Políticas
Brasileiras de Preservação e Restauração Cinematográfica:
entrevista com Carlos Roberto de Souza
Felipe Bragança:
Hoje, vivemos um momento de possível virada de mesa da situação
da preservação e restauração de filmes no
Brasil: diversas iniciativas vêm sendo tomadas e o interesse em
torno do tema aumentado de maneira expressiva.
De uma maneira geral, tomando como ponto de partida sua experiência
na Cinemateca Brasileira, quais seriam as mais relevantes políticas
de preservação e restauração a serem implantadas
no país - quais as possibilidades de mudanças tanto atuais
quanto futuras, em um campo mais amplo, para essas políticas?
Carlos Roberto: A
cinemateca brasileira tem 50 anos e acho que durante essa vida toda nunca
houve um momento tão propício quanto agora, que nunca se
definiu tanto algo que se parecesse com uma política de preservação
no país. Já houve momentos de melhoria específica
para a Cinemateca Brasileira como instituição, mas nunca
uma coisa mais global mesmo, nacional. Atualmente sim. O que a gente pode
chamar de política de preservação, pra mim, é
algo que envolve não apenas as estruturas de conservação,
duplicação de material e restauração... Aqui
no Brasil, a gente precisa restaurar prá burro e ainda há
a documentação relacionada.... Acho que uma coisa que também
está feia é a parte de divulgação: de programação,
difusão, pesquisa. Durante muito tempo se juntou muita coisa, se
juntou mal as coisas, exatamente porque não existiam estruturas
de preservação. Aí você acaba tendo que privilegiar
esse lado e só então pensar em ter uma perna na área
de divulgação, difusão.
Mas sinto que a partir
de nossa insistência, acho que houve uma tendência de governo
de entender um pouco mais desse negócio. Da iniciativa privada
em apoiar projetos nessa área. Não vejo porque não
aproveitar o momento e juntar esses esforços todos, acho que a
coisa tende a melhorar. Nós inauguramos aquele depósito
climatizado na cinemateca brasileira, por exemplo, aquilo foi tirar um
peso dos ombros da gente terrível. Aqui no MAM, no Rio não
tem, a gente também não tinha... E aí você
ter um acervo, juntar um acervo e conhecer esse acervo mas não
ter jeito de preservar esse acervo, é uma carga muito pesada. O
que a gente ficava fazendo era acompanhar a degradação dos
filmes e transportar os filmes de um lugar para o outro: pois desde que
entrei lá já teve Ibirapuera, Conceição, Selucan...
e finalmente teve o Matadouro, com essa estabilização do
acervo e com esse projeto do censo cinematográfico nacional começando
em São Paulo e Rio. Eu por exemplo estive em Porto Alegre no encontro
da Socine e fiz contatos com o pessoal de lá. Conheci gente de
Pernambuco, também. E assim a gente vai estendendo os braços,
um pouco mais organizadamente do que a gente fazia no passado. No passado
a gente ficava meio passivo, agora não, está se fazendo
uma coisa um pouco mais ativa mesmo que é localizar o que existe
de filme brasileiro espalhado por todo o país.
F: Pensando do ponto
de vista de uma tentativa de expansão para outros acervos do país
de depósitos climatizados como esses recentemente inaugurados na
Cinemateca Brasileira. Que tipo de investimento seria possível,
a longo/curto prazo pra que esses acervos também tenham este tipo
de modelo de conservação. Que tipo de financiamento é
possível, é possível criar um tipo de sistema autosustentável
para as cinematecas e acervos em geral?
CR: Eu penso que sim.
Depois dessa modificação da legislação cinematográfica,
da criação da Ancine e da reivindicação de
que 15% da arrecadação seja voltada para a Secretaria do
Audiovisual... A secretaria vai se voltar especificamente sobre a pesquisa,
preservação, e a chamada área cultural que é
uma área de obrigação do governo. É muito
importante fincar o pé nisso. Esse ano vai ser complicado, é
um ano eleitoral também, é o ano em que a Ancine vai estar
se implantando, onde a secretaria vai estar redimensionando suas atividades...
É importante marcar presença dizendo: "olha, precisa fazer
isso, porque se não a gente perde os filmes", vai ser um momento
importante sim. Essa coisa do censo cinematográfico: as pessoas
não entendem o que se chama de "censo cinematográfico brasileiro
– fase um". A "fase um" é exatamente esse mapeamento das coisas...
as pessoas me perguntam quanto custa a fase dois, eu não sei. A
gente só vai saber quando estiver no término da primeira
etapa. A minha idéia é que mais para o final do primeiro
semestre do ano que vem, poderemos ter um projeto nacional de preservação.
