Alguns
temas a partir dos filmes

Pouco mais de quarenta
filmes vistos: um bom panorama da produção em curta-metragem
nacional (a média bruta gira em torno de 115 por ano). Passemos
direto por uma premiação confusa e equivocada, indo direto
ao que interessa, os filmes. Como sempre, questão de temas. Mais
que os temas que sempre compõem os já tradicionais programas
da mostra, os filmes por si mesmos já delineam temas, pontos de
contato, ressonâncias tanto mais perceptíveis quando se vê
os filmes num curto espaço de tempo. Dessa vez, há de se
parabenizar a organização da Curta Cinema em pelo menos
uma coisa entre outras: o aumento do número de curtas nacional
exibidos, que pulou para quase o triplo: janela maior e necessária
para a produção nacional que aumenta e melhora a olhos vistos.
Sobriedade acompanhá-la com um máximo de afinco. Vamos aos
temas:
PELE NEGRA:
Como nunca, foi a questão por excelência da mostra, criando
polêmicas e levantando discussões. Nada menos do que oito
filmes lidam diretamente com o problema. As soluções são
as mais disparatadas, mas o papel dos negros não: ou são
artistas ou marginais, favelados. Tomemos Palace II de partida:
o diretor de fotografia não deve ter achado que a pele negra era
muito cinegênica, não condizia muito com os padrões
de beleza que os comerciais da O2 estão acostumados a vender. Solução:
besunta-se a pele dos meninos em óleo. Resultado: mistificação
e exploração da pobreza, falta absoluta de critérios
estéticos e artísticos para dar conta daquele mundo (favela,
tráfico, molecagem), numa mise-en-scène completamente
deslocada, sem nada dar a seus personagens, ao contrário convertendo-os
à violentadora narrativa frenética desse cinema pretensamente
"estético" que na verdade só consegue ser virtuoso.
Palace II existirá como o filme mais perigoso e nojento
de toda a mostra. É o Bicho e Gosto Que Me Enrosco
tocam na mesma questão: malandragem. Os dois, de forma diferente,
apresentam a mesma mistificação desse universo. Com resultados
mais infelizes, É o Bicho é povoado de overacting
no vocabulário dos jovens traficantes e só existe realmente
quando filma um branco: Joel Barcelos, surpreendente e primoroso em seu
papel (na verdade, sua aparição é tão boa
que sentimos até dó pelo fato de o cinema brasileiro nunca
tê-lo alçado à grandeza que esse ator verdadeiramente
tem). Já Gosto... é um filme mais maravilhado pela
malandragem de anos atrás, como já confirmam o título
e os sambas que fazem a trilha sonora do filme. Só que o filme
fica por aí, e não apresenta nada além de um maravilhamento
pelos códigos da boemia à moda antiga. Ficção?
Nenhuma. Pixaim e Dadá são duas tentativas
de mergulho no universo da cultura negra, cada um a seu modo. Pixaim
analisa a questão negra pelo cabelo e pela afirmação
do black power nos anos 70. As intenções e o argumento
são até muito bons, mas o roteiro e conseqüentemente
a realização aparecem truncados, pouco fluentes, e as atuações
muito teatrais não colaboram muito. Mas é um filme que existe.
Ao contrário de Dadá, que é um filme que fica
sempre à beira do caminho. Projeto de ficção abortado
por completa inadequação que dá origem a um documentário
sobre as vidas e esperanças dos atores que moram no morro do Vidigal,
Dadá tem momentos muito fortes mas não é um
filme bom. Que o diretor Eduardo Vaisman tenha mudado seu projeto de filme
no meio do caminho, genial, fez um filme melhor do que seria, mas o percurso
de seu pensamento não é de forma alguma visto na tela. Resta
sua fala final: "Eu não acho nada, não". Uma pena,
pois o filme permanecerá como aquele que mais podia render... Seu
Nenê, de Carlos Cortez, degue a trilha do CPC de resgatar os
grandes nomes da música do passado. Aqui, falamos de Seu Nenê
da Vila Matilde, criador da primeira escola de samba em São Paulo.
O filme o trata com reverência, e é como um senhor, quase
como um velho escravo resignado que ele aparece à tela. De qualquer
forma, como alguém "digno de respeito", o que faz do
filme quase um obituário, um registro para a posteridade. Muito
mais felizes são Coruja e Meu Compadre Zé Ketti:
os dois têm com a cultura popular, com o samba e com seu mundo uma
outra relação, mais viva. Tanto Bezerra da Silva quanto
os bambas do filme de Nélson Pereira dos Santos conseguem o que
Seu Nenê nem tenta: tornam-se íntimos do espectador,
não são "respeitáveis" nem precisam sê-lo:
eles se impõem por sua força própria. Os dois filmes
restarão como as únicas tentativas cinematográficas
bem-sucedidas de compreensão da pele negra na safra 2001.
ESPERTOS
Cresce o número de filmes "espertinhos", "bem sacados"
no panorama do curta brasileiro. Maravilhados por Tarantino e pelo multiplot
(filme em que inúmeras tramas paralelas aparecem à tela.
Exemplos: Short Cuts, Magnólia), são geralmente
filmes muito bem construídos do ponto de vista da narrativa, mas
sempre vazios de idéias quando chega a hora de filmá-los,
e acabam chovendo no molhado da citação vazia. Ao menos
um tarantino-lover bem sucedido: Renê Sampaio com seu Sinistro.
