Iugoslavo de nascimento, cigano por profissão


A 25ª Mostra de SP nos deu duas chances raras de uma só vez. Primeiro, a oportunidade de ter contato com uma obra quase completa de um dos cineastas mais consagrados a surgir no cinema a partir dos anos 80. Segundo, por não apenas trazer este cineasta como convidado, mas na sua outra "profissão", trazendo a sua banda para nos apresentar a unza unza music num show de abertura da Mostra que foi artigo da revista. (www.contracampo.com.br/31/untzauntza.htm)

O motivo pelo qual chamamos Emir Kusturica de um dos mais consagrados cineastas de seu tempo é simples: desde sua estréia no cinema com Você se Lembra de Dolly Bell? até seu penúltimo filme (Gata Preta Gato Branco) simplesmente todos os seus 6 longas saíram com um dos prêmios principais nos maiores festivais de cinema do mundo. São duas Palmas de Ouro e um prêmio de Melhor Diretor em Cannes, um Leão de Ouro de melhor diretor estreante e um de Prata em Veneza, e um Urso de Prata em Berlim. Como sempre dizemos, prêmios são apenas prêmios e nada mais, mas um currículo impressionante como este precisa ser respeitado, e serve de sinal de alguma coisa. O bom de ter os filmes a disposição é poder justamente ir lá conferi-los.

De todos os seus trabalhos em longas, apenas um não foi exibido, o seu filme "americano" de 1993, Arizona Dream. É bem verdade que um protesto deve ser feito quanto à qualidade do material exibido, porque no caso de Dolly Bell por exemplo, não apenas tivemos uma exibição em vídeo, mas de uma cópia em péssimo estado. É especialmente uma pena no caso deste filme que, em película, ganhou o Prêmio da Crítica justamente em SP, na 6ª Mostra. Os dois trabalhos iniciais de Kusturica também passaram em vídeo, o que no caso não pode ser contestado já que este é seu formato original, tendo sido realizados para a TV iugoslava. Mas, mais uma vez, vale o protesto pela qualidade da cópia. Mas, isso tudo seria perdoado só pela chance de ver projetada (também em vídeo, mas mais uma vez sendo o formato original, e numa cópia melhor) a série completa de TV de onde foi tirada o longa Vida Cigana. Esta chance de passar uma deliciosa tarde de sábado no CineSesc vendo as 5 horas de projeção (com caridosos intervalos, claro) foi uma experiência inesquecível daquelas que dão sentido aos festivais de cinema. Além da chance após quase 3 anos de espera, de ver finalmente Gata Preta Gato Branco no cinema.

Mas, em conjunto e em retrospecto, o que fica do cinema de Kusturica? Certamente uma série de conclusões e hipóteses podem ser levantadas. Os seus dois primeiros trabalhos (As Noivas Estão Chegando (1979) e Bar Titanic (1980)), feitos na TV iugoslava onde ele trabalhou após sair da famosa escola de cinema tcheca FAMU, já mostram algumas das preocupações comuns do seu cinema posterior. Antes de tudo, o desejo de desvendar os pequenos dramas da "gentinha", ou seja, das camadas mais baixas da sociedade. Seu cinema é muito raramente um de luxo, mas sim um do caos, da estranheza, do pequeno drama com reflexões maiores. As Noivas e Titanic têm em comum ainda um ambiente quase claustrofóbico (certamente relacionado às condições de produção), centrado no drama de poucos personagens praticamente numa mesma locação. Enquanto o primeiro é um doentio e quase beckettiano estudo das relações de poder (outra característica do cinema dele) dentro de uma família, entre marido, mulher e mãe, o segundo é uma pequena fábula cruel sobre o ressentimento como motor da repressão e da vingança sem compaixão. São trabalhos que beiram o surreal embora absolutamente "realistas" na encenação. O que talvez venha a ser uma das mais conhecidas características de Kusturica: trabalhar de tal forma a materialidade da vida do dia a dia que consiga captar o quanto de magia e surrealismo está embutido nesta.