Quais seriam as ações a serem desenvolvidas no campo de
instalações, de conservação, no campo de duplicação
de material ? A gente vai ter uma espécie de gráfico indicando
quanto de material está preservado , guardado adequadamente ou
quase adequadamente, pode resistir mais não sei quantas décadas...
tanto de material vai precisar de uma intervenção daqui
a algum tempo, tanto de material vai precisar de uma intervenção
emergencial. Para realizar uma intervenção de emergência,
o que é preciso ter ? Estruturas de preservação.
Tem um pequeno laboratório na Cinemateca Brasileira. Ele está
adequado a esse desafio? Não , não está. O que se
precisa? Quais os equipamento de que precisamos? É possível
tentar parceria com um laboratório comercial? Se é possível,
até aonde ele pode responder. E quanto custaria isso?
F: Seria interessante
este tipo de associação com laboratórios comerciais?
CR: Eu acho quase
que fundamental. Diferentemente de outros países onde os arquivos
têm laboratórios com tradição de conservação
como o Centro Nacional de Cinematografia da França
, que tem um laboratório que conserva filmes há 30 anos.
Responde não só à solicitação de duplicação
de material e deterioração, como copiagem de filmes para
mostras na França, fora da França, intercâmbio...
dá conta. No Brasil, não. Aqui no Brasil é obvio
que a gente não vai dar conta, a quantidade de coisas que esse
exame todo que está sendo feito aqui no MAM, deixa cada vez fica
mais evidente de que não vamos dar conta. Que vai ter que ser um
esforço de salvação de coisas fundamentais. Por isso
eu perdi bastante o escrúpulo em relação à
necessidade absoluta de se duplicar em película, pôr que
não dá, se a gente for duplicar tudo, não dá
mesmo! É importante tal documento porque é registro histórico?,
então vamos tentar duplicar isso em beta digital, é um jeito
de guardar um pouco daquele documento. Graças a Deus a tecnologia
tá que tá, se desenvolvendo ninguém sabe direito
para onde, nem está muito claro para ninguém no mundo, nem
ninguém da parte de tecnologia, nem da parte de arquivo o que vai
acontecer. Sabe-se que o digital, a gravação digital, é
a informação mais perfeita para ser guardada, agora qual
o suporte para isso? Esse é o grande problema pois a fita magnética
a gente sabe que não uma tem sobrevida muito grande.
F: Você viu
essa projeção digital na terça-feira? Da Casablanca?...
CR: Não, não
vi. Quando eu cheguei aqui o Hernani (Heffner) e o Gilberto (Santeiro)
tinham ido lá ver e o Hernani chegou impressionado, "começou
uma coisa nova e tal". Eu quero ver sim.
Marina Meliande: Mas,
a respeito dos laboratórios comerciais, quais são as implicações
que podem existir na parceria nessa área de restauração?
CR: Olha, eu gostaria
que caminhasse na linha em que a gente sempre tentou. Vocês que
estão mexendo com filmes, sabem que dependendo do material ele
tem um estágio de deterioração. Desde coisas muito
simples, que podem ser duplicadas, coisas que já estão cheirando
a vinagre , mas que a estrutura fisica do material está legal,
é o tipo de coisa que máquinas de um laboratório
comercial poderiam processar... Agora, a partir de um certo momento, o
laboratório comercial não pega mais, ou pega somente no
caso do Chico Moreira da Labocine, que tem um trabalho muito lento, artesanal
mesmo. Então, o Chico, eventualmente, poderia responder , como
parece que está respondendo por uma parcela. Mas é o tipo
de coisa que na minha cabeça é o laboratório da cinemateca
que deve pegar o pesado, pegar o problemático mesmo, passar para
um suporte novo e daí nós vamos para um laboratório
comercial processar. Eu gosto muito da Sílvia Rabelo da Labocine,
a gente tem uma boa amizade, eu acho que estreitar um pouco mais no sentido
do controle dos banhos por exemplo, isso é uma coisa muito importante,
porque o laboratório processa nos banhos de laboratório
comercial e o que a gente precisa é de um processamento de longa
permanência. Então, as taxas de hipersulfito e o tempo de
lavagem do material têm que ser muito maior em relação
a essas cópias que são tiradas por aí para exibição
comercial. Esse tipo de ajuste, de acordo, de parceria, precisaria ser
mais firmado, um compromisso dos laboratórios com o processamento.
