Cinema infinito: Garrincha,
Vanderci e o Cinema


São corredores. Cinema inacabado a meu olhar. Tudo de ali me aponta para o lugar em que ainda não vejo. Silêncio. Fragmentos de cinema. Vidas Secas, Hidroelétricas, Pornochanchadas... Jogos de futebol. Milhares de imagens congeladas em profusão.

Outro dia, na moviola da Cinemateca do MAM-RJ, um funcionário observava trechos de imagens de um jogo de futebol. Maracanã lotado! Era um Botafogo x Flamengo do final da década de 60 – queríamos encontrar Garrincha. O filme, um dos muitos do Acervo da Atlântida Cinematográfica, mostrava imagens da torcida, do jogo e os bastidores. A imagem seria usada num documentário sobre o astro brasileiro – mas nada de Garrincha aparecer em algum lance genial. Olhos atentos esperando por Garrincha... Nada. De repente, um pequeno plano apareceu:

Um cinegrafista, levando no ombro uma 16mm, fazia uma pequena panorâmica por trás dos outros cinegrafistas: era uma dezena de homens, cada qual girando a manivela de sua câmera. De repente, um silêncio caiu sobre a sala. Vanderci, o funcionário, parou o filme na moviola. Engasgou um pouco e disse: "Sou eu..." Não entendemos: "O quê?..." Ele repetiu: "Sou eu, ali, naquela câmera..."

De costas, com o rosto visto um pouco de lado, Vanderci assistia a si mesmo ali, filmando o mesmo Botafogo x Flamengo onde Garrincha escondia algum de seus lances geniais...Vanderci ainda titubeou um pouco: "Sou eu mesmo?"... "É sim!" dissemos "O nariz não engana...". Vanderci ficou um pouco quieto. Voltou a imagem, viu mais umas quatro ou cinco vezes: ali estava ele, descoberto na imagem de 35 anos atrás, com uma pequena 16mm, registrando o jogo e, sem perceber, sendo registrado... Vanderci finalmente aceitou: "Sou eu mesmo..." Acionou novamente a moviola, o plano continuava mostrando outros cinegrafistas, Vanderci sai pelo canto da imagem – corta para o olhar de um torcedor...

Saímos da sala da moviola com a impressão de termos visto um fantasma. Sentei-me novamente em minha mesa.

* * *

Meu trabalho há quase 1 ano é registrar em centenas de boletins o estado e o material encontrado em milhares de latas de filme... Um trabalho repetitivo, silencioso, estático. Mas Vanderci, sem querer, parecia ter me contado o segredo: Em meio a todos aqueles negativos de imagem e de som, não era apenas Garrincha que se escondia. Ele mesmo, o Vanderci da sala ao lado, estava guardado ali, escondido, nas latas enferrujadas de todo dia.

Quantos "sou eu ali" não estariam passando pelas minhas mãos a cada dia? Arquivos de 30, 40, 50 anos atrás. Não sei quantas vezes Vanderci passou por isso em todos os seus anos de trabalho na Cinemateca, mas tive a sensação de que, mesmo que não a primeira, aquela ali tinha sido única. Única como todos aquelas imagens começaram a parecer...

Aquelas montanhas de lata de metal, empilhadas, pareciam tão pequenas quanto um único fotograma. Um único fotograma vasto.

Nenhum olhar cabendo todo no Cinema. Nenhum Cinema cabendo todo nos teus olhos. A cada lata aberta, cada pequeno fragmento de imagem, cada meio fotograma perdido. Cada sombra esmaecida de um lugar.

Ver a imagem passada não era mais relembrar o passado. Eu não estava mais lidando com o passado, mas com o Presente. Com o infinito das imagens presentes. Nada havia passado. Tudo estava ali, nas minhas mãos.

É o Presente que se perde quando um fotograma é destruído, era o momento de agora que ficava esmaecido quando a imagem de um filme se perdia. O Passado ainda estava lá, inteiro, vivo – presente em si mesmo. Não se trata de salvar o passado. Não se trata de cuidar da lembrança de ontem. Mas da memória de agora. Do imediato instante em que a imagem vem aos olhos. É o Presente que se mingua quando se perdem as imagens do cinema. É do Presente que se trata falar aqui. E o que vejo, por vezes, me assusta...

São pilhas de rolos enferrujados, de um cheiro de vinagre que entranha na roupa, de poeira invadindo os pulmões. São milhares de pequenos fotogramas amassados, sujos, esmaecidos...perdidos? Alguns rolos têm nome e tem data, outros trazem imagens sem dono...pedaços de filmes, de sons. O fragmento de som de um filme perdido: como a voz de uma imagem distante... Como um imenso Palácio se partindo.

Os funcionários da Cinemateca são como pequenos guardiões...Na cabeça de cada um, um pedaço da memória de cada filme. São eles que lutal por saber onde está cada rolo de imagem e som, e fazer com que imagens esquecidas venham à tona de nosso cinema. São eles que lutam contra o tempo e os obstáculos para manter grande parte de nossa memória imagética viva. No meio daquele labirinto de latas são eles os fios de memória que nos ligam aos fragmentos vivos do Cinema Brasileiro.

Tem dias em que bate uma tristeza. E a sensação é de que nenhum esforço vale nada... De que eu talvez seja a última pessoa na face da Terra a ver aquela imagem, a enxergar aquelas cores. A cada número que coloco no boletim tenho a impressão de um atestado de óbito... Em outros dias tenho a sensação de ter nas mãos um tesouro inestimável e a salvo. Um pedaço do Cinema guardado em nossas mãos.

Sejam os filmes consagrados, sejam os nunca antes vistos... Filmes sem nome, sem diretor... Trechos de documentos, trechos de casamentos... Cada imagem, cada pedaço de imagem...

Tenho a impressão de estar lembrando de mim. Vanderci, sem querer, me mostrou que eu não tinha nas mãos objetos do Passado. Mas os próprios fragmentos inéditos de um olhar de Agora.

O olhar da imagem nunca vista... Sou eu, aqui no Presente, que corro risco de me esquecer. É o Presente, esse sim, que perde um olhar a cada filme desaparecido, a cada imagem esquecida. E fica menor. Mais pobre. E mais ausente.

* * *

Cinema Infinito. Memória de mim. Ridículo o país que pensa construir seu Cinema sobre os destroços esquecidos de si mesmo... Ridículo o cineasta ignorante que se esquece de si mesmo ao esquecer de seu Cinema. Eterna amnésia em que vivemos!... Memória não é resgate – memória é presença viva! Cinema é sempre de hoje! De agora! País que não se enxerga – vergonha de si mesmo! Futuro? Ausência de nós mesmos?! Perder o Brasil de si mesmo – vaga lembrança... Que os fantasmas do futuro não terminem de enterrar nossos olhos! Porque não é o Cinema Brasileiro que se esconde lá no fundo, na moviola de Vanderci, ou no lance genial de Garrincha... É nosso próprio olhar, nossos olhos, que se enferrujam, apodrecem e se perdem... a cada fotograma destruído!

Enquanto o trabalho continua e somos tratados como sobras, como figurantes. É urgente uma reformulação dentro da Cinemateca e dos acervos brasileiros. É urgente que se salve tantos anos de trabalho! Que o Cinema no Rio de Janeiro, e agora falo diretamente aos representantes Cariocas, encontre finalmente um Lar que o respeite e o cultive com o cuidado, o carinho e as condições que o Cinema merece. De outro modo:

Feliz caminhada no escuro...para todos aqueles que não se enxergam!

 Felipe Bragança