A
violência em jogo
Batalha Real, O Sobrevivente e a farsa
da indiferença
O menino
respira exausto, no meio do matagal há movimento... Silêncio.
O menino observa seu redor, segura firme seu revólver...Nada. Um
golpe de machado corta o ar. A cabeça do menino é partida
em dois. Do meio da mata sai a jovem assassina ensangüentada, ela
sorri de alívio. O placar marca: menos um!...
* *
*
Dentro
da enxurrada de mais de 350 filmes do Festival do Rio BR 2001, parece
às vezes impossível um momento de reflexão mais ralentado.
Estamos sempre em busca de um novo filme, de novas imagens – fica difícil
tentar armazenar o fluxo imenso de imagens e temas que nos percorrem os
olhos durante doze dias ininterruptos. Nessa correnteza porém,
é importante parar em dados momentos, agarrar numa beirada da margem
e olhar para o que se viu com a calma necessária. Recortes, inúmeros,
podem ser feitos num corpo tão grande de filmes, porém um
deles vem chamando a atenção desde o início das projeções:
a reiterada aparição da Violência. Mas isso é
tema um tema velho, dirão alguns, com toda a razão, mas
nem por isso podemos deixar de observar as sutis mudanças que vão
ocorrendo em torno de temas tão já aceitos no imaginário
cinematográfico. A Violência que nos chega agora, definitivamente,
é outra.
Rambo,
Comando para Matar, Braddock... O cinemão norte-americano está
cheio de exemplos de filmes extremamente calcados na apresentação
ininterruptas de imagens violentas. Sucesso de público principalmente
nas décadas de 70-80-90, esse gênero de cinema pancada torrou
milhões de dólares e faturou outros tantos, com enredos
que giravam em torno da mesma estrutura: herói grosseirão
x exército mal-intencionado procura a Justiça. A horda de
cenas violentas mostradas, vinha sempre calcada em dois aspectos bem importantes:
um era esse estatuto de busca por Justiça (que legitimaria a violência
buscada), outro era que a violência , por mais que se insinuasse
como principal chamariz, era na verdade coadjuvante de um festival de
acrobacias de elenco e câmera que criavam muito mais um espetáculo
de movimento e cores do que efetivamente a apresentação
da violência. Em Comando para Matar, por exemplo, o personagem
de Schwazeneger decepa o braço de um inimigo com um facão,
mas a cena é facilmente engolida por se seguir de tiroteios e perseguições
em cortes bruscos de planos. Esse espetáculo da ação
se sobrepunha à presença efetiva das imagens violentas,
despersonalizando o ataque. A violência dos filmes de ação
brucutu norte-americano não vem associada à idéia
de dor,de sofrimento.
A
partir dos anos 90, já ecoando o cinema perplexo da geração
Scorcese-Copolla, a violência no cinema começa a ser atacada
como uma ferramenta de banalização da brutalidade. Encurralada,
a violência cinematográfica começa a se reformular:
Cotidianizada em filmes como Pulp Fiction, a violência cinematográfica
começa a apontar para um outro aspecto. O burlesco passa a ser
sua cara, na tentativa crítica de uma auto-ironia. A violência
dos anos 90 procura uma secura, uma sujeira que a torne tão consciente
quanto impressionante. Protagonistas de filmes começam a ser mais
suscetíveis a ataques e a ferimentos – a dor começa a ser
articulada junto à violência quando os heróis passam
a se mostrar portadores dela. À presença da violência
das atrações acrobáticas, junta-se à noção
da dor-efeito sofrida pelos personagens. A cena já clássica
da injeção de no coração de Uma Turman em
Pulp Fiction, é um perfeito exemplo de violência não
mais estrela pela indiferença da dor, mais pelo espetáculo
desta. É a noção de dor, a "aflição"
de observar àquela cena é que se torna chamariz principal
da imagem.
O
cinema portanto, ao anexar um outro fator às imagens de brutalidade,
passa a transformá-lo num aspecto corriqueiro de seus protagonistas,
fazendo do filme tão mais impressionante quanto mais aspectos de
dor ele puder mostrar. A violência distanciada-circense de Rambo
divide espaço, agora, com a violência direta dos meios urbanos,
do tráfico de drogas inserido nas ruas das grande cidades. Aos
poucos, a atratividade de filmes como Cova Rasa, Trainspotting, Clube
da Luta, Pusher, os filmes de Guy Ritchie e outros, vão se
estabelecendo num status de filme violento auto-irônico, crítico.