Agora, eu só vejo a Labocine, porque em SP com a Curt não
há possibilidade, o que era a Líder em SP a gente ainda
não tentou pela instabilidade do laboratório. Em termos
digitais, de duplicação digital, a gente está estudando
tanto com a Casablanca quanto com a Mega pra ver se conseguimos fazer
um trabalho conjunto, um projeto conjunto, alguma coisa via lei de incentivo,
a gente está ainda definindo um projeto em relação
a isso.
F: Então ainda
uma coisa muito centralizada em Rio e São Paulo. Acervos como o
que você falou , de Recife , Porto Alegre, Cinemateca Paranaense
ainda estariam um pouco isolados
CR: Sim. Eu acho que
sim. Eu não vejo condição de se instalar laboratórios
regionais, o investimento é muito grande.
F: Dentro da área
desses acervos...
CR: Sim, sim, eu acho
que o que vamos tentar fazer agora é localizar esses acervos, mandar
técnicos , mandar a Fernanda, a Patrícia,mandar o pessoal
a estes locais, examinar o estado de guarda desses materiais, o conhecimento
que as instituições têm desses acervos, fazer um aconselhamento
geral de melhores condições de guarda... Mas em matéria
de duplicação de material terá mesmo que ser encaminhado
para SP ou para o Rio. Eu não vejo outra alternativa.
M: De que forma a
Cinemateca Brasileira poderia incentivar a criação de novos
acervos e arquivos em outras regiões do Brasil e qual seria a melhor
forma de guarda: concentrar todos os acervos em um espaço único
ou tê-los espalhados por varias regiões do país?
CR: As estruturas
de guarda podem ser descentralizadas, inclusive porque, politicamente,
existem problemas de discussões regionais: existem locais que não
querem enviar o material nem para o RJ nem para SP, um orgulho regional
mesmo. Mas aí é muito importante que sejam acervos ligados
a universidades ou a museus regionais que tenham um compromisso de preservação.
É preciso existir um aconselhamento e um compromisso. É
fundamental juntar as pessoas todo que tem algum tipo de relacionamento
com acervos e se chegar a uma espécie de acordo nacional em relação
à isso.
M: Uma espécie
de código?
CR: Sim, eu acho que
a gente tem que fazer isso. Deve ser algo independente das pessoas que
estão nos postos agora... Além das pessoas, tem que haver
uma espécie mesmo de código de procedimentos e que seja
levado a serio.
F: Dentro desses acervos
existem instituições federais, instituições
particulares, algumas fundações,acervos pessoais, seria
possível criar uma legislação única para tentar
atrelar esses acervos?
CR: Eu penso que sim
F: Mas como financiar
essa política, essa metodologia? Além da manutenção
desses acervos...
CR: Está claramente
definido que a atividade de preservação está ligada
à Secretaria do Audiovisual. Então é preciso haver
não só um código de comportamento dos arquivos como
um compromisso governamental de proteger esse material. Eu acho que talvez
a gente consiga, a médio prazo, a curto prazo eu não acredito
mais, essa coisa do depósito obrigatório, de todos os filmes
realizados serem depositados em local adequado, com conservação
adequada. Isso foi discutido no Congresso: que seja depositado num local
adequado, que a lei diga isso mas que o Estado também dê
condições de manutenção para a guarda.
M: O financiamento
ainda cabe ao Estado?
CR: Sim.sim, é
uma atribuição estatal. A gente sabe que o Estado não
assumiu, que se a gente ficasse esperando o Estado ter assumido não
ia dar certo... A vida da Cinemateca Brasileira é exatamente a
comprovação disso: o depósito climatizado teve a
participação governamental de apenas 10%. 90% a gente teve
que levantar junto a empresas estatais como BNDES, Petrobrás, parte
foi da iniciativa privada e alguns bancos. Houve ainda a VITAE que é
uma entidade de financiamento de projetos culturais, 90% da verba foi
assim, não foi o governo.
F: Contando com parte
desses 15% que seriam voltados para a Secretaria do AudioVisual, como
é que tem sido a relação da preservação
com produtores e cineastas? Você acha que mudou a relação,
tem sido mais fácil?
