transcorridos nove meses desde o início dos trabalhos foram examinados mais de 34 mil rolos, cobrindo cerca de 70% do acervo alvo do projeto. Praticamente todos os títulos ficcionais já foram tratados e dois dos maiores lotes de cinejornais já passaram pelo crivo dos estagiários. O retrato do acervo obtido até agora é bastante diferenciado e algo dramático. Embora cerca de 50% dos materiais tenham sido considerados em bom estado de conservação e cerca de 40% tenham apresentado problemas de menor gravidade como sujeira, encolhimento e abaulamento superficiais, presença moderada de ferrugem e riscos e manchas leves, os restantes cerca de 10% revelam uma alta incidência de fungos, desplatificação e hidrólise, chegando em alguns casos à perda da emulsão tanto na imagem quanto no som. Estes graves problemas emanam do processo de deterioração das películas de acetato, conhecido como síndrome do vinagre. A percentagem encontrada também é bastante alta, frente ao limite de tolerância estabelecido internacionalmente que é de 3% do volume total do acervo. Isso significa que o gerenciamento do arquivo deverá levar em conta daqui por diante a criação de uma unidade de climatização visando o longo prazo e deverá também segregar radicalmente os materiais já completamente contaminados para que o restante do acervo não seja afetado.

Em termos mais detidos, verificou-se que os materiais ameaçados situavam-se em lotes mais antigos como Atlântida, Herbert Richers e Isaac Rozemberg, todos com histórico pregresso de má conservação por parte dos produtores. Além disso, em geral o material ficcional apresentou-se quase sempre em melhor estado do que os conjuntos documentais. Quase todos os materiais completamente avinagrados são cinejornais dos lotes citados. As lacunas nesse setor serão enormes e insolúveis, dada à escassez de materiais dos títulos produzidos nesse campo. Por outro lado, este quadro foi agravado pela descoberta de um artifício bastante disseminado entre os produtores de cinejornais, que era o de canibalizar números antigos para a confecção de matérias para outros mais novos. A reconstituição das diversas séries encontra-se irremediavelmente comprometida. No campo ficcional o quadro apresenta-se melhor, embora vez por outra surja um título importante em péssimo estado como foram os casos de O Desafio, Arraial do Cabo e Menino de Engenho, todos com sua duplicação ou restauração já encaminhadas. O que impressiona aqui é a existência de poucos materiais de segurança para a maior parte das matrizes originais, o que significa que quando o negativo original começar a deteriorar será preciso dispender muito mais recursos para a reversão do problema, com o risco de comprometimento estético do material, dependendo da gravidade da deterioração. Urge um programa de confecção de matrizes de segurança (masteres e contratipos) para assegurar a correta preservação do conjunto a custo racional e programado.

Não se tem ainda os números finais do projeto, que prosseguirá até junho de 2002, mas algumas constatações importantes podem feitas. A primeira diz respeito ao fato de que a Cinemateca do MAM está passando por uma profunda transformação de suas práticas internas quanto à preservação do seu acervo. Ao final do trabalho conhecerá o tamanho exato de sua coleção, as percentagens do que está bom, mais ou menos e ruim, e a natureza dos problemas a serem enfrentados. Terá instrumentos adequados para planejar o gerenciamento de longo prazo da coleção, capacitando-se para enfrentá-los de maneira adequada e profissional. Poderá, inclusive, dar ao salto qualitativo de guardar seu acervo em parâmetros mais indicados que os atuais, combinando essa tarefa com a duplicação preventiva e sistemática de suas matrizes. Por outro lado, o trabalho atual já representou em si uma melhora acentuada das condições de guarda, seja pela eliminação de fatores nocivos à conservação, seja pela separação do que está bom e do que está comprometido pelo avinagramento. A higienização, a troca de latas por estojos de plástico, o afrouxamento dos rolos, a indicação do grau técnico de conservação dos materiais, a identificação de invólucros e rolos, a feitura de um furo para circulação do ar e saída dos gases, a revisão de materiais em tráfego (saindo e voltando para a cinemateca), a incorporação de técnicas não agressivas de manuseio dos filmes por parte da equipe permanente, a formação de uma base de dados informatizada, a criação de procedimentos internos de salvaguarda dos materiais e a troca constante de informações com produtores e depositantes, são ações mínimas em implantação de um leque bem maior visando o completo controle da preservação do acervo. Os problemas permanecerão, mas não mais ocultos pelo desconhecimento. A revisão periódica é o instrumento que garantirá a continuação desse salto de qualidade.

Hernani Heffner