Apocalypse Now Redux

Apocalypse Now surtiu um tremendo impacto à época de seu lançamento original. O ano era 1979: meia década depois do fim da investida norte-americana no Vietnã e quatro anos desde que Francis Coppola iniciara sua aventura pessoal, embrenhado com sua equipe nas selvas filipinas para fazer o filme. O acompanhamento das filmagens podia ser feito quase cotidianamente na cobertura dos jornais americanos, o que contribuiu bastante para o sucesso final da produção -- e para a mitificação de Coppola como o legítimo "sucessor de Orson Welles": a personalidade polêmica cujas idéias, métodos, espírito independente e compromisso artístico radical o levavam a um comportamento estranho, à megalomania, e lhe valiam a alcunha de "gênio". Apocalypse Now lhe valeu a segunda Palma de Ouro da carreira e a definitiva consagração do público.

O filme era o auge do auteurism americano em suas implicações de legitimação econômica e vialibilidade financeira, necessárias para a liberdade criativa tão procurada. Marcava também o fim de uma década de renovação para Hollywood, com filmes políticos, com motivos sociais e questionamento crítico -- o reflexo da crise da sociedade americana do período. A esta sociedade faltava ainda um texto audiovisual que refletisse sua reação à guerra, à catástrofe moral que precipitou (ou potencializou) e ao intenso questionamento interno que havia provocado. Apocalypse Now cumpriu esta função, tarefa algo dificultada pelas imagens de apelo mais realista veiculadas pela mídia ao longo do conflito. A estratégia de Coppola era inversa: suas reflexões eram colocadas a serviço de uma poderosa alegoria, tecida sobre as mais diversas posturas ideológicas envolvidas em sua construção -- além do diretor, assinava o roteiro John Millius, cineasta de inclinação para a extrema direita, notório anticomunista, com sua eterna valorização do individualismo radical e tendência ao belicismo; e Michael Herr, o romancista liberal e ex-combatente, a quem coube a tarefa de escrever uma narração em off para ajudar na costura das mais de 370 horas filmadas por Coppola. Pode parecer um bocado estranho que tal mistura tenha agradado aos americanos -- mas, em vista do apoio quase integral daquela sociedade à resposta que Bush deu aos atentados de 11 de setembro, esta espécie de esquizofrenia, quando se trata de violência e guerra, é uma constante no comportamento da nação.

De forma que se aceitou sem maiores discussões o discurso de Coppola, repetido à exaustão na promoção do filme; ele dizia que "Apocalypse não é um filme sobre o Vietnã. Mas o próprio Vietnã". De forma que hoje, 22 anos depois, esta obra volta às telas na versão Redux já na condição de clássico.

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Segundo o diretor, ele e o montador Walter Murch, motivados por amigos, trancaram-se numa sala por seis meses dispostos a trazer à tona uma nova versão, definitiva, a partir de uma reavaliação de todo o material bruto. Murch descreve o trabalho num tom quase místico de "retorno à selva", de aventura; Coppola, por sua vez, parece seguro de que o resultado, pensado primeiramente como um bônus de uma edição especial em DVD, é um verdadeiro "rethinking".

O fato é que há um acréscimo de 53 minutos, divididos em diversas sequências inéditas incluídas, e um novo acabamento geral em processo digital (inclusive uma nova mixagem excepcional -- embora eu ainda prefira a original, uma obra-prima). A sensação é que o filme ficou muito mais fluido, correspondendo ainda mais ao conceito original de "montanha-russa", de espetáculo, de entretenimento, com suas mudanças de ritmo, suas pausas e aceleradas narrativas mais bem coordenadas. Algumas sequências incluídas não dizem muito (como a das coelhinhas perdidas no meio da confusão, que se prostituem em troca de combustível), outras são bastante elucidativas (como a de Kurtz/Brando lendo notícias para Willard/Sheen e a do encontro com uma família de colonos franceses). Ficamos mais íntimos da trupe que acompanha Willard em sua jornada rio adentro: Chief, o barqueiro; Chef, um hippie cujo maior desejo era se tornar um cozinheiro em Nova Orleans; Clean, o negro adolescente dos guetos de Nova Iorque; e Lance, um jovem wasp campeão de surfe que incorpora a loucura sedutora da guerra para ser resgatado no fim pelo recém-proclamado deus, Willard (à maneira de John Wayne em Rastros de Ódio -- Let's go home, Debbie...), os dois únicos sobreviventes da aventura. A participação de Robert Duvall, no que é considerado largamente o papel de sua carreira (uma noção que discrimina seus trabalhos mais relevantes -- O Apóstolo ou mesmo Rain People, do próprio Coppola), ganha um contorno melhor com a inclusão de algumas cenas.

No mais, tudo está lá: da brilhante seqüência inicial ao som dos Doors ao climático massacre do caribu, passando pela baboseira pseudo-filosófica entoada por um Brando bêbado na grosseira conclusão da trama. Fãs do filme original não sentirão falta de nada.

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A carreira de Coppola depois de Apocalypse Now caiu na redundância, repetindo vez por outra projetos megalômanos em filmes como O Fundo do Coração ou Tucker - Um Homem e seu Sonho, ou explorando velhas fórmulas em Cotton Club ou O Poderoso Chefão III em busca de reconhecimento comercial-artístico. Seus trabalhos mais recentes não conseguiram conquistar o alcance pretendido: Jack, a boba fantasia que marca sua colaboração com o nefasto Robin Williams obteve o devido fracasso; e The Rainmaker, seu melhor filme desde Apocalypse, não conseguiu uma resposta favorável do público.

O retorno de sua última grande (e verdadeiramente grandiosa) obra às telas neste Redux parece um calculado golpe comercial para recolocar a carreira nos eixos. Suas ponderações sobre o Vietnã parecem menos um fim que um meio, afinal. Como exibição do virtuoso esteta e encenador, muito próximo do genial como queriam alguns, Coppola parece mais relevante que o comentarista político (o inverso do caminho cumprido por boa parte do cinema americano da época). Esta aspiração terminou por fim esbarrando na ingenuidade e pretensão que, em última instância, informam uma geração de realizadores que encontraram em Coppola o exemplo máximo -- Michael Cimino é o nome que vem à mente de imediato, assim como Brian De Palma (ver artigo nesta edição sobre Pecados de Guerra). A falência deste projeto é relativa: terminou por gerar alguns dos melhores momentos do cinema americano enquanto fenômeno estético (além de Apocalypse Now, podemos pensar em O Franco Atirador), embora tenha assumido uma carga retórica que a princípio seus agentes pareciam colocar em xeque -- o que traz de volta uma problemática antiga, inscrita no próprio nascimento da cinematografia norte-americana como uma instituição formada a partir de uma inclinação legítima para o questionamento social.

No mais, só posso convidar o leitor a desfrutar deste espetáculo no meio para o qual ele foi concebido: a sala de cinema; a tela grande. É um privilégio poder assistir a um filme como Apocalypse Now Redux numa cópia virtualmente perfeita; para uma geração de cinefilia (como a minha) que se formou em videolocadoras, é um privilégio.

Fernando Veríssimo