CR: Eu acho que mudou
muito e tem muito para melhorar. No começo da minha vida na Cinemateca
Brasileira tinha muito produtor que não entendia muito o quê
era uma cinemateca. Era uma ignorância mesmo de quais eram as importâncias
da guarda de filmes. Hoje, eles entendem perfeitamente para que serve
uma cinemateca. De uns anos para cá o que acontece é que
houve uma valorização de material antigo, houve uma necessidade
absoluta de, por exemplo o Canal Brasil, o Canal Brasil precisa de filme,
a produção de especiais, documentários da televisão
à cabo, a quantidade de coisa que é feita com material de
arquivo é gigantesca. Então houve isso das pessoas perceberam
que aquilo que a cinemateca guarda tem um valor econômico muito
sério. Aliás, isso é uma das coisas das quais o Gustavo
falou, numa das colocações que fez no Congresso: "tem valor
cultural sim ,mas há um valor econômico nisso". Aí,
é muito gozado porque a relação com o produtor mudou:
na medida em que esse material tem um valor de mercado. A relação
deles com as cinematecas tende a ser mais profissional. Parar de encarar
a instituição como essa gente boba que guarda essas coisas....
não , eles perceberam que não é assim. E isso não
é uma coisa simples, mesmo nos países desenvolvidos onde
essa relação comercial vem se desenhando há mais
tempo, a coisa não é absolutamente clara. (pausa) Engraçado,
alguém comentou durante o Congresso aqui no RJ: antigamente, no
tempo da Embrafilme, quando eu era membro da comissão da área
cultural, o campo de preservação era tratado a ponta pés
pelos próprios curta metragistas que participavam da mesma comissão.
Quando se levantava o assunto preservação era quase vaia.
Agora não.
M: É quase
um consenso?
CR: Exatamente, todo
mundo entende, quando se fala de preservação, da necessidade
de dinheiro para preservação, não é contestado,
isso é pra mim é progresso mental gigantesco dentro do panorama
cinematográfico. A preservação tem lá o seu
lugar. E é inquestionável. Por que? Porque os próprios
produtores precisam que esses materiais sejam preservados para poderem
negociar com esse material nacionalmente, internacionalmente, eles sabem
que precisam. Mesmo esses cineastas mais tradicionais, mais antigos, tipo
Nelson Pereira, Cacá Diegues, Walter Lima , eles também
estão fazendo projetos de restauração de seu material.
E aí é que eu acho que tem que ser muito casado, o papel
do Estado com o papel da iniciativa privada. Porque a preservação
é uma atividade pela qual o Estado tem que responder. Agora, existem
nuances quando os produtores fazem projetos de restauração
de suas próprias obras: Tudo bem que até determinado ponto,
a feitura de algumas matrizes de conservação, o Estado assuma...
Mas a iniciativa privada também tem que assumir um outro pedaço
disso, eles querem tirar cópias para comercializar, distribuir
e não é exatamente o Estado que tem que dar dinheiro para
eles ganharem dinheiro. Essa coisa tem que ser bem colocada. A gente conhecendo
cineastas sabe que isso é bem complicadinho (risos).
F: E os filmes órfãos,
aqueles que não tem mais produtores para defende-los, para restaurá-los,
caberia às cinematecas a sua restauração?
CR: Sim.
F: Porque, por exemplo,
filmes de ficção longa metragem têm tido mais facilidade
do ponto de vista dessa possibilidade de exploração comercial,
mas pensando, por outro lado, em documentações, cinejornais,
registros: existe interesse na restauração desses filmes
do ponto de vista comercial ?
CR: Não, não,
aí eu já acho complicado porque as grandes séries
de cinejornais como Atlântida, Niemayer, isto é muito engraçado
porque os atuais herdeiros sabem, os detentores de direitos legais, eles
sabem que existe esse valor de mercado, eles vendem. Eu vejo aqui no MAM
o Vanderci, que é um funcionário da Atlântida que
localiza coisas que a Atlântida vende... Mas não existe um
investimento massivo da Atlântida para preservar esse material,
isso é uma coisa muito estranha. E nisso tem Atlântida, tem
outros produtores como Primo Carbonari em SP. É complicado porque
eles sabem que o dinheiro a ser investido é muito grande. Diferentemente,
a Cinemateca Brasileira tem a filha do Primo Carbonari que está
tentando fazer um projeto de lei de incentivo para captar e preservar
o acervo dela. Agora, eu não sei que tipo de encaminhamento deveria
ser dado para esse negócio, nessa relação. Na Cinemateca
Brasileira temos muito cuidado na assistência nessa área
de cine jornais, a gente tenta fazer máscaras, essas coisas todas
para não se perder. Aí, paramos de pensar no produtor: tem
que salvar porque tem que salvar. Você não raciocina em termos
comerciais, você raciocina em termos de importância social
e histórica dos filmes. Talvez seja o caso de isso ser parte também
de uma discussão, de um fórum ...
M: Seria o caso de
se rever uma legislação para isso?
