Zurlini e a dissociação



Claudia Cardinale e Jacques Perrin em Verão Violento de Valerio Zurlini

1. Uma coisa acima de todas as outras espanta à visão dos melhores filmes de Valerio Zurlini: a mais completa dissociação expressiva entre o som e a imagem de seus filmes. Tente pegar a trilha sonora de Dois Destinos, possivelmente sua obra-prima, e experimente ver o filme sem som. Impossível imaginar que os dois se conjugam e, entretanto, quando vemos um em relação ao outro, o efeito criado é de uma força de expressão poucas vezes encontradas no cinema. Isso permite que, sem nenhum medo de errar, assistindo aos filmes de Zurlini, notemos um caráter verdadeiramente experimental da relação entre imagem e som, assim como entre "corpo" e "alma", verdadeiros correlatos psicológicos destes (pois, em um filme de Zurlini, a imagem é o corpo e a banda de som é a alma).

2. A experiência de tirar o som de Dois Destinos é frutífera. Pois assistir a um filme de Zurlini sem o som seria colocá-lo no patamar dos cineastas de estilo transcendental nos dizeres de Paul Schrader: Ozu, Dreyer, Bresson. Ouvindo simplesmente suas trilhas e lendo os roteiros de seus filmes, o panorama cinematográfico é outro, brutalmente oposto: Douglas Sirk, D.W. Griffith, Vincente Minnelli. Matriz fortemente melodramática de seus temas, tratados sempre com um apuro aparentemente contraditório, de contenção invejável e elegância a toda prova. Mais um talento de dissociação, mais um vigor de acreditar na aproximação dos contrários para criar efeitos estéticos que dêem conta daquilo que se passa diante de nós como espectadores.

3. O que remete a um problema e ao modo como a história do cinema sempre utilizou a dissociação. Ela é sempre buscada pelos cineastas mais antipsicológicos, pelos diretores que recusam uma natureza representativa do cinema, ou seja, os diretores de vanguarda: o Godard do período Dziga Vertov, Guy Debord, Andy Warhol. Neles, é veemente a dissociação som/imagem, com o objetivo mais do que explícito de alertar para um fora da tela, pela ilusão do espetáculo. Ora, no cinema melodramático comum, é exatamente o oposto que deve ser buscado: a completa adesão do espectador, todos os fatores de imagem e som convergindo num todo inquebrável. E entretanto Zurlini é um cineasta eminentemente dos dramas pessoais, de profissão de fé no melodrama como revelador de uma realidade profunda dos sentimentos, que no entanto utiliza efeitos de expressão os mais radicais, mais dissonantes e aparentemente opostos do cinema de ficção a representação.

4. É que a dissociação tem outro significado em seu cinema. Não se trata, certamente, da opção vanguardística pela crítica da imagem. Para Zurlini, a imagem é o púlpito da verdade, a possibilidade da revelação (sim, a revelação divina, a Pureza), uma crença religiosa no classicismo. Como tal, a dissociação só pode assumir um papel paradoxal, a de integradora. Mas para entender esse oxímoro talvez forçado mas que nos parece dar toda a condição do cinema de Valerio Zurlini, será preciso penetrar no universo de seus personagens, na maneira como o cineasta os filma, e na maneira como esse cineasta em particular vê o mundo e o transplanta para dentro de seus filmes.

5. O primeiro dado a mencionar é a extrema religiosidade das imagens de Zurlini. Uma religiosidade propriamente católica. O mundo, por si só, é destituído de sentido. É por isso que a imagem, que tudo que vemos está imediatamente livre de qualquer problematização. A cena do massacre dos gregos em Mulheres no Front, a batalha final em Verão Violento ou as cenas de luta em A Primeira Noite de Tranqüilidade só encontram seu sentido fora da imagem, ou seja, no som ou em sua ausência. As imagens nunca estão na mesma dimensão do acontecimento: anátema para o melodrama, que exige sempre imagens grandiosas para sentimentos grandiosos. Em Zurlini, o grandioso foge da imagem para reencontrar-se em outro lugar, na pesquisa do íntimo. Aí Dois Destinos retorna, porque o tratamento é exemplar: estamos diante de sentimentos extremos, de forças emotivas muito fortes, e a imagem está incrivelmente desdramaturgizada, sem cores fortes, movimentos bruscos ou qualquer coisa que possa denotar essa força. Esse procedimento atinge o espectador em cheio, esse não-trabalho das emoções ao nível da imagem faz com que ele próprio, espectador, tenha que retrabalhá-las sozinho, e assim dá uma dimensão ainda mais forte aos seus filmes. Não encontrar na imagem um paralelo às emoções dos personagens desorienta o espectador, e o efeito-Zurlini está criado.