Sua estréia no cinema, com Dolly Bell, é uma exacerbação destas primeiras características, começando a ampliar o escopo do seu olhar, tanto no que se refere ao número e relação entre personagens, quanto no retrato crítico da sociedade iugoslava. O trabalho de análise política e econômica que ele faz enquanto mostra a luta de um garoto para passar pela fase difícil da adolescência é cheio de energia e humor cáustico. Kusturica retoma a questão dos laços de família, algo de absolutamente vital no seu trabalho. A figura do pai e sua relação com o socialismo vai ter paralelos em quase todos os seus trabalhos subsequentes. São filmes extremamente ligados ao local e tempo em que são feitos, e nisso se pode argumentar que Kusturica é um grande cronista da Iugoslávia ao longo de duas das décadas mais conturbadas naquela região. Em Dolly Bell estão ainda lá a pobreza e as dificuldades financeiras, a criatividade como válvula de escape do dia a dia pelo sonho, a força da tradição, a discussão política afetando o dia a dia da família.

De muitas formas, Dolly Bell pode ser considerado um prólogo para o filme seguinte, Quando Papai Saiu em Viagem de Negócios, que deu a Kusturica a primeira Palma de Ouro. Neste a questão familiar e sua relação com o regime socialista volta a ser o centro da trama. No entanto esta possui uma localização histórica mais distante, o que parece apenas um subterfúgio para se falar da atualidade (no início há uma inegável ironia com uma introdução que apresenta o filme como "um filme histórico, de amor"). Mas esta localização histórica possui alguma importância pois inicia um olhar que se tornaria épico mais adiante sobre a formação do Estado iugoslavo. Um outro ponto dos mais importantes que este filme retoma de Dolly Bell, e que voltaria depois, é a centralização da trama sobre uma figura jovem, sempre entre infância e adolescência. Kusturica registra a perda de inocência e ao mesmo tempo um certo idealismo romântico típicos da idade. Impressiona em especial no filme a exacerbação do carinho do diretor por seus personagens, abraçando todas as suas falhas de caráter e enganos como sublimes do humano. Kusturica se interessa profundamente por isso, pela falibilidade maravilhosa do ser humano. Se não fosse por mais nada (e muito mais há), o filme valeria pela descoberta do ator infantil (então) Davor Dujmovic. Sua atuação é absolutamente estupenda, numa exata mistura de inocência e malandragem.

Esta descoberta e esta mistura seriam essenciais no próximo trabalho de Kusturica. Vida Cigana possui duas versões, um longa de duas horas e meia que levou o prêmio de diretor em Cannes (e já visto no Brasil) e esta versão completa da TV com 5 horas, que passou em SP pela primeira vez. Trata-se do primeiro dos dois (até agora) "épicos" de Kusturica. Assistida na sua forma completa, é impossível não lembrar de O Poderoso Chefão. Assim como a saga de Michael Corleone nos 3 filmes de Coppola, que servem de microcosmo do mundo ítalo-americano pela via criminosa, e contam a história da perda de inocência de um homem e sua descida ao inferno a partir desta, o filme de Kusturica faz o mesmo trajeto com os ciganos, no caso iugoslavos (mas, como se sabe, ciganos não possuem pátria). O protagonista é mais uma vez vivido por Dujmovic, impressionante. O filme marca o início da relação fílmica entre o diretor e este mundo cigano, que o fascina por tudo que já tínhamos visto antes: o caos, a loucura, o crime, a tradição, a família e sua importância, a música. Mais uma vez, tudo filtrado pelo olhar de um jovem, que ao longo da saga passa de um inocente romântico para um pragmático adulto. O filme ambiciona o tempo todo este caráter de painel de um povo que o título indica. Na mistura entre o absurdo e a hiperrealidade mostrada, sobra um cinema físico onde sangue, suor e lágrimas jorram na tela junto com excrementos e dinheiro. A versão da minissérie não é menos do que excepcional e completamente apaixonante nas suas 5 horas de dramas e risos. Impressiona a sua dimensão trágica e absolutamente humana.

Depois deste filme, impressionados talvez com o currículo, os americanos convidam Kusturica que exerce uma tentativa no cinema de lá. Arizona Dream, apesar de ganhar o Urso de Prata em Berlim, talvez seja seu filme mais contestado. Ao tentar levar seu surrealismo hiperreal para o ambiente americano, ele acabou não agradando aos críticos saudosos do seu cinema tão tipicamente iugoslavo, nem muito menos ao público, ainda mais o americano. Como se sabe, isso é o principal para decidir a continuidade ou não de uma carreira em Hollywood, então certamente foi fácil convencer ambas as partes que Kusturica ficava melhor quieto na Europa.