CR: Sim, em termos
de direitos, em termos de obrigações, na medida em que o
próprio Estado invista na preservação desses materiais
ele deveria ter direitos também de usar esse material de alguma
maneira. Eu acho que as cinematecas deveriam ter direito também
a esses filmes. Agora, isso só com legislação, não
existe acordo fácil com os donos dessas companhias.
F: Voltando a um assunto
falado mais atrás, da possibilidade de se trazer novas tecnologias
para as cinematecas, para esses acervos. Como é que se daria essa
relação, é viável trazer, hoje em dia, novos
equipamentos para o Brasil ?
M: O que se pode desenvolver
de tecnologia no país, adaptar equipamentos...
F: Existe a possibilidade
de algum incentivo governamental para trazer esses equipamentos, porque
talvez alguns acervos pequenos tenham mais dificuldades em trazer esses
equipamentos.
CR: Olha, "indigente"
é um pouco forte, mas a gente ainda está um pouco "indigente"
em termos de equipamento. Com esse patrocínio da BR a gente comprou
uma máquina de revelar nova. Foi uma loucura pensar na quilometragem
gigantesca que foi duplicada em SP no laboratório. É impressionante
como a gente conseguia fazer isso com uma reveladora que é dos
anos 30. Vocês conheceram aquela reveladora, aquilo era uma reveladora
dos anos 30 que foi sendo adaptada com pedaços de outras coisas.
A gente fez uns 800 mil metros de duplicação de filmes com
ela... (pausa) Agora, se adapta só até certo ponto. Meu
medo sempre foi de que de repente aquela máquina desmontasse, sabe,
sozinha, só de olhar para ela, ela começasse a soltar as
coisas. Só agora conseguimos comprar uma máquina simples,
uma reveladora, um modelo simples mas já toda computadorizada.
Por isso eu digo que a gente precisa ter o básico, a nossa briga
não é para sofisticar mas para ter o básico. Mas
o que é o básico? Tem uma coisa que é engraçadíssima:
esses acervos fora do eixo RIO-SP precisam de mesa enroladeira, não
tem mesa enroladeira. Como é que vai revisar o material sem mesa
enroladeira? Então é preciso haver um investimento de 70,
80, 150 mesas enroladeiras para distribuir pra Brasília, Porto
Alegre, Recife , Belém, pra conhecer esse material. É descabido
pensar em levar esses materiais para SP, trazer para o RJ pra ser examinado.
Quanto custa uma mesa enroladeira? Não custa 1000 reais, custa
uns 500 reais, eu acho que 450 é o custo que a gente tem para fazer
lá em SP. Mas não vai ser a Cinemateca Brasileira que vai
fazer 150 mesas enroladeiras. Agora, equipamento básico de cinema
às vezes deixa as pessoas um pouco espantadas pelo seu custo. É
um equipamento caro para nossos baixos limites orçamentários.
F: Existe alguma facilitação
para a importação desse tipo de equipamento?
CR: Existe. Existem
algumas portarias da Secretaria da Receita Federal. Eu acho que também
é uma coisa que precisaria se configurar como lei específica
para a área . Fizemos um projeto ano passado para a FAPESP para
equipar o que chamo de básico no laboratório da Cinemateca
Brasileira O projeto ficou por volta de 450 mil dólares e a FAPESP
aprovou alguns equipamentos, um pouco mais de 10% disso. Uma outra parte
a gente conseguiu com o investimento da BR. Agora ainda estão faltando
equipamentos da ordem de 300 mil dólares. Então quando a
gente fala de política de preservação é muito
importante ter a visão geral. Vai fazendo um composé de
patrocinadores e investidores nessa área. Isso é uma idéia
que a gente desenvolveu na Cinemateca Brasileira. Precisamos retomar os
patrocinadores de fora do país também. Existem alguns organismos
como a UNESCO, que foi uma instituição que sobretudo nos
anos 80 deu recursos para a Cinemateca Brasileira adquirir lavadora ultrasom,
aquela própria GLF do laboratório, aquela copiadora de janela
molhada, foi uma contribuição da UNESCO para nós.
Tem também a Agência Espanhola de Cooperação
Internacional que surgiu nesses últimos anos e que está
dando recursos para atividades de restauração. A gente o
ano passado restaurou um filme com negativo virgem dado por essa agência.
Esse ano ela está dando, via FIAF, uma certa quantidade de filme
virgem. Então é uma coisa que a gente precisa ampliar um
pouco: as nossas solicitações a esses organismos internacionais.
M: A FIAF funciona
apenas como um mecanismo regulador ou também como financiadora?
