A violência em jogo
Batalha Real, O Sobrevivente e a farsa da indiferença


O menino respira exausto, no meio do matagal há movimento... Silêncio. O menino observa seu redor, segura firme seu revólver...Nada. Um golpe de machado corta o ar. A cabeça do menino é partida em dois. Do meio da mata sai a jovem assassina ensangüentada, ela sorri de alívio. O placar marca: menos um!...

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Dentro da enxurrada de mais de 350 filmes do Festival do Rio BR 2001, parece às vezes impossível um momento de reflexão mais ralentado. Estamos sempre em busca de um novo filme, de novas imagens – fica difícil tentar armazenar o fluxo imenso de imagens e temas que nos percorrem os olhos durante doze dias ininterruptos. Nessa correnteza porém, é importante parar em dados momentos, agarrar numa beirada da margem e olhar para o que se viu com a calma necessária. Recortes, inúmeros, podem ser feitos num corpo tão grande de filmes, porém um deles vem chamando a atenção desde o início das projeções: a reiterada aparição da Violência. Mas isso é tema um tema velho, dirão alguns, com toda a razão, mas nem por isso podemos deixar de observar as sutis mudanças que vão ocorrendo em torno de temas tão já aceitos no imaginário cinematográfico. A Violência que nos chega agora, definitivamente, é outra.

Rambo, Comando para Matar, Braddock... O cinemão norte-americano está cheio de exemplos de filmes extremamente calcados na apresentação ininterruptas de imagens violentas. Sucesso de público principalmente nas décadas de 70-80-90, esse gênero de cinema pancada torrou milhões de dólares e faturou outros tantos, com enredos que giravam em torno da mesma estrutura: herói grosseirão x exército mal-intencionado procura a Justiça. A horda de cenas violentas mostradas, vinha sempre calcada em dois aspectos bem importantes: um era esse estatuto de busca por Justiça (que legitimaria a violência buscada), outro era que a violência , por mais que se insinuasse como principal chamariz, era na verdade coadjuvante de um festival de acrobacias de elenco e câmera que criavam muito mais um espetáculo de movimento e cores do que efetivamente a apresentação da violência. Em Comando para Matar, por exemplo, o personagem de Schwazeneger decepa o braço de um inimigo com um facão, mas a cena é facilmente engolida por se seguir de tiroteios e perseguições em cortes bruscos de planos. Esse espetáculo da ação se sobrepunha à presença efetiva das imagens violentas, despersonalizando o ataque. A violência dos filmes de ação brucutu norte-americano não vem associada à idéia de dor,de sofrimento.

A partir dos anos 90, já ecoando o cinema perplexo da geração Scorcese-Copolla, a violência no cinema começa a ser atacada como uma ferramenta de banalização da brutalidade. Encurralada, a violência cinematográfica começa a se reformular: Cotidianizada em filmes como Pulp Fiction, a violência cinematográfica começa a apontar para um outro aspecto. O burlesco passa a ser sua cara, na tentativa crítica de uma auto-ironia. A violência dos anos 90 procura uma secura, uma sujeira que a torne tão consciente quanto impressionante. Protagonistas de filmes começam a ser mais suscetíveis a ataques e a ferimentos – a dor começa a ser articulada junto à violência quando os heróis passam a se mostrar portadores dela. À presença da violência das atrações acrobáticas, junta-se à noção da dor-efeito sofrida pelos personagens. A cena já clássica da injeção de no coração de Uma Turman em Pulp Fiction, é um perfeito exemplo de violência não mais estrela pela indiferença da dor, mais pelo espetáculo desta. É a noção de dor, a "aflição" de observar àquela cena é que se torna chamariz principal da imagem.