A presença da violência deixa de querer ser um espetáculo
em busca da justiça (palavrinha gasta nos dias de hoje...) ,mas
se justifica por se considerar sempre um espaço de reflexão
negativa sobre a mesma. Isso é: filmes que querem mostrar a violência
sob a legitimação de estarem mostrando para chocar e através
de choque fazer refletir. Esse jogo de uma Violência autoconsciente
que se coloca como uma farsa a ser refletida, porém, vem se transformando
no bote salva-vidas de diversos projetos de proposta vaga e se diluindo
em seus sentidos críticos.
Dois
filmes presentes no Festival desse ano, trazem diretamente na bagagem
esse perfil que vem se cristalizando no cinema de violência contemporâneo:
Batalha Real (Battle Royale , de Kinji Fukasaku – Japão
2000) e O Sobrevivente (Series 7: the contenders, de Daniel Minahan
– EUA 2000). Um perfil em que a violência (antes, idealizada nos
filmes de Stallone) se apresenta como um jogo de cinismo, de um sarcasmo
perigosamente niilista. A violência/dor como um jogo de imagens,
como um espaço lúdico de atrações – vem se
tornando cada vez mais presente. Influenciada pela febre dos videogames
ultrarealitas (em que homens se degladiam ao aperto dos botões),
passando pelo fenômeno dos Pokémons (espécie de Ursinhos
Carinhosos com ataques de fúria) , chegamos ao cinema apresentado
por Fukasaku e Minahan.
Se
antes a violência era um mal necessário nas mãos de
heróis como Rambo, hoje é transformada como um aspecto inevitável
da sociedade, um fator gritantemente incrustado em nossas vidas diárias.
Em Batalha Real é o governo japonês quem promove a
carnificina de adolescentes em uma ilha deserta... É o governo
que coloca as armas nas mãos dos jovens como forma de controle
do crescimento demográfico. Em O Sobrevivente, é
uma grande empresa de TV quem realiza o show de violência ao vivo...
O
absurdo do enredo de Batalha Real acaba por se resumir na perda
da ironia inicial. Aos poucos, o filme de Blá toma para si o discurso
aparentemente absurdo do governo e o resume como inevitável, como
corpo presente à sociedade (inimiga violenta dos indivíduos).
As mortes dos meninos são contadas de forma fria como em um computador
e é a lógica do sistema que rege o absurdo. É um
jogo de gato e rato em que os personagens vão morrendo diante do
espectador e quanto mais grotesca e crua for sua morte, mais crítico
se pretende o filme. Como uma materialização dos filmes
de terror fantasiosos, o filme retira, aos poucos, o absurdo de seu discurso,
tentando assentar as questões em torno não de uma crítica
da violência mas de uma palavra de ordem: Corra!
A
violência e a dor sofridas pelos personagens serve como argumentação
do filme para sua conclusão egoísta : a metáfora
direta da sociedade como um jogo constante de violência em que não
se pode confiar em ninguém. Se parece absurdo aos olhos de alguns
espectadores, Fukasaku parece saber disso e os ignora. Seus alvos são
os jovens, o próprio público adolescente em busca da compra
de um ideal. Em Batalha Real, o ideal vendido é o do individualismo
como única saída de uma sociedade brutal, absurda e dolorida.
Ë a dor, o pavor transmitido por seus personagens, que procura induzir
o espectador a torcer por seus heróis – a se identificar com eles
e sua jornada diante do terror.
Sua
violência não é gratuita, como uma leitura superficial
pode considerar - sua violência sabe exatamente o que quer mostrar.