CR: Não, ela
não tem dinheiro. A FIAF é uma espécie de intermediaria,
ela dá o aval dela para cinematecas do mundo inteiro conseguirem
recursos de organismos internacionais. O recurso dela é só
das anuidades dos membros para a manutenção da secretaria
em Bruxelas e a realização dos congressos. Esse ano foi
no Marrocos. A cinemateca Marroquina é uma cinemateca pobre, boa
parte dos recursos para a realização do congresso foi dada
pela FIAF. Existe a idéia de que o Congresso da FIAF de 2005 seja
realizado no Brasil, uma parte em SP (os seminários técnicos,
workshops) e a parte burocrática digamos, a assembléia geral,
seja feita aqui no RJ. A FIAF gostou muito da idéia. Eu tive essa
idéia porque ano que vem o Congresso vai ser em duas cidades, em
Estocolmo e Helsinke. A parte técnica vai ser em Estocolmo, aí
bota todos os congressistas no barco, viaja até Helsinke e faz
a assembléia geral lá.
M: Você participa
de todos os congressos?
CR: Sim. Então
todo mundo achou ótimo ser no Brasil. Faz muito tempo que não
se faz um congresso da FIAF na América Latina. O último
foi na Colômbia a uns dez anos atrás, e em 2005 vamos estar
com todo esse trabalho de agora bastante consolidado, acho que seria um
momento legal. A outra idéia que a gente tem também é
a de apresentar para 2005 uma atualização da pesquisa que
a Maria Rita Galvão fez em 1987, que foi o grande levantamento
dos arquivos de filmes latino-americanos. Como é que está
a preservação de filmes na América latina? Já
faz algum tempo desde 87, seria importante ter uma atualização
disso.
F: Existe, hoje, algum
modelo de cooperação na área de Preservação
na América Latina?
CR: Olha, nessa época
em que a Maria Rita fez a pesquisa, nos anos 80, havia. Tem a CLAIM, que
é a Cortinadora Latino Americana de Arquivos de Imagens em Movimento.
Em todos os congressos da FIAF, fora do congresso, a gente sentava para
conversar. Discutir, intercambiar coisas, havia, pôr exemplo uma
circulação de mostras pela América Latina. Era uma
instituição não oficial, porque a CLAIM não
tem sequer estatuto, uma coisa informal mas eficaz. Agora, o que aconteceu
foi que a crise na América Latina foi geral. Muitos arquivos que
estavam com trabalho estruturado, por causa da crise econômica e
principalmente crise política se esfacelaram, quase morreram mesmo.
O primeiro efeito disso é que nem sentávamos mais para conversar...
As mostras e os circuitos de exibição murcharam. Eu acho
que agora está começando a haver de novo uma articulação.
Houve um encontro no México onde foi desenhado um encontro de técnicos
de documentação para se pensar num conhecimento comum, um
arquivo comum, aí eu acho que a participação do Brasil
fundamental. É uma loucura esse divórcio que existe entre
o Brasil e os outros países da América Latina. A gente não
vê os filmes que eles fazem, a gente não tem relação
nenhuma, é um absurdo.
F: Você falou
sobre a dificuldade de intercâmbio na América Latina: vamos
falar um pouco mais sobre difusão. Como você vê as
possibilidade de um modelo integrado de difusão para as cinemateca
brasileiras?
M: Para que a gente
também possa assistir aos filmes das nossas cinematecas, para que
outras regiões do Brasil possam ter acesso a esse acervo. Até
a gente que mora no Rio não conhece o acervo da Cinemateca Brasileira...
Que tipo de política de difusão poderia mudar essa situação?
CR: É preciso
definir o que seria essa política de difusão. Eu tive uma
conversa muito legal com a Lúcia Lobo, numa das vezes em que ela
foi a SP. Com essa dedicação quase exclusiva para o sistema
de preservação do depósito, para o laboratório,
e por uma questão de perfil, por exemplo, eu tenho um perfil muito
mais técnico, de pesquisa, do que de programação,
difusão. Não apareceu uma pessoa que encarnasse essa missão
de pensar sobre isso, de pensar na difusão da cultura cinematográfica.
Seja na programação da sala da cinemateca, seja na difusão
em níveis nacionais, seja em intercâmbios. Acho muito legal
que os estagiários da Cinemateca Brasileira estejam começando
a pensar nisso, encaminhar algumas propostas. Não se pode esquecer
que 90% das cinematecas do mundo começaram com programação.