6. Tomemos uma cena exemplar, a do momento em que Lorenzo se apaixona por Aida em A Moça Com a Valise. É um instante especial de dissociação, onde o pretexto de colocar um disco de música para dançar faz com que saiam de jogo os sons ambientes e que uma Claudia Cardinale em puro esplendor possa descer uma escada diante do contracampo maravilhado dos olhos de Jacques Perrin. Cena de cinema experimental, e ainda assim plenamente adequada à trama: são efeitos de montagem e dissociação imagem/som que nos mostram quando nasce a paixão. A elegância e a depuração de Zurlini fazem com que jamais nos semblantes dos personagens possamos encontrar alguma contrapartida do que a tela, no entanto, nos confirma. Não é à toa que Jacques Perrin é ator-fetiche do diretor: seu trabalho é de um minimalismo à toda prova, de pequenas variações sobre temas mínimos. Quando a crítica nacional começa a aplaudir a volta do histrionismo "artístico" dos atores, a interpretação que Zurlini exige de seus atores precisa ser recuperada.

7. O que diz muito a respeito da relação que Zurlini estabelece com seus protagonistas masculinos. São todos de uma abnegação quase messiânica a seu mundo. E essa abnegação tem seu correlato num mesmo rosto impassível, pertença ele a Jacques Perrin, Marcello Mastroianni, Alain Delon ou Jean-Louis Trintignant: seja qual for a diferença de psicologia dos personagens, trata-se sempre de alguém em vias de enfrentar-se com o destino (e fatalmente perder). Essa derrota, sempre coberta de choros e outros excessos no (melo)drama, é encarada ao contrário com rigidez de caráter, com uma aparência estóica que entretanto os olhos desmentem. O herói zurliniano é aquele homem preso a uma situação existencial impossível, que apresenta um rosto austero frente ao poder fulminante do tempo, do destino e, conseqüentemente, da morte.

8. É claro que seus protagonistas são metáforas do próprio Zurlini e da relação que ele mantém com o cinema. Como não aproximar o olhar entre o desesperado e o indiferente que tem Alain Delon frente a seu mundo em A Primeira Noite de Tranqüilidade com os lentos travellings laterais que filmam mendigos dormindo num banco de estação ferroviária no primoroso A Estação, um curta de 1953 que de certa forma antecipa toda a mise-en-scène de Zurlini e a relação de sua câmera diante das coisas: sempre distanciada um passo a mais que o normal, observando tudo com muita ternura e nada espetaculosamente.

9. A psicologia é a finalidade de seus filmes. Mas não uma psicologia comum, onde os problemas de cada um dos personagens se resolvem, sempre pela palavra, no final do filme. Em Zurlini, no entanto, todos os problemas chegam a seu nível de irresolução, mas o grande diferencial de seu cinema não é esse: é que essa psicologia é divina, é repleta de uma moralidade que parece emanar de Deus. Assim, a manifestação divina se dá sempre a partir das situações psicológicas, mas só transparece à medida que a câmera parece não filtrar o essencial do momento. Esse "essencial" bate com toda a força direto no espectador. O que seria da força da dança de Trintignant e Eleonora Rossi Drago em Verão Violento se não houvesse tamanha dissociação entre a força dos sentimentos desencadeados entre os dois e a mise-en-scène de Zurlini, eternamente serena, jamais excessiva? Ou do magnífico plano final de Sentado à Sua Direita, onde uma criança foge de rajadas de metralhadora, de forma que não vemos nem os tiros (intencionalmente disparados para errar ou desviados pela potência divina?) nem aquele que está atirando? É justamente dessa lacuna entre imagem e som, entre imagem e sentido que brota o poderoso sentimento religioso – que se manifesta não pela crença, mas pela moral – que provém do cinema de Zurlini. O homem pode até estar abandonado, mas é preciso mesmo assim uma moral – seu cinema mostra quanto o existencialismo está próximo da religião.

Ruy Gardnier