A narrativa torna-se um quebra-cabeça, a força do acaso
é dominante, o roteiro burilado criam uma história que tem
alguma força, mas não deixam de fazer apreensivo o espectador:
será que Tarantino, um gênio da citação que
cruza Godard com kung-fu, pode ter herdeiros que só repitam o próprio
Tarantino? Mas se Sinistro ao menos vai bem, Baseado em Fatos
Reais deixa sempre a coisa fácil demais para o espectador:
é um pequeno breviário de todas as obsessões do diretor
de Cães de Aluguel: conversas esdrúxulas sobre sexo,
overdose, carros. Há algo de muito errado quando Tarantino é
citado como se se tratasse da Bíblia... Em Dias e Do
Amor, trata-se quase da mesma coisa: filmes inteligentes no roteiro
mas que no plano da realização podem revelar-se de inócuos
a abjetos. A cidade grande vista como um caos num multiplotzinho (Dias)
que mostra quão desumana e dominada pela intolerância e pela
incomunicabilidade, no entanto, é pinto perto de um filme como
Do Amor, onde um único olhar apaixonado é capaz de
evitar um crime e redimir o mundo inteiro. Haja simancol. Falando em moderninhos,
há de se lembrar de Gustavo Spolidoro, cujo Final parece
ser o primeiro filme mais pessoal e longe do estigma "espertinho"
que povoava seus dois filmes anteriores (Velinhas e Outros).
Talvez a ausência de uma citação de Woody Allen tenha
sido o diferencial... Dos filmes-de-um-dispositivo-só, o melhor
fica mesmo com o filme O Cego Estrangeiro, filme de tela preta
e uma língua inexistente misturando inglês, italiano e algumas
outras para fazer uma homenagem ao amigo eterno do freqüentador de
cinema no Brasil: a legenda. É ela que funciona como único
meio de contato entre o filme e o espectador, criando uma situação
interessante e certamente inédita.
POÉTICOS
O curta sempre costuma abrigar aqueles filmes com intenção
mais poética, mais profundos, aquele sentimento da existência,
etc. Mas esse ano não teve nenhum O Velho, O Mar e o Lago.
Houve filmes "poetiquinhos", caso do brasiliense Instante
e do bobo Do Tempo em Que Eu Comia Pipoca, exemplos clássicos
e batidos do cinema dito sério, com direito a metáforas
e muitos, mas muitos sonhos. A protagonista de Macabéia
sonha também, e o filme até consegue alguns momentos felizes
de cotidiano estéril, mas tem um final à prova de qualquer
julgamento favorável. Mais bem sucedidos são três
filmes: Namorada Tristeza, A Canga e Reminiscência,
que apesar de não serem especialmente inventivos, têm uma
força visual e estilística muito grande. O Tempo dos
Objetos é também um filme de metáfora,onde as
peças reencontradas de um quebra-cabeças restituem a vida
pregressa de um casal de idosos, mas consegue escapar dessa idéia
e ser mais sutil que seus filmes-colegas. Talvez o excesso de tanta poesia
se compense pela obra do artista plástico Petrúcio Felker,
tema do novo filme de Allan Sieber, que em pleno Museu de Arte Moderna
joga cães raivosos para cima de uma platéia de afetados.
Onde Andará Petrúcio Felker? é engraçado,
bobo e tosco quanto os anteriores de Sieber, mas vale a menção
pela anti-poesia explícita.
PODER DAS MULHERES
De três protagonistas femininas saíram três
dos melhores filmes da mostra. Duas têm nome: Françoise
e Lilith. Uma é só "ela": Patrícia
Selonk em Um Sol Alaranjado. Françoise interage com um passageiro
numa estação rodoviária, "ela" interage
com seu pai numa situação extrema, Lilith não
interage: age por sobre si mesma. Françoise encanta tanto
pelo talento de atuação de Débora Falabella e Fernando
Ernesto quanto pelo roteiro do filme, que só nos vai entregando
pouco a pouco a verdadeira condição de seus personagens.
Prolongamento semelhante tem Um Sol Alaranjado, só que mais
do ponto de vista da direção: embora o roteiro se construa
elegantemente e aos poucos, não existe propriamente psicologia
no filme, e as reações dos personagens são antes
de tudo físicas. Tudo se resolve pela atuação dos
protagnoistas. Já Lilith passa como um tufão: é
ao mesmo tempo a mulher como animal, como sexo, como inocência e
como loucura. Em uma palavra, como poder de instauração.
O que mais conta no filme é seu extremo rigor e poder de concisão,
mas a concisão de uma bruxa, de um monstro noturno, como a Lilith
da fábula.
AINDA... temos
que mencionar Negócio Fechado, filme correto e doce sobre
a negociação de gado entre dois fazendeiros mineiros. Destaque
para a elegância formal do diretor Rodrigo Costa e acima de tudo
para a atuação de Reinaldo Gonzaga. A nota triste vai para
Os Donos da Morte, filme pretensamente sério que, respaldado
em tema nobre o assassinato do jornalista Vladimir Herzog pela
ditadura militar consegue tornar a vida de um homem honrado num
melodrama lacrimejante e cheio dos clichês do cinema "político"
de um Costa Gavras. Consegue ser apenas pornográfico. Tanto mais
vergonhoso quanto premiado e mal-realizado. Mas isso já é
outra história...
(Resgate Cultural
O Filme, Palíndromo e A Visita já
foram comentados em outras ocasiões, e não seria ocasião
aqui de repetir os comentários. Aos interessados remeter-se a nossas
edições 28 [Festival do Recife] e 29 [Festival Universitário]
no arquivo da revista)
Ruy Gardnier
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