O Homem de Duas Vidas,
de Brian De Palma


Get To Know Your Rabbit, EUA, 1972


O Homem de Duas Vidas, de De Palma

Como perceber que se está diante de um filme de Brian De Palma? No caso de Get To Know Your Rabbit, não é difícil. Logo de partida, a marca inicial dos primeiros filmes do diretor: o split screen. Em seguida, um tipo de plano recorrente, sobretudo na apresentação dos personagens: um homem que caminha e a câmera que, na mão, o acompanha (levada à maestria em Olhos de Serpente). Mas essas são simplesmente demarcações estílisticas, objetos de preferência, griffe se se quiser. Mas não tarda a aparecer o primeiro plano brilhante, o que verdadeiramente denota a existência de um grande diretor, maneirista e voyeurista, mestre de sua arte já cedo: ainda sem que os créditos terminem, a câmera que filma de cima o protagonista e sua namorada dormindo na cama vai se distanciando levemente, até que sejamos transportados para muito além do que seria o teto. A partir daí, ela trata de realizar um travelling que vai revelar a nós toda a estranha estrutura do apartamento. Plano absolutamente gratuito, de um preciosismo técnico refinado (afinal, é o primeiro trabalho de De Palma dentro de uma major), que aparece apenas para marcar uma posição constante dentro de sua obra: o que vale é o prazer do olhar. Sob esse aspecto, nada a ver com o cinema de Hitchcock, onde cada plano é necessariamente o que deve ser. Em De Palma, a câmera sempre desenha um outro filme, às vezes incrivelmente deslocado do próprio filme (a história) que se faz, e freqüentemente mais interessante até.

Get To Know Your Rabbit é um filme pouquíssimo lembrado de Brian De Palma. Os motivos são vários: fracasso na época do lançamento, hibridismo entre a virtuosidade e o comercialismo, o sucesso (e, há de se reconhecer, a melhor qualidade) de Sisters, lançado no ano seguinte, e o próprio filme, um tanto desconjuntado e frenético demais para o público americano, mesmo o de filmes B. Pois, assim como o travelling que cobre toda a casa, Get To Know... é um filme em linha reta, ou seja, um filme que segue seu percurso e esquece tudo aquilo que deixa para trás. Em se tratando de um filme sobre um executivo que se transforma em mágico-sapateador e viaja pelos rincões mais inóspitos dos Estados Unidos, há de se convir que a esquizofrenia é muita: exceto um, todos os personagens da primeira metade do filme desaparecerão como num passe de mágica (e, de fato, é assim que Orson Welles, em participação especialíssima, sai do filme). Mas é mais que isso: o próprio filme tem uma relação muito estranha com tudo que coloca em cena: elementos de nonsense (os pais do protagonista dentro do armário), alegoria (a pequena empresa de fazer mágicos-sapateadores torna-se uma grande corporação em dias) e até pastelão (na cena em que o mágico conhece a personagem intitulada "garota terrivelmente bonita") são utilizados para dar o máximo de artificialidade àquilo que aparece na tela. Impossível de classificar, Get To Know You Rabbit acaba sendo um filme inconstante, talvez até irregular, mas delicioso de assistir.

Acima de tudo porque trata-se de uma ode à independência. Com pouco mais de 30 anos e tendo pela primeira vez a incumbência de agradar os executivos da Warner, Brian De Palma assina um filme justamente contra a vida corporativa, um bem-humorado libelo anti-formatação da sociedade de consumo. Get To Know You Rabbit segue a vida de Donald Beeman, um executivo de sucesso na gerência de marketing de uma grande empresa. Sem maiores explicações, ele deixa seu trabalho e se inscreve num curso de mágico-sapateador. Isso lhe causará problemas: seu antigo chefe, sua família, sua namorada: todos, um por um, farão campanha para sua volta, exercerão a pressão normalizadora e corretiva da sociedade – ele fugiu do futuro que dele esperavam seus próximos. Donald, sem traumas (e a câmera é tão aerada quanto o bem-estar de seu personagem), muda radicalmente sua vida. Troca o apartamento de yuppie por um quartinho barato de hotel, troca seu terno e gravata por quepe e roupas de artista mambembe. O sexo também muda: ao contrário do sexo que sua namorada fazia com ele estritamente por interesse, ele encontra uma moça "liberada" (em 1972, o sinal é não usar sutiã!) com quem tem uma ardente noite de paixão. A mudança é filmada quase como um cerimonial anti-pasteurização existencial: das roupas às mulheres, é uma busca pela autenticidade que se está fazendo. Como diz o próprio Welles de mágico professor, a chave para um bom mágico é "conhecer seu coelho". Seu próprio coelho, não o dos outros.

A mágica serve como perfeita metáfora para o cinema de Brian De Palma. Afinal, o que move seu trabalho como cineasta é um constante maravilhamento com os poderes de ilusão e espetáculo da arte cinematográfica, com a utilização astuciosa e virtuosa de todos os procedimentos de criação de sentido no filme. Dessa forma, vertente Méliès para ele. Como não observar em seus filmes sempre uma fixação nas instâncias mágicas do cinema, num Tom Cruise que flutua, em M&M's que voam na gravidade zero? É com constante identificação, então, que aparece Beeman, o herói que foge das amarras do trabalho burocrático (dir-se-ia em termos de cinema: do naturalismo convencional) e busca, na prestidigitação, elementos para tornar seu trabalho interessante, vital. Não se percebe aí uma forma de um jovem Brian De Palma problematizar dentro da indústria de Hollywood sua própria situação de cineasta e sua relação com o cinema?

Mas Get To Know You Rabbit também lida com o outro da autenticidade, o da criação em série. Da mesma forma que Donald Beeman (na simpática interpretação de Tom Smothers, que encarna perfeitamente seu personagem, menos psicologia que corpo) se aventura em seus próprios caminhos, seu colega de trabalho trata de montar uma firma para transformar do dia para a noite executivos em mágicos-sapateadores, sob os moldes de uma empresa moderna. O que resulta numa espécie de fast-food de curso de mágico, onde toda a ritualística se perde (há uma cena primorosa de entrega de diplomas). Mas os americanos do cinema são menos antipáticos que os alemães da filosofia: o processo da massificação não é visto como absolutamente detestável, mesmo que seja ridicularizado. A questão não é essa: trata-se, antes de tudo, de escolher o seu caminho, e entrar no jogo oficial é também um deles. O filme faz sua opção: se desloca, some numa capa do escritório para se materializar num ônibus de viagens, com uma garota linda ao lado. É antes de tudo uma escolha, uma busca específica: conhecer seu coelho.

Ruy Gardnier