Antes de ter acervo o que elas faziam era exibir filmes, eram clubes de
cinema, cineclubes que, pela preocupação de uma ou outra
pessoa, começaram a constituir um acervo. A FIAF é de 1938
e juntou quatro instituições que faziam exibição
de filmes. Pela própria vocação original desses arquivos,
essa atribuição faz parte das cinematecas. Mas como eu estava
discutindo com a Lúcia, ela me disse assim: "das duas uma: ou você
pára de ter angústia por não exibir e continua fazendo
isso sem angústia, ou a gente precisa pensar os mecanismos desses
sistemas de difusão e de programação, que precisam
mudar." Mas não dá para voltar atrás e agir como
aquelas cinematecas de antes... O mundo mudou muito nessas décadas:
hoje você tem facilidades de acesso a cinematografias estrangeiras
via VHS, via DVD... Você tem uma oferta extraordinária que
as gerações anteriores não tinham mesmo, não
tinha jeito de ver Encouraçado Potenkim... Agora você
tem televisão a cabo. Eu estava discutindo com os estagiários
de SP sobre que tipo de abordagem poderia ser feita. Eu acho que deveria
ter na sala da Cinemateca Brasileira uma programação constante
de cinema brasileiro. Tem que ter uma história do cinema brasileiro
todo ano. O que que é importante? É importante passar O
Pagador de Promessas? Todo ano passa. É importante passar o
Brasa Dormida? Todo ano passa. Vai ter gente, não vai ter
gente? Não importa a essa altura, é uma questão de
formação de público, formação de cineastas...
É muito mais fácil você conseguir recursos para copiagem
de coisas para a circulação de mostras, é muito mais
fácil do que pedir recursos para constituição de
depósitos, compra de equipamento, que são uma coisas discretíssimas,
ninguém vê, não tem transparência para o patrocinador.
Ao mesmo tempo eu acho muito importante conscientizar esses patrocinadores
de evento como o Centro Cultural Banco do Brasil, de que fazer mostra,
homenagear um cineasta implica também em participar da preservação
da obra do cineasta. Não adianta fazer uma homenagem ao Walter
Lima Junior e exibir cópias em frangalhos, isso não é
homenagear ninguém. Parece que o CCBB do Rio já tem feito
isso. Para se conhecer o acervo da Cinemateca Brasileira é preciso
um projeto de feitura de cópia porque nosso trabalho tem sido voltado
para fazer as matrizes. Mas aí eu fico indignado, porque a gente
não salva filme para guardar no depósito e ninguém
ver, a gente salva para mostrar! Porque registra a cultura brasileira,
registra a arte cinematográfica no Brasil. Esse lado é fundamental.
F: Seria viável
algum tipo de circuito para que essas cópias pudessem ser exibidas
em salas comerciais como há muito se tenta fazer com o curta-metragem?
CR: Eu não
vejo porque não. Uma coisa legal nesses últimos anos no
Brasil foi o surgimento desses circuitos alternativos que não deixam
de ser circuitos comerciais. Se você pensar no Grupo Estação,
ou no Ademar, são circuitos alternativos muito ligados a cultura
cinematográfica. É possível sim, aproveitando o próprio
circuito montado, o Ademar tem cinemas em muitos lugares, ele tem um circuito
quase nacional organizado. E eu tenho certeza que o Ademar aceitaria organizar
programas que possam ser exibidos nacionalmente. Uma das coisas do projeto
dos estagiários da Cinemateca em SP é um programa de filmes
restaurados... Eu odeio essa coisa de "filmes restaurados", não
é nenhum gênero cinematográfico, pelo fato de ter
sido restaurado não significa nada, a gente tem que juntar esses
filmes em catálogos, contextualizar.
F: A representatividade
do filme está além do fato dele ter sido restaurado...
CR: Claro, por que
senão... Qual é a importância exatamente de ser um
"filme restaurado"?... É você juntar um bando de pessoas
que ficam babando: "ah, restaurado, ah, restaurado!..." (risos)
F: O fetiche...
CR: Fetiche não!
A gente não tem tempo pra fetiche!...(risos) Surgiu a idéia
lá em Marrocos de se fazer em breve uma mostra retrospectiva do
cinema da América Latina e distribuir primeiro aqui mesmo, e depois
para fora da América – mas ainda é preciso fechar um projeto.
F: Qual a importância
da relação das cinematecas com os pesquisadores no sentido
de se buscar essas referências de cinema e de se descobrir novos
filmes ainda pouco vistos, observados ? O pesquisador tem tido espaço
dentro das cinematecas, é preciso criar mais espaço para
esse tipo de trabalho?
CR: Acho que é
preciso criar mais espaços e mais informação. A ser
não os mais antigos, os pesquisadores não têm idéia
do tamanho dos acervos, do tanto de informação disponível.