Se bem que quieto é o pior dos adjetivos. Seu filme seguinte é sem dúvida aquele pelo qual ele será lembrado, independente do que venha a seguir. É o tipo de trabalho que, gostem ou não, já nasce clássico. Pela relação estabelecida com o mundo a sua volta, pela relação com o cinema e o mundo. Underground não por acaso ganhou a Palma de Ouro mais uma vez para ele (algo raríssimo), e correu mundo. Kusturica retorna a Iugoslávia num dos momentos mais cruciais do país, em vias de sua desintegração após o falecimento de Tito e os conflitos étnicos abundantes. Seu filme se dedica a um painel épico que mistura História e crônica do momento, onde seu estilo insano e orgânico dão o tom para um povo e uma situação (a da guerra, sempre) que não podem ser explicados pela racionalidade. Do contato com os ciganos fica acima de tudo a musicalidade de Goran Bregovic, numa das trilhas mais célebres do cinema moderno. O filme causou sensação no seu retrato da luta entre irmãos que caracteriza o conflito balcânico, além do painel buscado.

Porém, se cinematograficamente o filme é quase um consenso (embora muitos o acusem de usar a guerra como puro espetáculo cinético, uma crítica que parece não entender de onde vem a relação entre real e absurdo no cinema de Kusturica), politicamente ele envolveu o diretor numa controvérsia que o levou a declarar encerrada sua carreira no cinema. A França foi o principal foco de críticas que associavam Kusturica ao nome de Milosevic, insinuando que seu filme era pró-sérvio, quando ele simplesmente não era contra ninguém, mas apenas contra a insanidade da guerra. O diretor externou seu desapontamento em entrevistas e artigos, e prometeu retirar-se. Este ponto da carreira de Kusturica é central para pensarmos as relações com seu país, agora em desintegração total. Se antes e principalmente aqui, seu cinema é intrinsecamente iugoslavo, não somente em temas e locações e relações históricas, mas até mesmo na sensibilidade e olhar, o que viria depois caminharia em direções diferentes.

Como se esgotado pelo tour de force que foi o filme, ele quando decide voltar ao cinema o faz pela paixão e pela festa que representam em sua vida a descoberta do povo cigano. Primeiramente querendo documentar o ritual de um casamento, ele acaba se envolvendo com o projeto, e filma Gata Preta Gato Branco. O filme é a exacerbação do caos, da loucura, mas acima de tudo de um cinema barroco do exagero em todos os detalhes. Trata-se de um imenso "respirar fundo" de um diretor que havia perdido o desejo de dirigir, e de um homem acuado pelo seu tempo, pelo seu país. O filme é delirante na sua energia, na sua completa desarticulação narrativa, em troca de sensações, música, tradição e festa. É como se o diretor de tudo que veio antes entrasse em transe por duas horas, num filme onde exacerba e sublima todos os seus temas, traumas, paixões. Um filme, pode-se até dizer, cansativo e muitas vezes mais caótico do que o espectador pode suportar. Mas é o próprio retrato das necessidades do autor e seu cinema no momento em que é realizado.

Finalmente, fechando sua caminhada até aqui, temos Memórias em Super 8, que tem crítica específica na revista (www.contracampo.com.br/31/super8stories.htm). Porém o que o filme possui de mais relevante nesta análise de caminhada é que indica o caminho que "salvou" o cineasta (e porque não o homem) Kusturica: a música. Apaixonado por ela, e em especial sua encarnação cigana, membro de uma banda desde 1986 (a No Smoking Orchestra), Kusturica entrega neste filme, assim como no show que pudemos ver em SP, que é como músico que ele relaxa, que ele aproveita a vida e se sente feliz. Com o cinema ele precisa pensar o hoje e o ontem, precisa intervir num processo de forma muitas vezes dolorosa como Underground mostrou. Com a música sua relação é outra, o menino volta a ter a inocência romântica perdida. Quem o viu no palco ou quem percebe o extremo carinho livre do novo filme sabe do que se fala aqui. A música certamente salvou o cineasta, que aliás compôs com a banda a trilha do filme anterior também.

À medida em que esta obra continuar parece que veremos também uma continuidade disso tudo, mas como ele lidará com a nova Iugoslávia, o quanto estará disposto a ser "cineasta" ou não, ainda precisamos ver. O fato é que o Emir Kusturica, seja cigano ou iugoslavo, músico ou cineasta, precisa ser acompanhado de perto porque seu cinema possui uma vida e uma energia na relação com o mundo que fascina e traz enorme força vital ao espectador, ao crítico, ao cinema em geral.

Eduardo Valente