Restauração
física de filmes no Brasil: entrevista com Chico Moreira
F: Como você
chegou até a Labocine?
Quem me chamou aqui
foi o Ivan Cardoso, já que era amigo do dono do laboratório.
Um dia eu fui chamado aqui para ver se montava um espaço para restaurar
filmes...eu, na verdade, estava meio descrente disso daí, porque
passei 20 anos na Cinemateca do MAM e não consegui nada, quis montar
uma unidade de restauração lá mas morri na praia.
Achei que o negócio não ia dar certo... Qual não
foi minha surpresa quando a coisa começou mesmo a crescer e a primeira
coisa que pegamos aqui foi o Aviso aos Navegantes. Por causa da
repercussão começamos a receber muito material. Nessa época
ainda usávamos o protótipo do CTAv. Estamos com 4 longas,
cinejornais e materiais amadores.
H: Qual foi sua formação?
Eu me interessava
por fotografia, não me interessava por cinema. Comecei revelando
fotografias de formatura. Ali foi minha primeira experiência profissional
com fotografia... Depois disso enveredei para a televisão, enfim...aí
eu fiz a UFF. A primeira coisa que eu fiz em cinema foi muito chato, foi
assistência de fotografia de um filme do Sérgio Santeiro
e eu percebi que não me interessava muito por fotografia de cinema,
não...Depois um amigo meu me arrumou um lugar no setor de formação
para rádio e tv da Embrafilme e comecei a gostar da moviola, meu
primeiro trabalho foi como montador. Trabalhei num programa chamado Cinemateca,
e aí eu fazia pesquisa e de vez em quando montagem. Aí eu
conheci o Silvio Tendler, comecei a fazer pesquisa para Os Anos JK
e comecei a entrar em contato com esse mundo e achar interessante.
Comecei a andar muito pela cinemateca do MAM, conheci um cara chamado
Pestana que estava saindo de lá e, como eu já andava por
lá pesquisando, eu quis ficar no lugar dele. E ele aceitou.
F: Qual era o estado
do acervo do MAM na época de sua entrada no Museu?
O MAM tinha sofrido
um incêndio, né? Então a cinemateca se resumia a uma
sala nos fundos, onde havia uma moviola e uma sala 10x10 onde cabia todo
o acervo, misturado. A situação era meio delicada, não
havia condição nenhuma de guarda. A Cinemateca acabou se
destacando somente pela exibição, não havia um programa
bem organizado de preservação. O que aconteceu foi que em
1980 a Embrafilme resolveu financiar as duas cinematecas (Brasileira e
do MAM) e fez a reforma aqui no MAM, que virou o primeiro depósito
de filmes climatizado na cinemateca. Começou então aos poucos
a se arrumar esse material dentro de seu espaço...teve uma época
em que a cinemateca ocupou metade de seu bloco no Museu.
M: Como você
começou a entrar em contato com as técnicas de preservação?
Eu comecei a ler e
estudar...em 1980 eu fui para a Alemanha Oriental, Berlin, visitei outras
cinematecas. Depois passei um ano nos EUA e, nesse meio tempo, fiz alguns
cursos e visitei muitas cinematecas. Minha formação foi
essa: parte de iniciativa própria, parte na Alemanha, parte nos
EUA.
F: Quais as principais
diferenças entre os modelos de cinemateca encontrados na Europa
e o modo como as coisas funcionam aqui no país?
Fora eles terem muito
mais dinheiro...Uma coisa que vi na Alemanha é que eles tinham
um laboratório dentro da cinemateca que funcionava 24h por dia.
Isso fez a minha cabeça: um laboratório só de restauração...
nada além disso, foi o primeiro que eu vi. Era muito engraçado
pois, por ser a Alemanha Oriental, não havia contratos de patente
e eles copiavam tudo: então você entrava na sala de copiagem
e via máquinas imitando as máquinas ocidentais. "Puxa, você
tem mesmo um sistema de importação muito bom..." e o cara
dizia: "Não, isso tudo é trazido da Tchecoslováquia
– a gente compra uma e manda fazer uma igual lá..."
F: Você pensou
em instalar um laboratório como esse na cinemateca do MAM?
C: Ah, isso foi outra
pedreira... Você chega querendo fazer uma coisa de qualidade, guardadas
as devidas proporções... Mas aí entra o diabo de
uma maldição, tenho que falar, que tem naquela cinemateca
que é o problema da exibição. Existem duas escolas,
enfim: uma manda exibir, exibir, exibir...outra manda preservar, preservar,
preservar... não adianta nada guardar o filme e muvucar e não
mostrar mais... Mas também exibir a qualquer preço, a qualquer
custo... é difícil. Eu vi coisas absurdas lá....Como
você exibir a posse do Juscelino em nitrato, o material já
muito comprometido e o filme se desfazendo no projetor...eu vi isso! Isso
em função de um programa para meia dúzia de pessoas.