O cinema portanto, ao anexar um outro fator às imagens de brutalidade, passa a transformá-lo num aspecto corriqueiro de seus protagonistas, fazendo do filme tão mais impressionante quanto mais aspectos de dor ele puder mostrar. A violência distanciada-circense de Rambo divide espaço, agora, com a violência direta dos meios urbanos, do tráfico de drogas inserido nas ruas das grande cidades. Aos poucos, a atratividade de filmes como Cova Rasa, Trainspotting, Clube da Luta, Pusher, os filmes de Guy Ritchie e outros, vão se estabelecendo num status de filme violento auto-irônico, crítico. A presença da violência deixa de querer ser um espetáculo em busca da justiça (palavrinha gasta nos dias de hoje...) ,mas se justifica por se considerar sempre um espaço de reflexão negativa sobre a mesma. Isso é: filmes que querem mostrar a violência sob a legitimação de estarem mostrando para chocar e através de choque fazer refletir. Esse jogo de uma Violência autoconsciente que se coloca como uma farsa a ser refletida, porém, vem se transformando no bote salva-vidas de diversos projetos de proposta vaga e se diluindo em seus sentidos críticos.

Dois filmes presentes no Festival desse ano, trazem diretamente na bagagem esse perfil que vem se cristalizando no cinema de violência contemporâneo: Batalha Real (Battle Royale , de Kinji Fukasaku – Japão 2000) e O Sobrevivente (Series 7: the contenders, de Daniel Minahan – EUA 2000). Um perfil em que a violência (antes, idealizada nos filmes de Stallone) se apresenta como um jogo de cinismo, de um sarcasmo perigosamente niilista. A violência/dor como um jogo de imagens, como um espaço lúdico de atrações – vem se tornando cada vez mais presente. Influenciada pela febre dos videogames ultrarealitas (em que homens se degladiam ao aperto dos botões), passando pelo fenômeno dos Pokémons (espécie de Ursinhos Carinhosos com ataques de fúria) , chegamos ao cinema apresentado por Fukasaku e Minahan.

Se antes a violência era um mal necessário nas mãos de heróis como Rambo, hoje é transformada como um aspecto inevitável da sociedade, um fator gritantemente incrustado em nossas vidas diárias. Em Batalha Real é o governo japonês quem promove a carnificina de adolescentes em uma ilha deserta... É o governo que coloca as armas nas mãos dos jovens como forma de controle do crescimento demográfico. Em O Sobrevivente, é uma grande empresa de TV quem realiza o show de violência ao vivo...

O absurdo do enredo de Batalha Real acaba por se resumir na perda da ironia inicial. Aos poucos, o filme de Blá toma para si o discurso aparentemente absurdo do governo e o resume como inevitável, como corpo presente à sociedade (inimiga violenta dos indivíduos). As mortes dos meninos são contadas de forma fria como em um computador e é a lógica do sistema que rege o absurdo. É um jogo de gato e rato em que os personagens vão morrendo diante do espectador e quanto mais grotesca e crua for sua morte, mais crítico se pretende o filme. Como uma materialização dos filmes de terror fantasiosos, o filme retira, aos poucos, o absurdo de seu discurso, tentando assentar as questões em torno não de uma crítica da violência mas de uma palavra de ordem: Corra!

A violência e a dor sofridas pelos personagens serve como argumentação do filme para sua conclusão egoísta : a metáfora direta da sociedade como um jogo constante de violência em que não se pode confiar em ninguém. Se parece absurdo aos olhos de alguns espectadores, Fukasaku parece saber disso e os ignora. Seus alvos são os jovens, o próprio público adolescente em busca da compra de um ideal. Em Batalha Real, o ideal vendido é o do individualismo como única saída de uma sociedade brutal, absurda e dolorida. Ë a dor, o pavor transmitido por seus personagens, que procura induzir o espectador a torcer por seus heróis – a se identificar com eles e sua jornada diante do terror.

Sua violência não é gratuita, como uma leitura superficial pode considerar - sua violência sabe exatamente o que quer mostrar. O que quer espelhar: sociedade = jogo. Um jogo de violências entre os próprios personagens, e entre o filme o espectador. Os letreiros que se remetem diretamente ao espectador são a ferramenta na tentativa de imersão num jogo de dor e brutalidade. Ao contrário de Braddock (I, II, III...) o filme não quer conquistar pela indiferença em relação à dor, mas, ao inverso, pela interatividade visual do jogo de horrores