O que quer espelhar: sociedade = jogo. Um jogo de violências entre
os próprios personagens, e entre o filme o espectador. Os letreiros
que se remetem diretamente ao espectador são a ferramenta na tentativa
de imersão num jogo de dor e brutalidade. Ao contrário de
Braddock (I, II, III...) o filme não quer conquistar pela
indiferença em relação à dor, mas, ao inverso,
pela interatividade visual do jogo de horrores
Trabalhando
por uma outra vertente de jogo, mas ainda utilizando-se do mesmo baralho,
O Sobrevivente trabalha sobre os mesmos ideais da crítica
social através do burlesco. Asssumindo-se claramente como um jogo
, espelhado nos reality shows da TV, o filme se inicia como a sátira
de um certo tipo de cinema/tv: exatamente o da violência-jogo. A
mimese que o filme opera em relação a tais programas pretende
ser uma ridicularização dos códigos e dos tiques
da linguagem televisiva. A música e as imagens sensacionalistas
se apresentam como uma farsa diante do espectador – uma falsidade que
se preocupa por demais em discutir a linguagem da TV e se esquece de seus
personagens. Enquanto nu programa de TV estabelecesse a ligação
de violência/dor entre participante e publico, aqui, em O Sobrevivente,
Blá vai mais fundo. Consegue ridicularizar a forma de tal maneira
que o resultado é uma indiferença não diante do inimigo
distante desconhecido (Rambo e afins...) , mas a indiferença
diante de personagens cuidadosamente construídos. Querendo criticar
a hipocrisia da Tv, Minahan consegue ser ainda mais cruel e desastroso:
seu filme é um discurso da indiferença que , para "desmascarar"
um processo ilusório da Tv, acaba por atropelar seus personagens.
O
Sobrevivente não é nem a violência sem dor, nem
a violência com dor – O Sobrevivente é a violência
com dor indiferente. Tem-se a consciência do sofrimento alheio e
da situação de absurdo brutal dos personagens, mas essa
consciência se dilui numa ridicularização do outro.
Os personagens, representados pelos atores de forma naturalista, são
menosprezados em sua dor. O sobrevivente consegue ser ainda mais
apavorante do que os reality shows, que criam a identificação
através do sofrimento-vitória. Enquanto os personagens se
matam pelas ruas da pequena cidade, registrados por uma câmera documental
materialmente presente, o que vemos é um conjunto de estereotipias
na "transmissão" da tv que vão minando qualquer
possibilidade de identificação.
Um
distanciamento diferente do distanciamento criativo e reflexivo. Um distanciamento
da indiferença. A violência passa a ser uma atração
do jogo entre espectador e filme. O filme consegue ser tão cruel
quanto o absurdo de reality shows que pretendia satirizar. A violência
aqui pressupõe uma passagem pelo cinema da identificação
naturalista da dor, para redimensioná-la em um sentido sarcástico
do pouco se importar. O sofrimento do personagem-outro é motivo
de piada para a onisciência crítica do espectador. Descrente
de tudo, o espectador gargalha diante dos urros das personagens...
Trata-se
portanto, não de se falar da Violência no Cinema, mas de
qual violência tratamos? Parece haver diferença entre filmes
que apresentam cenas de violência (o belíssimo Os Demônios
Batem à Porta é um bom exemplo) e filmes que se constroem
sobre essas atrações brutais.
Esses
filmes, na medida em que se tornam comuns, e são bem recebidos
por uma crítica ávida por filmes chocantes-reveladores,
vão se transformando em verdadeiras ferramentas do esvaziamento
da dor. Se o cinema da violência idealizada era um espetáculo
de ignorância em relação ao outro, o cinema da violência
presentificada, representado por filmes como esses, é um cinema
da dor alienada, de uma violência crua e que vem servindo para esvaziar
o parco reconhecimento que as imagens já tentaram construir da
dor e do sofrimento alheio. Um cinema consciente, porém indiferente.
Não
há mais o inimigo cruel e sem sentimentos, mas o não-inimigo
humano cujos sofrimentos não representam nada... Se em Pulp
Fiction ainda há o jogo com o espectador diante da aflição
diante das situações de maior sofrimento, violência
– nesses dois filmes, Batalha Real e O Sobrevivente, o jogo
é outro: o reconhecimento do sofrimento alheio é remetido
para uma repulsa ou uma ridicularização que o esvaziam.
A violência dessa pós-modernidade tão auto-reflexiva,
é a violência que faz achar graça, que atropela a
vítima e a torna mais um farsante do que um personagem. Descrente
de tudo o que vê como ilusão, o espectador se torna intangível,
incapaz de sentir o que, racionalmente, observa. Gilles Deleuze escreveu
sobre a complexa relação entre cinema e realidade lembrando:
não é o cinema que se adapta às percepções
humanas, mas , muitas vezes, são as percepções que
se adaptaram ao poder imagético do cinema... Constrói-se
ou destrói-se uma sociedade em cima de suas imagens... O que torna
a questão do jogo da violência ainda mais perigosa e atual
na iminente guerra militar-televisiva que se aproxima, a cada dia, lá
pelas bandas do Oriente...
Felipe
Bragança
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