E a tese do conservador da época era: tem que exibir! Eu pensava,
tá, mas antes tem que preservar, depois exibir. Agora, exibir cópias
únicas é um absurdo! Outra coisa era que o antigo laboratório
Líder fazia em parte esse trabalho de copiagem. Enfim, baseado
no trabalho deles, se dizia que não era preciso um laboratório
no MAM. Minha primeira luta foi essa: tentar convencer de que a cinemateca
tem que ter uma unidade de restauração própria que
não dependa de laboratórios comerciais. Um dos motivos de
minha saída do MAM, foi isso...esbarrei nisso o tempo todo e fui
sabotado de todo o jeito...Agora estou aqui: de certa forma eu vim parar
aqui para fazer isso, devia poder ter feito lá... Houve uma época
em que o acervo do MAM estava melhor do que o acervo de São Paulo,
até em termos de importância o nosso foi mais importante
por um curto período. Mas aí tem aquela coisa: a diretoria,
museu particular, que fez com chegássemos ao estado atual..
H: No seu período
na UCLA, na Alemanha e na França você chegou a aprender técnicas
de restauração?
C: Tanto na Alemanha
quanto na França. Eu me lembro que o material que eu peguei lá
foi a visita do Truman em 1948, um material interessantíssimo,
eles iam doar para cá, mas faltou uma resposta daqui... Era um
material de dez minutos, de uma coleção grande de um monte
de coisa de Brasil. Trabalhei nos fragmentos de uma expedição
de 28, e numa cópia original em nitrato de travellog chamada Cidade
do Rio de Janeiro 1939, esse era genial, colorido tecnicolor
. Enfim, alguns materiais daqui eu consegui trabalhar lá fora,
em Berlim.
H: Sua experiência
é muito singular por você não ter montado um laboratório
de restauração voltado para a restauração
básica, ou seja, você não pega um filme em um estado
perfeito ainda para ser trabalhado em máquinas industriais...você
foi justamente para o oposto disso, o mais difícil, o mais complicado,
por quê?
C: Olha, isso é
por uma coisa que eu nunca entendi que é você restaurar um
material que está bom...Porque existe aí uma certa prostituição
da palavra restauração, eu ouço coisas: "ah, vamos
restaurar a cópia do Dona Flor..." Não foi restaurada
nada, fizeram foi um novo master, muito bem feito por sinal, mas aí
as pessoas começam a usar esse termo restauração
de uma maneira que não é correta. O que eu sempre quis fazer
lá, era fazer o material que realmente está indo embora,
o material encolhido...esse material que é o primeiro a se perder.
Isso é, materiais que tenham ainda uma sobrevida não são
prioritários. Como na época a antiga Líder fazia
isso de forma limitada em suas máquinas comerciais, eu queria montar
outra coisa na Cinemateca do MAM que era uma coisa simplérrima,
que não precisava nem da parte de revelação, era
só a parte seca e você revelaria em qualquer laboratório.
Era uma coisa que daria para ser feito mas, em função do
que eu já falei, muita coisa foi perdida porque não se tomou
essa atitude. A verdade é que, na nossa área, você
tira meia dúzia de pessoas e no resto a ignorância campeia,
ninguém sabe o que é isso. Inclusive a FIAF, Federação
Internacional de Arquivos de Filmes, pagou um mico infernal com isso,
nem falam mais sobre isso, que foi o tal "O nitrato não pode esperar..."
Porque se dizia que o nitrato não ia passar de 1990, sei lá...
Isso é besteira, tem nitrato bom até hoje. Mas se a FIAF
pagou esse mico, imagina aqui no tupiniquim, as pessoas que tem cargo
de direção e que não são do ramo, imagina
o que acontece? É uma ignorância total, você vai falar
com a pessoa e ela: "Não, o nitrato se você olhar pega fogo..."
(risos) Vira uma coisa meio mística entendeu, que vai pegar fogo,
parece um troço amaldiçoado, que pinga sangue, não
cresce mais nada no chão...(risos) É um material muito estável
mas que se chegar a 40 graus pega fogo. Agora, se você deixar seu
arquivo chegar a quarenta graus, o que estiver do lado e não for
nitrato vai se deteriorar também, apesar de não pegar fogo.