A Olga (Futema) está desenvolvendo esse trabalho com o Banco de
Dados do Cinema Nacional e acho que vai conseguir lançar um pouco
de luz sobre esses acervos e aí, incentivar e chamar a atenção
dos pesquisadores. Uma das funções da difusão será
justamente chamar a tenção para aquilo que pouco se conhece.
Inclusive a articulação com os meios acadêmicos deve
se fortalecer e abrir o leque de possibilidades de estudo no cinema brasileiro.
Senão você fica sempre fazendo Glauber Rocha, Cinema Novo,
e perde as diversas possibilidades de pesquisa no cinema nacional. Aliás,
outra coisa importante é ampliar essas relações com
os pesquisadores de outras áreas como a História, a Literatura,
as ciências... Em outras faculdades e cinematecas internacionais,
essa relação é muito mais próxima.
F: Sobre as escolas
brasileiras de cinema, como tem se dado a relação entre
os acervos dessas faculdades e as cinematecas – essas obras têm
chegado à Cinemateca Brasileira?
CR: Eu tenho contato
com a ECA, que aliás, depois do incêndio, está levando
as matrizes para a Cinemateca...coisa que eu vinha pedindo há muito
tempo. Sobre a UFF, há algum tempo atrás, recebi um e-mail
de uma menina de lá, a Ines, querendo conversar sobre o estado
de alguns filmes da faculdade... Acho que são, efetivamente, os
únicos lugares com que tenho contato. Aliás, uma das idéias
do censo cinematográfico é justamente fazer o levantamento
desses acervos dos núcleos de produção universitária.
M: E quanto à
área de educação – você acha que cabe às
faculdades de cinema o ensino da Preservação e Restauração
de filmes ? Ou caberia mais às cinematecas?
CR: Eu acho que tem
de haver a participação de todos – o que der certo, deu.
Acho muito boa a iniciativa da UFF e do Hernani (Heffner) de promover
uma cadeira de Preservação e Restauração na
graduação de cinema, mas acho que as cinematecas devem também
investir nesse trabalho. Acho que é preciso começar a organizar
seminários, workshops. Achei ótima a iniciativa do Hernani
de levar vocês para São Paulo para conhecer os laboratórios
de lá. (pausa) Outra coisa que está acontecendo são
os três manuais da Cinemateca: um de manuseio de filmes, um mais
geral de preservação e um de catalogação.,
para que se possa distribuir para o país inteiro. É um jeito
de instruir e chamar a atenção para a importância
do assunto e facilitar a descoberta de pessoas interessadas no assunto,
para a Cinemateca dar o apoio necessário, aulas, worshops...sem
esquecer das enroladeiras (risos). Acho que já está aumentando
bastante a procura por esse tipo de informação, por parte
de gente ligada à fotografia e interessada em trabalhar com essa
área mais técnica mesmo...o nível de resposta tem
sido muito fraco, tanto da Cinemateca, quanto das universidades. Eu estou
muito de olho numa experiência que a escola de cinema de Cuba está
tentando implantar ano que vem, que é um dos cursos da escola,
seria um curso de Preservação. A idéia é chamar
gente de toda a América Latina e fazer um curso de 2 anos. Estou
de olho para ver se vão conseguir mesmo implantar, formar...É
uma coisa em que devemos ficar de olho. Uma das coisas que discuti com
o Reinaldo Gonzáles, que é da cinemateca de Cuba, uma coisa
de quê discordei, é que eles queriam fazer um curso somente
de formação técnica... Aí eu disse: "aí
não pode...". Você não pode formar gente sem conhecimento
da história do cinema, do conteúdo que está sendo
processado...aí eles deram um ligeira mudada no currículo.
F: Seria possível
pensar num cronograma de ações ou de resultados dentro do
panorama da preservação de filmes no país ? Sejam
os resultados do censo, sejam esses possíveis projetos de difusão?
CR: Acho que tudo
vai se encaminhar até Agosto de 2002. Depois é preparar
a fase 2 para Setembro e buscar o apoio do governo e da própria
sociedade brasileira. Até determinado ponto nós podemos
fazer alguma coisa,mas sozinhos nós não vamos conseguir
fazer... Até lá poderemos dizer: "Olha, o panorama é
esse e as necessidades são essas..." As outras etapas como a de
educação devem esperar e estão se encaminhando mesmo
que informalmente... Agora, o trabalho de difusão é uma
etapa que deve começar logo.
F: Até como
forma de chamar atenção para o problema.
CR: É claro...
Resta saber que tipo de resposta a sociedade brasileira será capaz
de nos dar...
Entrevista realizada
por Felipe Bragança e Marina Meliande
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