Trabalhando por uma outra vertente de jogo, mas ainda utilizando-se do mesmo baralho, O Sobrevivente trabalha sobre os mesmos ideais da crítica social através do burlesco. Asssumindo-se claramente como um jogo , espelhado nos reality shows da TV, o filme se inicia como a sátira de um certo tipo de cinema/tv: exatamente o da violência-jogo. A mimese que o filme opera em relação a tais programas pretende ser uma ridicularização dos códigos e dos tiques da linguagem televisiva. A música e as imagens sensacionalistas se apresentam como uma farsa diante do espectador – uma falsidade que se preocupa por demais em discutir a linguagem da TV e se esquece de seus personagens. Enquanto nu programa de TV estabelecesse a ligação de violência/dor entre participante e publico, aqui, em O Sobrevivente, Blá vai mais fundo. Consegue ridicularizar a forma de tal maneira que o resultado é uma indiferença não diante do inimigo distante desconhecido (Rambo e afins...) , mas a indiferença diante de personagens cuidadosamente construídos. Querendo criticar a hipocrisia da Tv, Minahan consegue ser ainda mais cruel e desastroso: seu filme é um discurso da indiferença que , para "desmascarar" um processo ilusório da Tv, acaba por atropelar seus personagens.

O Sobrevivente não é nem a violência sem dor, nem a violência com dor – O Sobrevivente é a violência com dor indiferente. Tem-se a consciência do sofrimento alheio e da situação de absurdo brutal dos personagens, mas essa consciência se dilui numa ridicularização do outro. Os personagens, representados pelos atores de forma naturalista, são menosprezados em sua dor. O sobrevivente consegue ser ainda mais apavorante do que os reality shows, que criam a identificação através do sofrimento-vitória. Enquanto os personagens se matam pelas ruas da pequena cidade, registrados por uma câmera documental materialmente presente, o que vemos é um conjunto de estereotipias na "transmissão" da tv que vão minando qualquer possibilidade de identificação.

Um distanciamento diferente do distanciamento criativo e reflexivo. Um distanciamento da indiferença. A violência passa a ser uma atração do jogo entre espectador e filme. O filme consegue ser tão cruel quanto o absurdo de reality shows que pretendia satirizar. A violência aqui pressupõe uma passagem pelo cinema da identificação naturalista da dor, para redimensioná-la em um sentido sarcástico do pouco se importar. O sofrimento do personagem-outro é motivo de piada para a onisciência crítica do espectador. Descrente de tudo, o espectador gargalha diante dos urros das personagens...

Trata-se portanto, não de se falar da Violência no Cinema, mas de qual violência tratamos? Parece haver diferença entre filmes que apresentam cenas de violência (o belíssimo Os Demônios Batem à Porta é um bom exemplo) e filmes que se constroem sobre essas atrações brutais.

Esses filmes, na medida em que se tornam comuns, e são bem recebidos por uma crítica ávida por filmes chocantes-reveladores, vão se transformando em verdadeiras ferramentas do esvaziamento da dor. Se o cinema da violência idealizada era um espetáculo de ignorância em relação ao outro, o cinema da violência presentificada, representado por filmes como esses, é um cinema da dor alienada, de uma violência crua e que vem servindo para esvaziar o parco reconhecimento que as imagens já tentaram construir da dor e do sofrimento alheio. Um cinema consciente, porém indiferente.

Não há mais o inimigo cruel e sem sentimentos, mas o não-inimigo humano cujos sofrimentos não representam nada... Se em Pulp Fiction ainda há o jogo com o espectador diante da aflição diante das situações de maior sofrimento, violência – nesses dois filmes, Batalha Real e O Sobrevivente, o jogo é outro: o reconhecimento do sofrimento alheio é remetido para uma repulsa ou uma ridicularização que o esvaziam. A violência dessa pós-modernidade tão auto-reflexiva, é a violência que faz achar graça, que atropela a vítima e a torna mais um farsante do que um personagem. Descrente de tudo o que vê como ilusão, o espectador se torna intangível, incapaz de sentir o que, racionalmente, observa. Gilles Deleuze escreveu sobre a complexa relação entre cinema e realidade lembrando: não é o cinema que se adapta às percepções humanas, mas , muitas vezes, são as percepções que se adaptaram ao poder imagético do cinema... Constrói-se ou destrói-se uma sociedade em cima de suas imagens... O que torna a questão do jogo da violência ainda mais perigosa e atual na iminente guerra militar-televisiva que se aproxima, a cada dia, lá pelas bandas do Oriente...

Felipe Bragança