(risos) Na verdade essa bobajada fez com que se perdesse muita coisa e,
o que é pior, dentro da cinemateca, com pessoas que supostamente
estariam voltadas para a preservação, isso foi a maior frustração
da minha vida.
M: Fala um pouco então
de sua adaptação aqui, num laboratório comercial,
sobre a adaptação das máquinas...
C: Eu cheguei ao Brasil
em 1989, voltando da UCLA, eu tinha visto uma coisa muito interessante
que era uma máquina que copiava papel, paperprint da Biblioteca
do Congresso, uma coisa simplérrima: eram simplesmente duas tesouras
que avançavam o filme quadro a quadro e em cima ficava uma éclair
que fotografava de cima para baixo. Aí eu falei, veja bem, eu não
inventei nada, mas como eu tinha visto um copiador de imersão total
em que se facilitava a distribuição harmoniosa do solvente
pelo material. Então eu pensei que queria fazer um troço
desse aqui, fui ao MAM e não consegui nada. Aí fui ao CTAv
e o pessoal topou, virou um projeto conjunto e saiu aquela traquitana
que está lá, aquele protótipo. Nessa época
eu conheci um genial mecânico, o Aluísio, conheci o Mauro
que já fazia restauração e o diretor chamado Alexandre.
Nessa época a parceria com o MAM não deu muito certo, e
esse negócio não foi muito adiante, ficamos só nos
testes. Curiosamente agora, essa maquininha foi muito importante no trabalho
com o Aviso aos Navegantes. (pausa) Muito bem, a partir do contato
com a Labocine, chamei esse pessoal de novo. Só que aqui há
uma vantagem que é termos uma oficina mecânica bem equipada
e equipamentos. Nos deram um copiador daqui mesmo e isso foi um outro
desafio: adaptar um equipamento industrial para a finalidade a restauração.
Fomos adaptando e a máquina ficou perfeita. O que é bom
aqui é poder aproveitar a infraestrutura de um laboratório
comercial para os fins da restauração, até porque
começou a ficar lucrativo para eles, eu peço o que quiser,
evidentemente isso é porque está se ganhando receita.
H: Fale um pouco sobre
suas limitações: o que você pode e o que ainda não
pode fazer aqui?
C: Por enquanto fazemos
só preto e branco, na próxima etapa teremos cor. Porque
antes tudo aqui era automatizado, o que estamos criando é um equipamento
de controle manual , quadro a quadro, variando os espectros da luz. Ainda
faltam testes. Começaremos a fazer também um copiador de
16mm. Depois vamos fazer também com 8 mm, super-8 e demais... O
de 16mm já vai sair, os outros ainda demoram um pouco já
que ainda temos uma capacidade limitada de produção. A outra
parte também vai ser a transcrição de som de negativos
óticos com problema, que o caso do Menino de Engenho por
exemplo, é um negativo que não passa mais num sistema de
reprodução normal, então vamos criar uma máquina
muito simples: com uma esponjinha como
de uma janela molhada
para se recuperar o som. Vamos construir esse equipamento aqui.
H: Fale um pouco sobre
a restauração do lado "artístico" da obra?
C: Eu vou dar especificamente
o exemplo mais difícil que foi o do Aviso aos Navegantes.
Nós usamos cópias em 16mm extremamente desgastadas, já
com a fotografia original do filme muito adulterada. Partir de uma material
assim para restaurar e recopiar já vem com uma série de
problemas. Quando fizemos O Ébrio e agora estamos fazendo
o Alô, alô Carnaval, sempre foi muito importante: você
não pode interferir na obra, você tem que ser fiel ao máximo,
não ficar mexendo muito... Você limpar demais, filtrar demais
o filme, na verdade isso não existia – tem gente que quer tirar
tudo e colocar uma coisa totalmente cristalina, mas na época isso
não existia. É preciso tomar muito cuidado com a interferência
e o ideal é não fazer isso sozinho, como no caso do Alô,
Alô Carnaval em que posso trocar figurinhas com o Hernani. Mas
às vezes, como no caso do Aviso aos Navegantes, eu tive
que chutar, já que não havia documentação
nenhuma sobre o filme, nem cartaz. Então teve de haver uma dose
de interferência, mas não por querer chamar atenção
para a restauração. Algumas seqüências eu tive
que remontar, mas somente por que faltavam elementos, chegava a ter mais
som do que imagem... Não se deve interferir, eu tive um problema
do Tudo Azul que foi uma dublagem. O filme foi bancado pelo Centro
de Pesquisadores, existia um pedaço do diálogo que não
existia, estava mutilado. Eu optei por dublar apenas as partes que estavam
faltando e não a cena toda. Houve uma diferença pois não
seria mesmo possível reproduzir a voz do ator. O filme vai sair
com uma versão com uma seqüência dublada e eu discordo
disso. Acho que tinha que ter o negócio remendado mesmo, mas pelo
menos vai existir uma segunda versão de áudio sem a dublagem.
Isso foi o Centro de Pesquisadores que quis. Eu preferia ficar com ele
remendado mas manter a voz do ator do que passar por cima, isso é
só uma das questões. Minha escola é a de interferir
o menos possível, mesmo que o remendo fique visível. É
melhor ficar remendado do que meter um negócio que na verdade é
um corpo estranho ao filme.
H: E o computador
– até que ponto ele pode ajudar?
C: Olha, no último
número da American Cinematography eu estava lendo e vi uma coisa
bem engraçada, tem lá um encarte sobre restauração
e o autor da matéria faz entrevistas com as pessoas e vai falar
sobre a restauração de filmes em Hollywood, num certo momento
ele diz o seguinte: 95% das restaurações feitas nos EUA
ainda são restaurações ótico-fotográficas.
Então, o computador te ajuda muito, para reconstituir certas coisas
mas fazer tipo enfiar o Branca de Neve no computador para tirar
poeirinha, eu não sei. Eu não sou contra computadores mas,
por incrível que pareça, é até mais lento
do que o processo normal. Futuramente vai ser isso, mas por enquanto ainda
o processo ótico pode caminhar junto.
H: Fale um pouco sobre
o respeito ao formato do filme e como isso pode ser feito aqui.
C: Um exemplo clássico
disso é o Alô, Alô Carnaval – vamos fazer duas
matrizes: uma normal com o quadro cheio, e uma outra para se um dia for
passar num cinema como Cinemark, para ter a imagem inteira sem cortes,
nós vamos reenquadrar o filme. Além de copiar os formatos
normais, assim como em 16mm. Vamos copiar bitolas em janelas diferentes.
Em síntese é o seguinte:existem equipamentos passíveis
de serem adaptados. Nós, por exemplo, criamos uma maquininha para
se lavar os materiais manualmente, já que certos materiais não
podem entrar numa máquina convencional. São duas enroladeiras
e você tem um tanque com uma série de roletas que você
passa lá dentro e tem um veludo que já enxuga o material.
Estamos agora limpando microfilmes do Arquivo Público do Estado,
e o resultado é ótimo... é uma máquina feita
de sucata, esse copiador tem um pedaço de cada coisa, pedaços
de máquinas, e aí você monta. Esse negócio
para o som vai ser todo feito assim. Porque na verdade esses equipamentos
são os mesmos há muito tempo, o que muda são pequenas
coisas. Enquanto tiver filme, vai ser a mesma coisa. Eu por exemplo peguei
outro dia uma peça para a máquina 16mm que é genial,
porque ela gastou tanto que afinou os dentes, aí o material encolhido
encaixa perfeitamente, cai como uma luva.
H: Como vai ser a
restauração desses novos materiais como os filmes de poliéster
e desses novos sistemas de sons digitais?
C: Nessa época
eu já morri, né, sei lá...(risos) Bem, sei lá,
acho que o poliéster não é a salvação
da lavoura não, mas acho que, assim como na passagem do nitrato
para o acetato, poliéster é a mesma coisa. Teremos com certeza
outros problemas mais pra frente. (pausa) Agora sobre o problema do som
digital, eu espero (risos), que as pessoas estejam guardando seus originais
de mixagem em analógico, porque, sei lá, esse troço
pode dar uma zebra amanhã... É o velho problema de formatos
como o U-matic, que tem 20 anos. É o negócio dos gravadores
de ¼ de polegada da Sony que eu só vi uma vez em Praga... acho
que no Brasil nem tem mais. Essas mudanças de padrões, eu
espero que se guarde tudo em originais analógicos ou em formatos
de alguma longevidade. Essas coisas são boas para gringo, mas para
preservação é péssimo. Uma coisa genial é
que eu estava conversando com um técnico de som e ele me disse
que na captação, indo ao contrário dessa coisa de
brasileiro querer estar na frente do mundo, os caras nos EUA captam em
Nagra analógico! Depois eles passam para o DAT. Mas o original
deles é em analógico, o velho Nagra! Ele me disse: "eu capto
tudo em analógico, depois passo para o digital e os caras ficam
todos felizes porque o som é digital, mas minha matriz ainda é
o Nagra, é a mais segura que eu tenho..."
Entrevista realizada
por Felipe Bragança, Hernani Heffner e Marina Meliande
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